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terça-feira, 15 de julho de 2025

O dia em que o cinema me beijou (e outras sessões da memória)


Eu não me lembro exatamente da primeira vez que fui ao Cine Bauru 1 ou  2. Talvez porque, na época, minha atenção estivesse mais voltada à pipoca do que ao projetor. Ou porque minha memória, como certos filmes da Sessão da Tarde, insiste em cortar para os comerciais nos momentos importantes. 

Mas uma cena resiste bravamente ao esquecimento: Os Garotos Perdidos, lá por 1987 ou 88. Eu fui sozinho com minha prima. Sozinho com uma prima não é exatamente sozinho, nem exatamente acompanhado — é uma espécie de zona cinzenta da adolescência (sinto que roubei isso de alguém. Verissimo ?). Eu devia ter uns 12 ou 13 anos, idade em que a gente acha que sabe tudo sobre vampiros e nada sobre a vida. O cinema parecia gigante, sombrio, mágico. Lembro de não entender metade do enredo e ainda assim sair com a sensação de ter vivido algo épico. A pipoca tinha gosto de coragem.


Na década de 90, minha cidade já estava sem cinema. Foi um trauma cultural que só não me destruiu completamente porque inventaram o ônibus dos estudantes. Toda quarta-feira — dia de meia-entrada, também conhecida como a salvação do proletariado cinéfilo — eu embarcava rumo a Bauru. O ônibus parava no Liceu Noroeste, a duas quadras do paraíso.

A caminhada até os cinemas era rápida, mas eu fazia questão de dramatizar, como se estivesse cruzando o deserto do Saara em busca da última sessão de um filme do Kubrick. Que, aliás, assisti ali mesmo: 2001 – Uma Odisseia no Espaço, durante um festival. Já tinha visto o filme umas três vezes na TV, sempre com um primo me explicando que "na verdade, esse monolito aí representa outra coisa". Mas ali, na tela grande, tudo mudou. Era como ver Deus jogando xadrez com a humanidade em câmera lenta. Saí da sessão com vontade de ser astrônomo, ou pelo menos comprar um telescópio. Não fiz nenhum dos dois mas hoje tenho um APP no smartphone.

Foi também nesse cinema, em algum ponto nebuloso dos anos 90, que dei meu primeiro beijo. O filme eu não lembro — juro que não é desculpa — mas lembro da cadeira desconfortável, da mão suando, do medo de errar a pontaria e acertar o nariz dela. Foi um beijo curto, quase experimental. Mas, para quem amava cinema, ser beijado dentro de um era como entrar oficialmente para a academia do Oscar.

Tive dois conhecidos que moravam num prédio ao lado dos cinemas. Certa vez, por algum motivo que a memória prefere não detalhar (provavelmente perdi a sessão discutindo com a bilheteira se era meia-entrada de verdade ou não), fui até o apartamento deles. E lá, entre refrigerantes mornos e VHSs espalhados, conheci Kurosawa. Vimos Sonhos. Ou melhor, vi um ou dois dos episódios — até hoje não sei se era um filme ou vários, ou se Kurosawa era um filósofo japonês disfarçado de diretor. Mas fiquei impressionado com a ideia de que podia haver poesia mesmo sem explosões.

Claro que os cinemas foram demolidos — afinal, nenhuma cidade moderna resiste à tentação de transformar memória em estacionamento. O Bauru 1 e o Bauru 2 caíram em meados dos anos 2000. Foi como ver o fim de um épico em que o mocinho perde. Ainda passo por ali às vezes. Tem uma farmácia no lugar, ou um banco, ou algo igualmente deprimente, sei lá. Na verdade nunca mais passei, evito aquela rua. Ou melhor, não evito mas ela não me leva a mais nada. Mas sozinho em casa se eu me concentrar, consigo ouvir os ecos das sessões, o chiado da fita, a tosse de alguém que veio só pra dormir.

Alguns lugares não morrem — apenas mudam de forma. Os cinemas de rua de Bauru continuam em mim, como trilha sonora que não sai da cabeça. Porque, no fundo, não era só o filme que a gente via. Era a vida que passava pela tela.

E, às vezes, nos beijava de volta.


Em tempos: O filme do Beijo, foi "Uma Escola Atrapalhada", mas juro que queria esquecer


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