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domingo, 27 de julho de 2025

Entre Fones e Destinos - Parte 1 - Grandaddy - The Sophtware Slump


Entre Fones e Destino é uma coluna onde vou analisar alguns discos que mudaram minha vida e fizeram parte dela. Às vezes o texto acaba levando para outros caminhos, mas o foco principal será sempre este álbum. Frank Jorge já dizia: “Fui lhe mostrar um disco de um cantor que sempre gostei, mas você não me deu atenção.” Essa frase me pega. Quantas vezes, cheio de empolgação, você tenta mostrar algo para alguém, e a pessoa simplesmente não presta atenção? Você começa a tocar a música, e antes mesmo do vocal entrar, ela já está conversando sobre outra coisa. É a vida.

Eu a deixei no passado.
Não foi só uma pessoa, foi um pedaço de mim que não cabia mais. Assim como em Hewlett’s Daughter, onde o personagem se afasta, carrega culpa e silêncio. Esse abandono não é só de gente, é de fases da vida, lugares, expectativas.

Por um tempo, morei em outras cidades — São Carlos, Santa Cruz do Rio Pardo. Passei pouco tempo em cada uma, mas elas ficaram comigo de um jeito difícil de explicar. Lugares onde me refiz, me perdi e me achei de novo. Mesmo depois de sair, continuei voltando — no começo com frequência, depois cada vez menos, até que as visitas viraram lembrança. Outro dia, em Jaú, durante uns workshops sobre música, encontrei por acaso um casal que conheci em Santa Cruz. Achei os rostos familiares, mas só reconheci quando ele me perguntou se eu era o Gustavo. Essas cidades talvez não façam mais parte do meu dia a dia, mas continuam em mim. No fundo, o que importa mesmo é o que te quebra em duas cidades, como canta o Vanguart.

Entre esses espaços, entre as ruas desconhecidas e as antigas calçadas de Bariri, cresceu uma saudade que não se cura. Meus amigos de infância, que compartilhavam gostos e sonhos, foram embora. Alguns morrem aos poucos na ausência, como aquele amigo que a Covid levou. Outros ficaram, mas a cumplicidade se diluiu, fragmentada entre diferentes pessoas. Gostos que se distanciaram, conexões que enfraqueceram.

Bariri é minha Modesto.
Como Jason Lytle e sua banda Grandaddy, que viviam naquele recanto comum, sem grandes pretensões, num estúdio caseiro onde criavam um universo só deles. A banda só saía para shows e depois voltava.
Eu também volto. Sempre volto para essa cidade discreta, que me abriga mesmo quando tudo parece um pouco fora do lugar.

E no meio desse retorno e da vontade de sair, escuto The Sophtware Slump.
Um álbum que é solidão de homem e solidão de máquina — misturadas, inseparáveis.

A capa é um desses detalhes que dizem mais do que muitas palavras.
Ela mostra uma paisagem campestre — um campo aberto, tranquilo, onde o vento devia soprar livre entre árvores tímidas e um céu amplo. Mas essa tranquilidade é invadida por teclas de computador espalhadas pelo chão, brancas e retangulares, como ossos estranhos, como restos fora do lugar.
É a modernidade invadindo o sossego do campo, o velho convivendo desconfortável com o novo.

Eu sempre morei a maior parte da vida na zona rural, mas nunca fui o típico homem do campo. Sempre gostei de livros, de rock, de filmes — de coisas que falam de outros mundos, outras histórias. Mas sempre gostei também do sossego, da paisagem, daquele silêncio que deixa o pensamento crescer.

Essa capa sintetiza isso: um mundo dividido entre a calma da natureza e o ruído da tecnologia, que insiste em se infiltrar, mesmo quando parece não pertencer.
Não são flores, não são pedras. São fragmentos de um futuro que parece não se encaixar direito, um epitáfio silencioso daquilo que criamos e não sabemos bem como lidar.

A frase “It knows you're just a modern man” me pega no meio do peito. Porque é isso: me sinto moderno, com um pé no futuro, mas preso em lugares que parecem ter parado no tempo.
E aí vem “I've gotta get out of here / and find my way again / I've lost my way again”.
Quero sair, mas sei que, no fundo, vou voltar.
Sempre voltamos.

Em The Crystal Lake, o adeus é uma presença constante.
“Aquele lugar que só ri / sabe que você é um homem moderno / brilhando longe daqui.”
É o mesmo balanço de quem quer ir embora e fica. De quem acha que se perdeu, mas sabe que o caminho verdadeiro é uma volta ao lar, mesmo que esse lar esteja em pedaços, cheio de ausências e silêncios.

Essa crônica, esse disco, essas músicas são meus mapas — mais do que explicações, traduções do que não sei dizer.
Um testemunho do que acontece quando o que te quebra em duas cidades não é só distância física, mas tudo que fica para trás, tudo que ficou no passado.
E do que acontece quando a gente aprende a conviver com isso, mesmo sem querer.

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Era primavera em São Paulo, e eu me lembro com nitidez daquele começo de noite — uma sexta-feira, claro, porque certas emoções têm dia e endereço fixo. A cidade não tinha o hábito de desacelerar (São Paulo nuca desacelera), mas naquele instante, naquele espaço miúdo onde o som esparramava sobre os corpos, tudo ficou em suspensão. Não sei a ordem exata das canções, a memória tem dessas flutuações — é como uma fita levemente desmagnetizada: trechos nítidos, outros desfocados.

Mas juro que “Hewlett’s Daughter” foi a segunda. Ela veio como uma brisa que entra pela janela e você nem percebe — até que tudo já cheira a outra estação. Eu já tinha lido algo sobre o Grandaddy, numa Bizz que destacava esse segundo album, ou nas colunas da Ilustrada ou Falhateen que eu costumava recortar. Já tinha cruzado com um clipe (provavelmente Crystal Lake)  no programa “Lado B” da MTV — não sei se apresentado pelo Kid Vinil ou pelo Fábio Massari naquela época. Às vezes a memória tem mais poesia do que verdade. Mas era ali, naquele palco meio tímido, que a coisa ganhava carne.

A sequência foi um golpe de mestre: “You Are My Sunshine” — feita cover com melancolia quase infantil — logo depois da doçura arranhada de Hewlett’s Daughter. Um soco de pelúcia no estômago. Ali eu me entreguei. O show foi curto, como são as boas histórias que a gente lembra pro resto da vida, e terminou com The Crystal Lake, espécie de epílogo perfeito: grandiosa, circular, como se o som estivesse indo embora e ficando ao mesmo tempo.

O Grandaddy, àquela altura, era rotulado como lo-fi, rótulo que pouco diz sobre o que realmente fazem. Soavam como se Neil Young tivesse acordado num laboratório de sons antigos, cercado por sintetizadores esquecidos e pelo mato alto da zona rural. Havia ali uma aura alt-country, um espírito do interior que dialogava com a tecnologia tímida e os sintetizadores. A voz de Jason Lytle — chorosa, meio entupida de poesia — guiava tudo como quem conta sonhos presos em fita cassete. A tecnologia estava presente, claro, mas era usada como quem aproveita o vento para mover as coisas, e não para impressionar.

Era um tempo em que a internet ainda não trazia certas facilidades a que nos acostumamos. Mas por sorte não estava em Bariri (a minha Modesto). Na manhã seguinte, ainda sob o feitiço da noite anterior, fui até a Galeria do Rock — aquela galeria paralela, não lembro o nome, mas que também tem lojas de discos. Lá estava The Sophtware Slump, me esperando. E ao lado dele, o primeiro disco do The Strokes, recém-lançado mas já com cheiro de clássico instantâneo. Curioso como o destino põe certos álbuns na sua frente como se estivesse fazendo uma piada.

Mas foi Sophtware Slump que me acompanhou naquela primavera. Um disco feito em casa, no estúdio improvisado de Lytle, mas que soava como se falasse com as estrelas. Ele flutua entre a solidão dos homens e a solidão das máquinas, e não sei qual das duas me comove mais.

Um comentário:

Luís Fernando disse...

Muito bom.
Órimo texto.