Entre Fones e Destino é uma coluna onde vou analisar alguns discos que mudaram minha vida e fizeram parte dela. Às vezes o texto acaba levando para outros caminhos, mas o foco principal será sempre este álbum. Frank Jorge já dizia: “Fui lhe mostrar um disco de um cantor que sempre gostei, mas você não me deu atenção.” Essa frase me pega. Quantas vezes, cheio de empolgação, você tenta mostrar algo para alguém, e a pessoa simplesmente não presta atenção? Você começa a tocar a música, e antes mesmo do vocal entrar, ela já está conversando sobre outra coisa. É a vida.
Parte 1(Grandaddy) pode ser acessado aqui.
Parte 2 (David Bowie) pode ser acessado aqui
Meu primeiro disco da Legião Urbana foi — naturalmente — o primeiro. Mas não por amor à estreia, nem por senso arqueológico. Foi por um acaso. Ou por necessidade. Nessas horas, a memória mente bonito: diz que foi escolha, mas a verdade é que sobrou pra ele.
Engraçado é que minha porta de entrada na Legião não foi “Será”. Eu era criança, e naquela fase a música ainda era um som de fundo, algo que escapava do rádio AM da cozinha, entre o café coado e o “Jornal da Manhã”. Devia ter ouvido “Será” nessa época, mas passou batido — como uma faixa escondida no final do CD, que você só descobre quando o silêncio já dura tempo demais.
Minha primeira lembrança real foi “Faroeste Caboclo”. Aquilo sim me acertou como um estilingue na testa. Não lembro exatamente como chegou até mim. Lembro só que um colega do primário, que não lembro quem, me emprestou uma fita K7 onde ele havia gravado da rádio. Por um tempo foi minha nova obsessão.
Passei noites deitado sobre a cabine da F-1000 do meu pai onde tinha um toca fitas, ouvindo no escuro, tentando decorar. E consegui, com mais facilidade do que decorar o Hino Nacional — que, convenhamos, foi uma tortura imposta pela escola. “Faroeste”, não. Aquele era o nosso hino. Tinha palavrão, sangue e redenção. Coisas que a cartilha militar jamais ensinaria.
Era o fim da ditadura, mas eu nem sabia que vivia numa. No interior, tudo parecia distante — Brasília, protestos, palavras como censura ou repressão. A escola tampouco ajudava: seguíamos a cartilha militar sem notar, decorando hinos e frases cívicas com aquele entusiasmo automático de quem acredita estar apenas cumprindo o dever. Hoje vejo que os professores também não ensinavam diferente não por medo, mas porque cresceram assim, acostumados ao silêncio e à obediência, como se o mundo fosse mesmo aquilo que vinha impresso nos livros. A vida no interior era diferente das grandes capitais.
Aliás, ainda nessa fase de abertura as rádios ainda tocavam com cautela. Nessa fita K7 tinha gravada a versão censurada. O general com o “piii” na mão, o trecho remixado “olha pra cá, olha pra cá, sem vergonha” — e sempre que canto a música, é essa a versão que me vem primeiro. A infância é um looping de fita rebobinando.Mas depois de Faroeste, a Legião sumiu do meu radar. Visto de hoje, o tempo entre uma coisa e outra foi curto, quase nada. Mas sob o olhar da infância, cada espera era um oceano, e os dias se alongavam como se jamais fossem acabar. Até que, em 1989, fui ao show deles em Araraquara com um tio. Sabia pouco da banda, mas lembro da presença magnética do Renato no palco. Foi quando ouvi, talvez pela primeira vez, “Pais e Filhos”, “Meninos e Meninas”, “Há Tempos”. O tempo da escola ia acabando, e o Ensino Médio (que na época a gente chamava de Segundo Grau) começava — junto com outras descobertas.
Foi aí que um amigo, o Eduardo (não o da Mônica), me emprestou As Quatro Estações. Pedi pra ele num sábado à noite e no domingo ele me trouxe na missa das crianças. Fiquei com o disco na mão o tempo todo, meio que constrangido de estar com um disco na missa, mas desviando o olhar dos cânticos para o encarte. Confesso: ali já havia mais liturgia do que no panfleto da celebração.Depois veio o Dois, emprestado pelo mesmo amigo. Em 1991 conheci um outro amigo, o Olavo, e ele tinha o "Que pais é esse". Sem o encarte, porque o primeiro amigo, o já citado Eduardo, emprestou o disco e tinha surrupiado o encarte e até o recortado para fazer capa de caderno (fazíamos muito disso a epoca. Não a de surripiar, mas de fazer capas de cadernos, ja que as opções de papelaria era sempre as mesmas capas genéricas sobre Surf e modelos. Quem viveu naquela epoca deve odiar o termo Orgulho Nerd).
Chegou minha vez de comprar um disco. E, como todo mundo já tinha os outros, escolhi o primeiro — Legião Urbana, 1985. Ninguém da turma tinha, o que era o caminho natural. Naquela época procurávamos comprar uma coisa diferente que ninguém tinha uma vez que o acesso era difícil e não dava muito pra gastar as fichas numa coisa que poderíamos emprestar ou gravar.
Só que, verdade seja dita, o disco não me pegou de cara. Era seco, cru, meio desajeitado. “Será” e “Por Enquanto” brilhavam. O resto parecia inacabado. “Soldados” e “Ainda É Cedo” até se destacavam, mas eu não as colocaria na prateleira das favoritas. Ainda não.
Lembro de estar numa praça, em frente a uma escola no centro da cidade, quando um amigo me disse: “Tocou música nova da Legião na rádio, chama ‘O Teatro dos Vampiros’.” Não lembro de tê-la ouvido naquele momento, mas lembro de ter ouvido sobre ela. Às vezes, é assim: a memória não grava a canção, mas grava a conversa.
A essa altura, já acompanhava a chegada de novos discos. Comprei V assim que saiu. Em outro epoca, antes do lançamento do "Musica para Acampamentos" lembro de ouvir “A Canção do Senhor da Guerra” no caminho entre o Morro dos Conventos e a Praia do Rincão, em Criciúma. Por que lembro disso? Boa pergunta. Algumas memórias grudam em nós como areia molhada — ninguém sabe direito por quê, mas não dá pra tirar. Por que não dão lugar no Cérebro pra coisas realmente uteis ? Ou talvez tenham uma importância que a racional não é capaz de captar.
Durante anos, o primeiro disco foi o que menos gostei. Cheguei a preferir até O Descobrimento do Brasil, que hoje ocupa esse lugar. Não sei como isso mudou, mas mudou, naturalmente
Com o tempo, aprendi a gostar das arestas. Os ecos de Gang of Four, The Cure, U2 — antes distantes — agora pareciam naturais. Canções como “O Reggae”, “A Dança” e “Petróleo do Futuro” começaram a me dizer algo. “A Dança”, aliás, virou favorita. “Petróleo” também. E “Será” ? Essa foi perdendo o brilho. Amarelou no sol do tempo.
Hoje, vejo o primeiro disco da Legião Urbana como o mais acabado de todos — a crueza do som emociona muito mais do que a produção polida dos álbuns seguintes. A banda ainda soa sem pose, sem verniz, sem mapa, com uma urgência intensa e brutal, uma Legião em seu estado mais bruto e talvez o mais puro.
"Sera" foi a faixa que mais recebeu tratamento em estúdio, com ecos na voz de Renato Russo, que resistia a esses artifícios (e seria um album bem diferente se ele cedesse em mais faixas); é a canção mais comercial do disco. Começa com uma apropriação explícita de “Say Hello, Wave Goodbye”, do Soft Cell — um recurso que Renato revisitava frequentemente em sua carreira.
"A Dança" fala dos mauricinhos de Brasília, amantes de discoteca e cruéis com as mulheres, embalada por duas baterias eletrônicas que conferem um balanço único. “Petróleo do Futuro” é o ponto punk do álbum, com uma letra enigmática que instiga interpretações.
“Perdidos no Espaço” traz na introdução referências à série homônima e ao jogo Space Invaders, febre dos videogames da época. Já “Geração Coca-Cola” é punk rock com violões e batidas dobradas que o tornaram mais acessível, um punk para as massas.
“Ainda é Cedo” tem um piano fraseado que lembra os acordes delicados do U2, enquanto “O Reggae” exala a influência do The Clash.
“Baader-Meinhof Blues” é uma das joias do disco, com um final em violão que conduz perfeitamente à próxima faixa, “Soldados”, que ganha um toque de U2 com piano e a guitarra marcante de Dado.
“Teorema” apresenta baixo, guitarra e bateria em sintonia perfeita, com a frase “Não vá embora, fique um pouco mais” preparando o terreno para o encerramento em “Por Enquanto”. Os sintetizadores melancólicos dessa última faixa já anunciam a virada que a Legião começaria a ensaiar — um tom mais introspectivo e contemplativo. Curiosamente, o início do disco Dois, logo antes de “Daniel na Cova dos Leões”, parece olhar para trás, retomando o fôlego e a intensidade deixados pelo primeiro álbum.
Acho que só com o tempo a gente entende que algumas coisas só se revelam depois que a poeira assenta. Como aquele disco que, por acaso ou necessidade, acabou sendo o primeiro. E ficou.
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