Eu me recordo.
Era 31 de outubro de 1993 quando vi meu primeiro Fellini. Não porque eu tivesse memória de elefante — longe disso. Eu só me recordo porque foi o dia em que Fellini morreu, e eu acabei de conferir no Google. Mas naquela noite, a casa estava cheia de parentes. Tive de ceder meu quarto — provavelmente à namorada do meu tio, na época — e fui parar na sala, num colchão dividido com ele e mais alguns. Dormir, de fato, eu não dormi. Quem iria pregar os olhos sabendo que a TV mostraria um filme com aquele nome sonoro e enigmático: Amarcord?
Eu me recordo.
A notícia veio no Jornal da Globo. Como homenagem, a emissora mudou a programação — coisa que fazia de vez em quando, naqueles anos ainda menos cínicos — e enfiou Fellini na grade. E lá fui eu, desavisado, assistir àquela saga familiar feita de pedaços. E tive a sensação estranha de que Fellini, de algum modo misterioso, conhecia a minha família e havia filmado sobre ela. Estava tudo lá: as tias neuróticas, os almoços em que todos falavam ao mesmo tempo e ninguém entendia nada, as intromissões na vida alheia, as brigas triviais elevadas a tragédias, os dramas desproporcionais sobre bobagens. Era como ver o nosso almoço de domingo atravessando o Adriático e ganhando sotaque de Rimini.
Eu me recordo.
Na dublagem brasileira, que infelizmente era o que tínhamos na época, a personagem Gradisca ganhou outro nome, curioso e improvável: “S’il vous plaît”. Em italiano, “Gradisca” já trazia a graça do convite — “sirva-se”, “aproveite” —, e na versão em português ela veio travestida de francês, como se tivesse atravessado fronteiras sem pedir licença. A troca podia soar estranha, mas não lhe roubava o encanto. Continuava sendo a mesma figura magnética, a mulher inalcançável que concentrava em si os desejos de toda uma cidade. Apenas mudava a chave: do apelo provinciano para uma elegância sonora, quase sofisticada, sem perder em nada o charme com que Fellini a esculpiu.
Eu me recordo.
Naquele tempo eu já gostava muito de cinema, mas ainda estava preso ao circuito Blockbuster — expressão que só aprenderia depois. Diretores, eu só conhecia de nome os óbvios: Spielberg e Hitchcock, que já eram estrelas pop. Foi só em 1994, no cursinho, que a chave da cinefilia começou a virar — embora os sinais sempre estivessem lá. A virada mesmo veio na faculdade, quando conheci um amigo cujo pai adorava Amarcord e tinha gravado o filme em VHS. Nunca cheguei a conhecer o pai, que morreu antes que me fosse apresentado, mas de uma coisa tenho certeza: bom gosto ele tinha.Eu me recordo.
Se nunca havia visto Fellini antes, seus fantasmas já rondavam. Eu era leitor voraz de gibis, e numa daquelas histórias italianas do Tio Patinhas aparecia um cineasta contratado para filmar algo. Não lembro direito se era uma historia em que o Pato Donald virava piloto de Fórmula 1 ou coisa parecida. Só lembro que aquele cineasta contratado para fazer o marketing era o Fellini. Algum dia ainda reencontro esse gibi — que, por sinal, ainda guardo.Havia também os guias de filmes que eu comprava sempre. Foi num deles que vi, pela primeira vez, uma crítica de A Doce Vida e uma foto que me marcou: Marcello Mastroianni, numa festa, fazendo uma mulher de cavalinho. Não me recordo quem era a atriz e, ao reler a foto anos depois, não consegui identificar (Magali Noël ?). Mas aquela imagem grudou na minha memória como se fosse um sonho.
Eu me recordo.
Demorei anos para ver meu segundo Fellini. Foi numa locadora de bairro, daquelas que floresciam no fim dos anos 90 e não duravam muito. Ainda era VHS. E lá estava 8½. Levei para casa e achei difícil, frio, distante. Nada daquela identificação imediata que Amarcord havia me dado. Mas mesmo sem entender direito, senti que havia algo ali, algo que só mais tarde eu voltaria a procurar.
Alguns anos depois, comprei em DVD a coletânea Histórias Extraordinárias, adaptação de três contos de Poe. E a minha favorita era justamente a de Fellini, uma versão livre de Toby Dammit. Um filme curto, hipnótico, que parecia concentrar toda a estranheza do seu cinema em poucos minutos. Nele estava Terence Stamp — que alias morreu neste fim de semana — no auge da juventude, intensamente perturbado, muito antes de ser, em tempos de crianças adultizadas, mais lembrado por adultos infantilizados como o General Zod de Super Homem, de Richard Donner. Para mim, porém, Stamp sempre será aquele ator que, em meio às sombras e ao delírio felliniano, encarnou um personagem condenado a flertar com o abismo.
Com a chegada da internet rápida, enfim tive acesso à filmografia de Fellini. Fui descobrindo filme por filme, comprando os DVDs que iam saindo. Mas aí, já não era mais memória: era escolha. Era paixão organizada.Eu me recordo.
E, no fundo, é disso que se trata Amarcord. Do gesto simples e impossível de recordar. Porque a lembrança nunca é fiel — ela sempre mente, sempre se confunde. Mas insiste em sobreviver.
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Abaixo, texto original publicado numa cronica de jornal e depois no livro "Saudade de minhas lembranças"
EU ME RECORDO
D |
E todos os filmes que assisti, foi de Felline um dos únicos em que me recordo exatamente a data em que o ví pela primeira vez: 31 de Outubro de 1993 (para os mais precisos 1º de Novembro, já que passara da meia noite). Foi a primeira vez que ví um filme desse que foi um dos maiores cineastas de todos os tempos (e ainda o é). Tão grande que virou até adjetivo. 31 de Outubro foi o dia em que Felline finalmente completou sua obra. E Anjos Pagãos desceram à Terra e o levaram para o lugar que vão os únicos. E fizeram também com que a Globo deixasse de lado algumas explosões e exibisse um outro tipo de arrombo, o criativo, e passou “Amarcord”.
Na época eu não estava tão ligado em cinema que não fosse o Hollywoodiano. Não fosse pelo jornal da Globo eu nem assistiria o filme, mas fui em frente. Até então meu referêncial de grandes diretores era Spilberg e George Lucas. Não foi um causa tão nobre como gostaria , mas enfim, teve sua função.
E o filme me conquistou. De alguma forma que não sabia bem como, Felline conhecia a minha família e fez um filme sobre eles. Estava tudo lá, as Tias neuróticas , os almoços com todos falando ao mesmo tempo, desentendendo-se e metendo-se na vida de cada um.
Fiquei um bom tempo sem ver nenhum outro filme do diretor. Simplesmente porque a TV nunca passava e porque as locadoras de minha cidade não possuiam nenhum vídeo sequer deste grande mestre (e ainda não possuem). Somente ao entrar na Faculdade , ao conhecer um novo amigo cujo pai adorava “Amarcord” e tinha gravado. Não conhecei o pai dele que morreu antes que me fosse apresentado, mas sem dúvida tinha bom gosto.
Com o tempo , novos contatos , a ascensão da Internet me deram a chance de ver novos filmes dele. Desde o belíssimo “La Estrada” até “La voice de la Luna”. Talvez o melhor Felline que já vi foi “A doce Vida” ou até mesmo o espetacular “oito e meio”, mas o meu coração não deixa com que “Amarcord” perca o seu lugar na história. A minha.
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