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sábado, 16 de agosto de 2025

Eddington

 Perdi meu melhor amigo na pandemia. Não gosto muito de usar o termo “melhor amigo” — soa adolescente demais —, mas é a forma mais justa de expressar o que sentia. Não era o amigo mais antigo, mas era o que permaneceu na minha cidade, aquele com quem dividi infância, adolescência e boa parte da vida adulta. Mesmo que a convivência já tivesse diminuído, continuávamos nos encontrando quase toda semana. E então, de repente, não mais. A pandemia não levou apenas pessoas, mas também o ritmo dos dias, a ilusão de continuidade, a segurança de que o banal estaria sempre ali.

Talvez por isso Eddington me atinja de modo tão direto. O filme encena o vazio e a paranoia de um tempo em que até as figuras de autoridade se revelaram incapazes de oferecer respostas. Não falo só dos personagens: penso também no mundo real, no fato de Donald Trump ter ocupado a presidência dos Estados Unidos — eleito duas vezes, como se fosse um troféu da burrice coletiva — ou de figuras como Nikolas Ferreira e Carla Zambelli serem levadas a sério no Brasil. O problema não é apenas a brutalidade do discurso, mas a indigência intelectual transformada em método: frases mal articuladas, conceitos distorcidos, raciocínios que fariam corar um aluno de ensino fundamental — e, ainda assim, seguidos com devoção. É nesse caldo de mediocridade que a desorientação de Eddington encontra seu espelho.

Ari Aster segue sendo um cineasta da inquietação e, mesmo ao se aventurar num faroeste atravessado por elementos de paródia, não abandona o terror. Ele apenas troca de máscara. O que antes eram espíritos e maldições, aqui se converte em medo difuso, alimentado pelo confinamento, pelas ruas mascaradas e pelos diálogos atravessados de paranoia. O horror não desaparece: só muda de forma, deixando o sobrenatural para dar lugar ao trivial. Ele se insinua nos detalhes, no intervalo entre uma videoconferência e um discurso político, na hesitação de um personagem diante da própria incapacidade de formular frases com sentido. É o terror da banalidade, da vida cotidiana, transformado em matéria cinematográfica.

Ambientado em maio de 2020, o filme encena um microcosmo da confusão política contemporânea: a pequena cidade americana dividida entre o entusiasmo do prefeito Ted Garcia (Pedro Pascal) por um gigantesco centro de dados e a resistência de ambientalistas que enxergam catástrofes ecológicas à frente. Nesse tabuleiro surge o xerife Joe Cross (Joaquin Phoenix), atormentado por rancores pessoais e decidido a concorrer ao cargo, transformando divergências públicas em duelo privado.

E é aqui que a ficção se cola ao real. Joe é o equivalente ao nosso “Zé”: o homem comum, anônimo, sem brilho. Cross remete tanto ao peso da cruz quanto ao temperamento irritadiço e à encruzilhada existencial em que o personagem se encontra. Um sujeito que não domina a gramática — seus slogans de campanha saem com erros grotescos —, não organiza raciocínios, mas encontra seguidores exatamente por encarnar essa confusão crua. É o mesmo mecanismo que sustenta Trump, Zambelli ou Nikolas Ferreira: o erro vira autenticidade, a ignorância se converte em bandeira. O homem médio erguido como herói porque “fala como a gente”, quando na verdade só expõe a falência de qualquer horizonte político.

Do outro lado, Ted Garcia combina a sonoridade simpática de “Ted”, quase pop, com um dos sobrenomes latinos mais comuns nos EUA. O resultado é a construção de um político progressista de imagem polida, próximo e representativo, mas igualmente cheio de contradições.

Entre o homem qualquer e o político calculista, o embate escancara um duelo que é menos sobre projetos coletivos e mais sobre o vazio que a pandemia deixou para cada indivíduo preencher como podia. O resultado é uma arena de discursos atravessados, onde ninguém consegue sustentar a coerência das próprias convicções por mais de alguns minutos — reflexo direto da política real em tempos de feeds e algoritmos.

Phoenix encarna um homem raivoso e mal-articulado, cuja falta de educação formal se traduz em adesivos de campanha com erros gramaticais e explosões impulsivas em protestos transmitidos ao vivo. Pascal, em contrapartida, surge como político calculista, que fala em nome da ciência quando convém, mas ignora previsões científicas sobre os impactos ambientais do projeto que defende. Esse contraste — a impulsividade emocional contra a racionalidade estratégica — é o coração do filme.

 Aster, no roteiro, recusa as caricaturas fáceis: o conservador não é apenas um bruto irracional e o progressista tampouco surge como santo altruísta. O filme respira justamente nesse terreno ambíguo, feito de contradições que ninguém gosta de encarar. Ao ironizar tanto a direita quanto a esquerda, Aster garante um resultado que incomodará — sobretudo aqueles mais ansiosos por enxergar no cinema um espelho confortável de suas convicções. Para esses, Eddington será mais do que um incômodo: será quase uma ofensa pessoal.

Aster mergulha também no teatro das redes sociais. Lives feitas no calor do momento, protestos transformados em selfies e jovens ativistas que mais parecem ensaiar performances para seduzir potenciais parceiros do que mobilizar uma causa real. O filme toca nesse ponto com ironia e desconforto: o ativismo político se reduz a estética, tripé e iluminação antes do discurso.

Uma geração formada politicamente em timelines, sem arcabouço histórico ou ideológico sólido: é essa a imagem mais incômoda que Eddington projeta. Jovens que se educaram politicamente a partir de feeds instáveis, entre memes e slogans, e que muitas vezes confundem engajamento com curtidas ou discursos inflamados com militância real.

Entre a autoanálise paralisante de militantes privilegiados e a adesão rasa a slogans, o resultado é uma radiografia incômoda de uma geração formada politicamente em timelines, sem arcabouço histórico ou ideológico consistente. Há, claro, boas intenções, mas também uma ingenuidade que beira o amadorismo político: protestos que se confundem com performances estéticas, discursos que soam como threads improvisadas no Twitter, causas abraçadas mais pela visibilidade que oferecem do que pelo risco real de defendê-las.

A cultura do cancelamento, por exemplo — que nem sequer aparece no filme, mas serve aqui como paralelo — ilustra bem essa lógica: uma tentativa juvenil de “mudar o mundo” que soa antes como catarse moral do que como transformação efetiva. É como se bastasse excluir alguém do debate para que estruturas inteiras deixassem de existir. O problema é que a história mostra o contrário: é sempre mais fácil imaginar o fim do mundo do que derrubar pilares como o patriarcado ou o capitalismo, ainda tratados como intocáveis. Nesse sentido, Eddington não apenas aponta a superficialidade dessa militância digital, mas também sua fragilidade: deseja a revolução, mas tropeça na falta de memória histórica e na ausência de ideologia sólida.

Não faltam também as sombras que rondam esse cenário: negacionismo pandêmico, teorias conspiratórias sobre vacinas e microchips, o fantasma de George Soros, gurus espirituais de biografia inventada (Austin Butler, como um picareta carismático), todos compondo o retrato de um país que se alimenta de paranoia. O filme não acusa apenas a fragilidade dos indivíduos; ele mostra como essa vulnerabilidade é explorada — por políticos populistas, por líderes carismáticos de ocasião, por todos aqueles que transformam medo em capital. Se a história se passasse no Brasil, poderíamos facilmente trocar alguns nomes: bastaria acenar para as teorias tortuosas de um Olavo de Carvalho, para os fiéis seguidores de coaches travestidos de filósofos, ou ainda para a retórica grotesca que insiste em comparar Hitler a movimentos de esquerda — um raciocínio que só encontra lógica na cabeça de quem já tem predisposição natural a acreditar em qualquer palestra motivacional de auditório.

Ao longo da narrativa, Aster espalha pequenas gags que, vistas isoladamente, podem soar como piadas fáceis — zombarias rápidas sobre teorias conspiratórias, debates estéreis em videoconferências ou protestos transformados em espetáculo performático. À primeira vista, parecem apenas episódios soltos, quase uma colagem de absurdos do cotidiano pandêmico. Mas esse acúmulo tem função: pavimenta o caminho para o mergulho no terceiro ato, quando o humor finalmente se deforma em histeria coletiva e o ridículo ganha sua expressão mais brutal na violência. Até porque, convenhamos, ninguém precisa que Ari Aster reinvente a roda: cada espectador já traz consigo a própria bagagem daqueles dias de confinamento, máscaras e paranoias, pronta para ressoar diante da tela.

É aí, porém, que reside o paradoxo do filme. Se por um lado a preparação sugere a promessa de uma catarse, por outro o clímax falha em cumprir esse movimento. O caos e a violência que irrompem no final não se convertem em comentário social nem em desfecho catártico, mas em espetáculo um tanto gratuito — quase como se Aster buscasse refúgio no gênero para escapar das perguntas mais duras que vinha levantando. Há potência no percurso, mas a conclusão esbarra na própria impossibilidade de oferecer respostas. Porque se 2020 nos ensinou algo, foi justamente a experiência de viver desorientados, imersos em paranoia e ruído, sem mapa para atravessar o labirinto. 

Nesse sentido, talvez o filme seja mais honesto do que parece: o clímax caótico é proposital, uma tradução do delírio coletivo de então. Ainda assim, a frustração persiste — reconhecer a intenção não elimina a decepção de ver o filme optar por reproduzir o ruído, sem jamais se arriscar a decifrá-lo.

Se por um lado Aster demonstra habilidade ao construir tensões políticas e sociais, por outro desperdiça talentos valiosos do elenco. Emma Stone, embora tenha função narrativa como a esposa deprimida de Joe, carece de bons momentos e permanece subaproveitada, quase uma sombra em cena. Já Austin Butler aparece numa chave de caricatura: seu personagem de guru espiritual funciona mais como piada sobre falsos profetas e coaches do que como figura dramática. Pior, sua presença acaba atrapalhando o fluxo da história, servindo apenas como desculpa para afastar Louise do núcleo central. Se sua participação fosse cortada, a trama pouco sentiria falta — poderia ser substituída por qualquer outro personagem episódico, sem alterar o resultado.

Por isso, mesmo irregular, Eddington merece atenção. Porque incomoda, porque provoca, porque transforma telas de celular em personagens tão centrais quanto os humanos. E porque, ao fim, reafirma que o verdadeiro terror de Ari Aster não nasce de fantasmas ou demônios, mas da vertigem coletiva de um mundo que já não consegue dar sentido ao próprio colapso.




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