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sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Nick Cave - Piedade de Mim



Ela estava em pé e imovel
O vestido branco como a neve
e a coroa de cachos dourados
brilhavam com uma claridade desavergonhada
que se queimava nos olhos. Seu olhar tremeluzia
na escuridão
como uma chama prateada mergulhando em ouro
- um Lumiar em minha cegueira temporária


Não espere uma biografia tradicional. Piedade de Mim, HQ do alemão Reinhard Kleist, não quer explicar nada. Quer fazer você sentir. É uma obra que mistura tempos, estados mentais e realidades alucinadas para retratar Nick Cave — e faz isso mais como "Não Estou Lá" do que como "Um Completo Desconhecido'. Quem não conhece a obra de Cave certamente vai se sinter perdido, mas quem topar a viagem pode sair transformado.  Se você é daqueles que pensam "ah, eu queria que fosse...",  não é definitivamente pra você !

O próprio Cave aparece em cena interagindo com personagens reais — como a parceira criativa (e amorosa) Anita Lane e o guitarrista Mick Harvey — e também com fantasmas das suas músicas, como Elisa Day. Às vezes, é ele com ele mesmo: um pistoleiro envelhecido saído de um western esquecido, uma versão jovem e debochada, uma barataou um Quasímodo moderno tentando escapar da turba. A HQ é um caleidoscópio da psique artística de Cave: morte, fé, amor, redenção, decadência — tudo em colisão permanente.

Conhecer o pós-punk londrino e berlinense dos anos 1980 — Siouxsie, Bauhaus, Psychedelic Furs — ajuda. As referências estão lá, mas não vêm com explicações. Elas aparecem secas. Se você pescou, ótimo. Se não, segue o baile.

Em um dos momentos-chave da HQ, Cave diz a Anita Lane: “De qualquer forma, não tô nem aí para o que esperam de mim. Quero escrever sobre aquilo que sou.” Essa frase resume o espírito da obra: visceral, introspectiva e livre de amarras.

Kleist apesar da fidelidade histórica, está mais interessado na fidelidade emocional. O traço preto e branco expressionista casa perfeitamente com o mundo de Cave — um universo de sombras, cruzes, suor e poesia. Cave, afinal, sempre foi mais um pregador gótico do que um cantor de rock. E a HQ acerta ao traduzir isso em imagens: é como se Cave estivesse cantando cada página com sua voz grave, em um sermão sobre culpa, paixão e perdição.

A graphic novel foca no começo de tudo. No fim dos anos 1970, em Melbourne, Cave formou a banda The Boys Next Door. Jovens, brancos, raivosos e teatrais, fizeram barulho o suficiente para cruzar o mundo e chegar em Londres, onde viraram The Birthday Party. Era um som desorganizado, violento, catártico. Uma parede de ruído e literatura decadente. Um campo de testes para os temas que Cave levaria adiante: religião, carne, dor e salvação.

À deriva como uma nau no mar revolto, sem bússola nem porto à vista, a guinada definitiva na trajetória de Nick Cave veio com Blixa Bargeld, do Einstürzende Neubauten — banda alemã que fazia música com furadeiras, chapas metálicas e ecos industriais. Ao lado dele e Mick Harvey do The Birthday Party, Cave fundou o Nick Cave and the Bad Seeds. Enfim, uma formação instável por natureza, quase líquida, que atravessava com desenvoltura o blues, o gospel, o pós-punk, o rock experimental e até trilhas de velório. Foi nesse caldeirão sonoro que Cave deixou de ser apenas um vocalista performático e assumiu a forma quase mítica de um pregador do fim dos tempos — o Johnny Cash do lado mais escuro da lua.

E então... veio o Brasil.

Em 1989, atolado em vícios, luto e desilusões amorosas, Cave decidiu sumir. Largou a Europa e apareceu em São Paulo, onde se casou com uma moça que conheceu durante os shows que aqui fezera em 89, e que virou a se tornar a mãe de seu primeiro filho, brasileiro (e por pouco não foi, ja que Jethro, que só conheceu o Pai com 7 anos nasceu pouco tempo depois). Longe da cena europeia e dos holofotes, virou quase um fantasma paulistano: o gringo pálido que aparecia em botecos da Zona Oeste. 

Mas o isolamento fez bem. Como um Leonard Cohen dos Trópicos, em um estúdio no Sumaré e depois mixado em Berlin, ele gravou The Good Son (1990), um disco mais calmo, melancólico e reflexivo.  Essa brisa da febre tropical rendeu a faixa “Foi na Cruz”, onde ele canta em português, misturando o gospel sulista com o catolicismo da periferia paulistana. Uma beleza dissonante, como um salmo cantado fora do tom — úmido, íntimo, com ecos de capela abandonada. Ainda que nem tudo funcione o tempo todo, há passagens de lirismo e profundidade que mais do que compensam os tropeços.

Essa fase brasileira, geralmente tratada como curiosidade exótica, é muito mais do que isso. Foi um ponto de virada. Aqui, Cave trocou o caos performático pelo lirismo trágico que definiria sua fase mais madura. E Piedade de Mim apesar de passar meio rasteiro em uma pagina, capta essa transição com precisão e sensibilidade.

Reinhard Kleist não desenha Nick Cave — ele o invoca. Em cada traço anguloso, quase aracnídeo, há algo de encantamento sombrio, como se Cave estivesse sempre prestes a se dissolver na sombra de si mesmo. Magro, esguio, de membros que parecem prolongamentos do próprio tormento, ele se move pelas páginas com a hipnose de um encantador de espectros. Kleist não busca apenas retratar o músico: ele o reimagina em carne gráfica, costurado entre tempos e estados de espírito, como se a música pulsasse direto do nanquim. Em seus desenhos, a Berlim dos anos 80 exala sufoco, devaneio e desespero — uma cidade que respira através de janelas embaçadas e quartos afogados em eco. Há humor aqui, também — sutil, quase cruel — entre gestos exagerados e olhares oblíquos, como uma risada abafada no fundo de uma catedral vazia. A trilha sonora de Cave, densa e litúrgica, não é ouvida, mas sentida: ela escorre pelas bordas do preto e branco, numa fluidez temporal onde a juventude e a ruína, o êxtase e a queda, se encontram sem pedir licença. É ali, nesse lugar entre o grito e o silêncio, que Kleist encontra sua mais alta nota.

Para os fãs, a HQ é um prato cheio de referências e sensações. Para os iniciantes, pode ser um mergulho escuro e sem guia. Mas quem atravessar a névoa vai encontrar ali o retrato de um artista que nunca teve medo de encarar os próprios demônios — e transformá-los em arte.

E assim, o livro começa como um labirinto de espelhos.
E termina como um espelho no qual você vê, de leve, o que ainda não entendeu.

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