Algumas bandas exigem tempo. Outras, não. Algumas se infiltram lentamente na nossa história, amadurecem conosco, só revelam sua beleza com o passar dos anos — como aconteceu comigo com o Wilco e o The National. Mas o R.E.M. não. O R.E.M. me encontrou pronto. Ou talvez tenha me moldado sem que eu percebesse.
Eu tinha 15 para 16 anos quando Out of Time explodiu. Era um fenômeno. No interior onde morava, poucas bandas alternativas chegavam com essa força — e até então, eu sequer tinha ouvido falar neles. Talvez os nomes de discos anteriores, como Document ou Green, estivessem perdidos em alguma coluna cultural ou matéria da Bizz, mas para quem vivia distante dos grandes centros, o impacto era sempre tardio.
Foi com Losing My Religion e Shiny Happy People que o R.E.M. apareceu ao grande publico. Não lembro qual veio primeiro, mas o fato é que um amigo se empolgou com aquelas músicas, e eu fui junto. Mas ao contrário de tantas outras bandas que seguimos por convivência, com o R.E.M. houve um tipo de identificação imediata. Comprei o disco. Gravei um especial da TV Manchete, apresentado por um crítico musical que falava com entusiasmo, passando clipes intercalados com entrevistas e pequenas análises. Ali tive meu primeiro contato com a trajetória da banda — e com um tipo de rock que não fazia questão de gritar para ser ouvido.
Naquele momento, a cena roqueira ainda era dominante. Guns N' Roses era quase religião nos bailes do Clube Umuarama, e Use Your Illusion estava em nove de cada dez mochilas adolescentes. Mas mesmo naquele ambiente, o R.E.M. dividia comigo uma atenção silenciosa e exclusiva. Era como se aquelas músicas sussurradas em inglês, cheias de metáforas e arranjos pouco óbvios, estivessem dizendo algo só pra mim.
Quando Automatic for the People foi lançado, em 1992, lembro de ter comprado o disco numa das duas lojas que havia na minha cidade. Era uma tarde qualquer de aula, e passei o dia com o LP debaixo do braço, esperando o momento de chegar em casa. Nessa epocamorava na zona rural e, ao final do dia, peguei a perua escolar. Em casa, coloquei o disco pra tocar. Era outro clima. Lento. Introspectivo. Denso. Tão diferente da energia solar de Out of Time. Dormi ouvindo. Acordei com o barulho da agulha batendo no fim do Lado A.
Era um tempo em que o dinheiro era curto. Cada disco comprado precisava valer. E esse valeu. Mesmo com o marasmo inicial, ouvi até decorar. E mesmo quando não entendia exatamente o que Stipe dizia, sentia que falava de algo importante. Pouco depois, em Bauru descobri o sebo Porão Discos, onde encontrei Green, Document, a coletânea de lados B Dead Letter Office, e o Best of R.E.M. — tudo em LP. Em 1994, Monster chegou com guitarras distorcidas e uma postura quase grunge, refletindo o espírito de um tempo que ainda estava tentando se recompor da morte de Kurt Cobain.
Nesse meio tempo, comprei o CD de Out of Time mesmo sem ter um aparelho. O CD começava a se popularizar uns anos depois, em 1994, e as lojas ainda estavam se adaptando. Em Bauru, no começo do Plano Real, quando o dólar estava tipo 1 por 1 encontrei um pequeno box importado com quatro singles da era Out of Time, chamado The Automatic Box, com lados B, faixas instrumentais e covers — um verdadeiro tesouro para quem colecionava com paixão e paciência, muito antes do streaming e das edições especiais em vinil colorido.
Em 1996, New Adventures in Hi-Fi não chegou às lojas da minha cidade. Acho que nem saiu no Brasil de imediato. Lembro de ver uma propaganda da loja London Calling na revista Bizz. Liguei, fiz um depósito bancário (coisa que hoje parece arqueologia), e alguns dias depois o CD importado chegou. Foi ali que ouvi pela primeira vez o nome de Patti Smith — que cantava com Stipe em “E-Bow the Letter”. Algum tempo depois, acabei comprando um disco errado de uma cantora country quase homônima. O tipo de erro que só quem viveu essa era pré-Google entenderia.
Up, lançado em 1998, não me encantou logo de cara. Ficou encostado. Mas anos depois, vi um programa na TV por assinatura chamado Storytellers, onde a banda apresentava versões acústicas de músicas desse álbum, intercaladas com histórias e comentários. Foi ali que o disco se redimiu. O tempo muda a forma como ouvimos.
Lembro de uma entrevista antiga do Stipe em que ele dizia: “Não gosto de fazer canções de amor. Tudo fica florido e besta quando você está apaixonado”. E mesmo assim ele fez At My Most Beautiful, uma das maiores canções de amor que já ouvi — direta, melancólica, absolutamente precisa.
No fim dos anos 1990, The Great Beyond foi lançada com a trilha do filme Man on the Moon, e mais uma vez o R.E.M. parecia estar sincronizado com minha vida.
Em 2001, fui ao Rock in Rio para ver a banda ao vivo. Dormi na praia, perdi uma unha tentando me manter no gargarejo (espero que o dedo daquela moça tenha ficado gangrenado), e fui recompensado com um show inesquecível. Michael Stipe passou por entre os fãs, e tive o privilégio de tocar sua mão — um gesto simples, mas que sintetiza o tipo de ligação que se cria com quem, por tanto tempo, compôs a trilha sonora da sua existência. Ouvi, ali, duas músicas inéditas que seriam lançadas no álbum Reveal meses depois: “She Just Wants to Be” e “The Lifting”. E quando Imitation of Life foi lançada, entendi que o R.E.M. ainda tinha muito a dizer.
Vieram mais discos — o irregular Around the Sun, o vigoroso Accelerate, e enfim o derradeiro Collapse into Now. E então, no dia 21 de setembro de 2011, a banda anunciou o fim. Por coincidência — ou sinal — era o meu aniversário.
Não sei o que isso diz sobre mim. Mas naquele dia, senti que algo se fechava junto. Uma banda que acompanhou meus anos formativos, que me educou musical e emocionalmente, encerrava sua jornada. Sem drama, sem turnê de despedida, sem grandes espetáculos. Apenas o silêncio elegante de quem sabe a hora de parar.
O R.E.M. nunca precisou me convencer. Eles chegaram com as respostas para perguntas que eu ainda nem sabia formular. Algumas bandas a gente escolhe. Outras nos escolhem. O R.E.M. me escolheu cedo. E ficou.
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