Até pouco tempo atrás, existia uma ideia quase romântica de que cultura era um território para o confronto — de ideias, estéticas, visões de mundo. A arte não precisava ser confortável, muito menos segura. Ela podia incomodar, provocar, até mesmo irritar. Era justamente esse desconforto que nos fazia crescer, pensar diferente, mudar de opinião ou solidificar convicções.
Mas de uns anos pra cá — digamos, de 2015 em diante — algo mudou. Palavras, livros, personagens, piadas e filmes que antes eram aceitos com naturalidade ou debatidos em voz alta passaram a ser percebidos como ofensivos, perigosos ou traumatizantes. Surgiu uma geração que, ao se deparar com qualquer conteúdo que atravesse sua zona de segurança, dispara o alarme do pânico cultural.
Essa geração não quer contextualizar, refletir ou confrontar ideias contraditórias — quer apagar. Se um autor escreveu algo que hoje soa datado, pronto: cancelado. Se uma piada não agrada aos ouvidos do moralismo digital, a sentença é a condenação em público e a exclusão do repertório coletivo. Não há diálogo — há litígio.
Monteiro Lobato? Racista. Woody Allen? Criminoso — ainda que nunca condenado e vítima de uma disputa judicial tão complexa quanto desconfortável. Roman Polanski? Injustificável, ainda mais com uma filmografia que é um tratado cinematográfico. E se por acaso alguém quiser separar o artista da obra, esse alguém também será rotulado, no mínimo, como conivente.
Até a cerimônia do Oscar, com seu verniz politicamente correto, não escapou do tribunal de hashtags: o prêmio a O Oficial e o Espião (Polanski) em Cannes foi suficiente para que Adèle Haenel anunciasse sua aposentadoria precoce, como quem abandona a cultura por desgosto ético. E o filme? Brilhante. Mas virou tabu.
A patrulha vai além do cinema. Dave Chappelle foi hostilizado por piadas que atravessaram as sensibilidades da vez. J.K. Rowling foi expulsa do universo que criou por declarações controversas sobre identidade de gênero. Mas para desgosto de muitos a obra dela rende demais para ser cancelada. E veja bem, não estou endossando o pensamento deles, nem conheço ela e só sei de sua obra porque não vivo em Marte, mas nunca li e tão pouco sou fã, ainda porque ja era adulto quando ela começou e mesmo filmes baseados em sua obra me interessavam mais no momento.
E o mais intrigante: essa geração tem plena capacidade crítica. Sabe usar palavras difíceis, lê manifestos, compartilha vídeos que explicam por que tudo é problemático. Mas é como se essa capacidade viesse casada com uma ansiedade paralisante diante da ambiguidade. A complexidade virou ameaça, e o pensamento nuançado foi trocado por manuais de conduta que se atualizam a cada semana.
O problema não é a crítica — é a histeria moral. Não é o desconforto — é a incapacidade de sustentá-lo. Numa era onde tudo pode ser sinalizado como ofensivo, a única cultura possível é a da censura disfarçada de zelo. E, no fim, o que se perde é a bagagem: livros deixam de ser lidos, filmes deixam de ser vistos, nomes são apagados de capas e biografias.
Cresce, assim, uma geração que consome cultura como quem anda em campo minado, sempre pronta a denunciar o que a machuca, mas cada vez menos disposta a escutar o que a desafia. O resultado? Um repertório cultural cada vez mais raso, higienizado e — ironia máxima — conservador. Porque, no fundo, toda essa moralidade progressista carrega uma nostalgia autoritária dos bons costumes: tudo deve ser puro, limpo, aprovado.
Veja bem, não se trata aqui de negar a subjetividade — tampouco de desconsiderar que reações emocionais diante de um artista ou de sua obra sejam moldadas por lembranças, afetos e experiências pessoais. A relação entre fã e ídolo é, muitas vezes, uma via torta de mão única que o fã insiste em crer recíproca. Há beleza nisso, e também risco.
Mas quando tentamos observar com o distanciamento que a razão impõe, uma coisa parece inevitável: todo artista carrega uma mácula. O que fazer, por exemplo, quando uma fã de David Bowie, sobrevivente de abuso, depara com o fato de que o cantor, ainda nos anos 1970, se envolveu com Lori Mattix — uma adolescente de 15 anos, que hoje descreve o episódio como mítico, quase sagrado? Mesmo que a própria Lori não veja problema algum, e diga ter sido feliz em perder a virgindade com alguém que considerava um deus — o incômodo permanece. É fácil para um fã Homem se esquivar disso e nem podemos cobrar dele essa preocupação nesse sentido, mas acredito que para uma Mulher o conflito possa ter pesado, mesmo que a obra permaneça intocada.
A pergunta, então, ecoa: o que fazer com isso? Devemos apagar, esquecer, cancelar, banir?
Cultura, no entanto, não é zona segura. É território de embates. Quem não suporta a colisão de ideias talvez devesse abrir mão da arte e focar em outras formas de expressão. Como por exemplo, administrar condomínio — que é bem mais previsível e, convenhamos, também envolve muito julgamento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário