A extrema direita adora usar a palavra “lacração”. É o xingamento preferido deles — quase uma senha secreta, tipo “Avada Kedavra”, mas aplicada contra diversidade. Falou em representatividade? Lacração. Mulher protagonista? Lacração. Personagem gay? Ihhh, lacração nível hard. Tem mais de três mulheres falando numa cena? Absurdo, é praticamente a revolução cultural maoísta disfarçada de filme da Marvel.
Mas o que ninguém comenta — e aqui vai o plot twist — é que ninguém lacra mais do que a própria extrema direita. São os verdadeiros mestres da lacração. Se existisse um reality show chamado Brasil Lacra Mais, eles ganhavam com 90% dos votos e ainda choravam no confessionário dizendo que estavam sendo censurados.
Eles lacram contra tudo: lacram contra drag queens lendo histórias, contra camisetas com arco-íris, contra publicidade com casais felizes que não sejam do tipo Barbie & Ken. Lacram contra vacina, contra artistas, contra professores, contra vento, contra nuvem. O céu não pode ter muitas cores senão já é progressismo atmosférico.
Enquanto isso, a “lacração” que tanto os incomoda geralmente vem de grupos pequenos, tentando chamar atenção pra alguma causa — às vezes com exagero, sim, às vezes com uma dose de autoindulgência, claro, mas quase sempre com alguma vontade genuína de mudar alguma coisa. Já a lacração da direita vem com raiva, dedo em riste e, claro, um vídeo no YouTube com thumbnail gritando em caixa alta: “ACABARAM COM NOSSA INFÂNCIA!”. Eles não poupam ninguém — nem mesmo filmes feitos para adolescentes muçulmanas. Como ousam, afinal, fazer um filme que não seja feito pra eles? Que ultraje! Que ameaça! Um filme que fala com outro público? Claramente, isso é lacração.Tem até marmanjo que entra em crise existencial só de ver uma mulher magra batendo em homem num filme de ação. Dá tilt. A suspensão da descrença some como mágica. Esquecem que cresceram achando perfeitamente plausível o Schwarzenegger derrubar um exército com uma metralhadora numa mão e um tronco de árvore na outra. O Stallone podia tomar trinta tiros, cair de um penhasco, levantar e ainda ganhar no soco. Tudo certo. Mas quando uma atriz de 50 quilos aplica uma chave de braço num capanga genérico, pronto: a credibilidade do cinema morreu, o declínio do Ocidente começou.
Mas vai ver o problema sou eu, com esse gosto esquisito de achar mais interessante ver a Charlize Theron de colante do que o Stallone, oleoso e arfante, grunhindo frases de efeito entre uma explosão e outra.
E o mais curioso é que parece existir uma espécie de cronologia sagrada: A.E. e D.E. — Antes do Esquerdismo e Depois do Esquerdismo. No Antes, tudo era permitido: Ripley detonando alienígenas? Ícone. Red Sonja partindo bárbaros ao meio? Cinema de verdade. Xena girando espada no ar com frases de efeito? Arte.
Mas no Depois, se o filme é atual e tem uma protagonista que não está ali só pra ser salva ou sensualizada, pronto: crise. A narrativa perdeu o rumo, o roteiro é militante, o diretor deve ser comunista vegano. O mesmo cara que achava super verossímil um policial de meia-idade salvar Nova York descalço agora exige precisão balística, coerência histórica e justificativa ideológica pra cada chute que uma mulher dá. A régua ficou bem seletiva
É engraçado como quem mais reclama da lacração parece viver dela. Como se estivessem num eterno programa de auditório: cada vez que uma marca posta algo minimamente progressista, lá vão eles bater panela no Instagram, exigindo boicote como quem tá salvando a civilização de um apocalipse de purpurina.
E aí tem o tal do “woke”, que eles repetem como papagaio treinado, sem a menor ideia do que significa. É só mais uma senha, passada de cima para baixo, para sinalizar pertencimento à turma. Uma espécie de palavra mágica: pronunciou, pronto, já fez sua parte na cruzada contra tudo que assuste o mundinho em preto e branco onde vivem.
Então da próxima vez que gritarem "lá vem a lacração!", sorria. Porque provavelmente é só mais um episódio de Lacra ou Surta: edição ultraconservadora — e eles, como sempre, estão no papel principal.
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