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domingo, 10 de agosto de 2025

A Hora do Mal


No cinema — assim como na literatura, na música ou no teatro — a ideia de “originalidade absoluta” é um mito confortável. Quando alguém se encanta por algo que julga inédito, o mais provável é que esteja diante não de uma ruptura histórica, mas de sua própria ignorância sobre o que veio antes. É um fenômeno recorrente: aquilo que não conhecemos, chamamos de novo. Desde a epopeia grega até o romance moderno, passando pelos contos orais e pela dramaturgia elisabetana, tudo já foi feito. O que se renova, de fato, não é a matéria-prima da história, mas a maneira como ela é moldada.

O que torna um filme relevante não é um suposto frescor temático, e sim o modo como o autor desenvolve sua narrativa — e, sobretudo, a sintonia que estabelece com o seu tempo. A “originalidade” que realmente importa está no instante histórico em que a obra é produzida e no quanto de verdade ela consegue colocar em cena, reverberando com o mundo ao redor.

E há ainda outra camada: um filme pode sobreviver ao seu próprio contexto e ganhar novos significados conforme o olhar que o recebe. Interpretamos o passado com as lentes do presente, e essa releitura é tão legítima quanto a intenção original do diretor. Em última instância, é a leitura pessoal que dá sentido à obra. Se aquilo que está em tela valida uma percepção íntima, a função do filme — seja ela qual for — já está cumprida.

No cinema de terror, por exemplo, elementos como o escuro, o desconhecido e a sensação de rejeição não são apenas bem-vindos: são estruturais. O famigerado jump scare — tantas vezes acusado de ser um recurso barato — é prova disso. Não existe técnica ruim em si, apenas má aplicação. O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick, é repleto de jump scares, e nem por isso deixa de ser considerado, por muitos — inclusive por quem nem aprecia o gênero — o melhor filme de terror já feito. Não por acaso, dois dos grandes exemplares de terror lançados em 2025 fazem referência explícita a Kubrick.

Nos últimos anos, termos como “terror elevado” ou "pos horror" têm ganhado popularidade, revelando mais sobre o preconceito contra o gênero do que sobre qualquer suposta “nobreza” de determinados filmes. É um rótulo que parte da ignorância histórica: como se o terror sempre tivesse sido um campo de exploração rasa e, só agora, tivesse descoberto profundidade temática.

Essa lógica se repete em outros rótulos. “Trash” é um deles — usado, muitas vezes, para desqualificar obras sanguinolentas ou debochadas, como se o exagero fosse sinal de incompetência. Entre os muitos mal-entendidos que cercam a história do cinema, poucos são tão persistentes quanto a ideia equivocada de “filme B” como sinônimo de obra malfeita. Na realidade, o termo nasceu de um arranjo industrial muito específico: eram produções enxutas, de curta duração e orçamento limitado, programadas para acompanhar um título principal em sessões duplas. Longe de serem meros “tapa-buracos”, essas obras tinham seu próprio ecossistema criativo, com equipes inteiras dedicadas a explorar narrativas mais ousadas justamente por não carregarem o peso das apostas milionárias.

Foi nesse terreno menos vigiado que floresceu uma liberdade rara: histórias excêntricas, abordagens narrativas fora do padrão e soluções visuais engenhosas para driblar a falta de recursos. Muitas vezes, o frescor dessas produções superava a previsibilidade dos filmes de prestígio que as precediam na tela.

A letra “B”, portanto, não é um rótulo de mediocridade, mas uma referência a outro lugar na escala de produção — como num time de futebol em que um time B ou Reservas não significa incompetência, inferioridade em relaçao ao titular. e sim estar em um campo diferente, com suas próprias regras e possibilidades.

Entre os debates mais artificiais que rondam o estudo do cinema de gênero está a suposta fronteira entre “terror” e “horror”. Para alguns, trata-se de categorias distintas, quase estanques; para mim, essa cisão soa mais como um capricho acadêmico do que uma necessidade real. Pegue House of the Devil, de Ti West: durante a maior parte do tempo, o filme se sustenta em atmosfera, insinuação, tensão crescente — o chamado “terror” segundo essa lógica classificatória. De repente, uma cabeça rola, e, num piscar de olhos, estaríamos no território do “horror”. Mas o que realmente mudou? A essência do filme não se transformou; foi apenas a superfície que se tingiu de sangue.

O problema é acreditar que a arte deve obedecer a compartimentos rígidos, como se o cinema fosse um laboratório químico onde cada frasco contém apenas um elemento puro. O oposto é verdadeiro: a arte existe para subverter fórmulas, atravessar fronteiras e borrar linhas que teóricos passam anos tentando desenhar.

Se quisermos recorrer a imagens mais concretas, poderíamos dizer que o “terror” é a presença invisível, o cheiro de morte antes de encontrar o corpo; o “horror” é o tropeço no cadáver, a materialidade incontornável daquilo que antes era apenas sugestão.

Já o suspense, muitas vezes tratado como gênero, é na verdade um mecanismo narrativo que respira da mesma atmosfera do terror: ambos exploram a expectativa, o temor do que pode acontecer. A diferença é que, no suspense, não raro o desfecho poupa o espectador — a vítima foge, o perigo é contido, a ameaça se dissolve. É um jogo de corda esticada que, por vezes, se recusa a arrebentar.

O cinema não se encaixa em fórmulas. E A Hora do Mal (2025), dirigido por Zach Cregger, confirma essa máxima. Ambientado em um mundo pós-pandêmico — onde a tensão coletiva ainda pulsa —, o filme retrata uma comunidade assombrada pela violência, pela desconfiança e pela acusação que circula como rumor contagioso. São tempos em que se condena com rapidez, se imuniza a compaixão e se liquida qualquer diferença em nome de uma moral expurgada.

Na tradição do gênero a narrativa se estrutura em torno da construção e transgressão de fronteiras — não apenas físicas, mas éticas e simbólicas. A Hora do Mal explora essas fissuras. A epidemia não matou apenas corpos, mas escorreu em paranoia: vizinhos se viraram uns contra os outros, acusações surgem rápidas como vírus, e uma falsa moralidade se autoconfirma autoritária e violenta.

É nesse contexto que entra um dos elementos mais perturbadores da contemporaneidade: as câmeras — sejam as corporais (BWCs), sejam as empunhadas por cidadãos. Prometidas como mecanismos de controle e responsabilização, há provas de que essas câmeras nem sempre cumprem o papel heroico que se espera (seja no mal utilizado VAR ou portadas por cidades do Bem em Aviões). Em A Hora do Mal, a presença maciça de vigilância se justifica com paternalismo, mas atua como lente distorcida que amplifica subjetividades vigilantes postas como justiça.

Refletindo sobre isso, o crítico cultural John Berger já chamava atenção para a maneira como as imagens são construídas e politizadas, não confiáveis como “olhos neutros”, mas carregadas de intenção e poder. O próprio espectador, ao assistir, decide: “o que vejo é verossímil?”, “quem me ativa essa interpretação?”. Nesse aspecto, A Hora do Mal, como arte, devolve a cena ao espectador — afinal, como se sustenta essa moral de vigilantes se não houver quem a legitime ?

A Hora do Mal (2025) surge num momento em que o horror cinematográfico encontra terreno fértil não apenas no sobrenatural, mas no cotidiano distorcido pela paranoia moral, pela violência institucional e pelo espetáculo da vigilância. O filme articula seu terror naquilo que há de mais perturbador na vida contemporânea: a facilidade com que a sociedade, movida por uma noção enviesada de “justiça”, se volta contra o indivíduo, legitimando crueldades em nome de uma falsa moral.

Ambientado num cenário onde a fronteira entre vítima e algoz é turva, o longa se ancora no clima pós-pandemia — um período marcado pelo recrudescimento de discursos punitivistas, pela ascensão da vigilância como ferramenta de controle e pelo linchamento simbólico mediado por redes sociais. Nesse contexto, a monstruosidade não é apenas um traço das criaturas que habitam a tela, mas das pessoas comuns, que se transformam em agentes de violência ao reivindicar para si o papel de defensores do “bem”.

É aqui que a leitura de John Berger se torna crucial. Em Ways of Seeing (1972), o autor chamava atenção para a maneira como as imagens são construídas e politizadas — nunca confiáveis como “olhos neutros”, mas carregadas de intenção e poder. Essa perspectiva ressoa fortemente na narrativa de A Hora do Mal, onde câmeras corporais de policiais, registrando atos hediondos, são apresentadas não como instrumentos de transparência, mas como armas retóricas, moldando a percepção pública e justificando atrocidades. O filme escancara o que Berger antecipava: a imagem como “prova” é uma ilusão confortável, pois o enquadramento, a seleção e o contexto determinam o que vemos — e, sobretudo, o que somos impedidos de ver.

Ao expor a violência policial como performance para a câmera, o longa dialoga com uma realidade em que a filmagem se torna espetáculo, não fiscalização. Policiais cometem horrores diante da lente não apesar de estarem sendo gravados, mas porque sabem que controlam a narrativa sobre o que essas imagens significarão. O horror, portanto, não está apenas no sangue ou nas sombras, mas no sorriso satisfeito de quem aperta o “rec” acreditando que já tem a história do seu lado.

O olhar pós-pandêmico do filme também ecoa debates emergentes sobre o perigo da vigilância convertida em espetáculo. Como apontam estudos do professor David A. Harris, especialista em justiça criminal, embora essas câmeras possam reduzir casos de abuso em alguns contextos, elas não garantem transparência total nem geram confiança pública automaticamente — sobretudo quando o acionamento das câmeras é seletivo ou controlado pela própria polícia. Em A Hora do Mal, essa tensão é encenada de forma contundente: a câmera está presente, mas a ética desaparece.

O título original do filme, Weapons, carrega uma carga simbólica poderosa que vai além do sentido literal de armamento físico. Ele evoca as múltiplas formas de violência presentes na narrativa — não só as armas tangíveis, mas também as atitudes agressivas, os julgamentos precipitados e as tensões sociais que se tornam armas invisíveis contra o outro. Nesse sentido, Weapons sugere que o conflito principal não é apenas externo, mas interno, manifestado nas dinâmicas de poder, medo e moralidade distorcida que permeiam o ambiente do filme. É uma reflexão sobre como as “armas” podem ser tanto objetos quanto comportamentos, capazes de ferir e destruir de maneiras diversas e igualmente devastadoras.

O recurso recorrente de filmar os atores de costas, mesmo após já terem sido apresentados de frente, é uma escolha estilística que reforça a atmosfera de desconfiança e isolamento que permeia o filme. Essa técnica cria uma distância emocional entre o espectador e os personagens, sugerindo que há sempre algo oculto, uma verdade que permanece fora do alcance imediato. Ao negar o rosto como ponto fixo de identificação, o diretor subverte a expectativa tradicional de proximidade e intimidade, ressaltando a fragmentação das relações humanas em um contexto marcado pelo medo e pela vigilância constante. Essa estratégia visual espelha o tema central do filme: a dificuldade de enxergar o outro em sua totalidade, o permanente estado de suspeita e o desafio de confiar em um mundo onde as certezas são armadilhas.


Por fim, A Hora do Mal exemplifica um terror multifacetado que vai além dos sustos óbvios e do gore explícito, embora não hesite em usar sangue e violência gráfica para chocar e provocar. O filme também incorpora um humor negro afiado, especialmente em seu desfecho, que alivia e ao mesmo tempo intensifica a sensação de desconforto. Não se trata apenas de uma explosão escarlate atrás de cada porta, mas de um mal que se infiltra nos olhares desconfiados, nos silêncios cúmplices e na voracidade com que julgamos antes de ouvir. Essa combinação de violência explícita, humor ácido e atmosfera sufocante cria um retrato perturbador da erosão do tecido social, onde o verdadeiro horror reside tanto nas ações visíveis quanto nas atitudes invisíveis que corroem a confiança coletiva.

Em tempos em que “encontrar culpados” virou um esporte moral, A Hora do Mal lembra que o monstro pode estar no espelho, não na forma grotesca, mas na solidez de nossas certezas. A arte, aqui, cumpre seu papel: desconfiar de verdades fáceis e expor que nada é totalmente novo. Toda imagem, como toda narrativa, é um rearranjo — limpo e polido — de algo que já existia, moldado para que acreditemos estar vendo pela primeira vez.

Se você chegou até aqui, tem a sorte de não saber muito sobre a história do filme. Evite sinopses e resenhas, seja em texto ou vídeo. Assista sem expectativas, de mente e olhos abertos — é justamente essa surpresa que faz o filme ganhar toda a sua força. Fui ver o filme sabendo apenas quem era o Diretor e sem saber se era filme de monstro, vampiros, terror psicológico ou qualquer informação, mesmo o plot inicial onde o filme desenvolve seu mistério.



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