Quando se fala em Mario Monicelli, talvez o primeiro nome que venha à cabeça seja o do cavaleiro atrapalhado de “L’armata Brancaleone”. Sim, aquele mesmo do “Branca branca branca, Leone leone leone”, que virou hino improvisado da juventude trotskista da USP nos anos 70. Não que eu me lembre disso — nem era nascido —, mas li numa crítica do Rubens Ewald Filho, em um daqueles muitos livros que ele publicou e que povoaram minha estante e minha formação. Veja só: eu me lembro de críticas!
Poderia falar de Brancaleone, claro. Ou ainda de Meus Caros Amigos (Amici miei), com seu humor ferino e melancólico. Mas hoje quero escrever sobre dois outros filmes de Monicelli, que talvez não estejam no topo das listas dos mais lembrados, mas que guardo comigo como se fossem filmes de família — no melhor e no pior sentido da expressão.
O primeiro deles é I soliti ignoti — aqui chamado literalmente de Os Eternos Desconhecidos, o que já diz muito. Lançado em 1958, o título tem um sentido ainda mais irônico: são “os de sempre”, os mesmos “desconhecidos” que a polícia sempre aponta como suspeitos, um jeito quase burocrático de nomear a miséria cotidiana. Lembra do "The Usual Suspects" do Brian Singer ? Pois é, não tem nada a ver. Monicelli transformou isso em comédia, mas não qualquer comédia — uma verdadeira paródia dos filmes de assalto, feita com a ternura e o sarcasmo típicos da melhor tradição italiana.Lembro-me da primeira vez que vi esse filme ainda criança, na televisão, rindo das trapalhadas daquela gangue de ladrões tão incompetentes quanto adoráveis. Mais tarde, já adulto, revi em uma cópia restaurada e percebi o quanto tinha deixado escapar: as nuances, as críticas sociais, a ironia fina escondida nos gestos e silêncios.
O elenco é um espetáculo à parte, uma verdadeira constelação da comédia italiana em sua melhor forma. Vittorio Gassman, com seu ar de galã decadente, encarna o trapaceiro com uma combinação de pompa e desespero cômico. Marcelo Mastroianni, mais lembrado por seus papéis dramáticos, mostra aqui sua veia cômica refinada, com uma sutileza que só os grandes conseguem. Renato Salvatori, com sua presença forte e ingênua, Memmo Carotenuto, sempre com aquele olhar esperto de quem já viu demais, e Carlo Pisacane, que arranca risos só de aparecer em cena com sua figura franzina e expressão eternamente aflita. Tiberio Murgia, com seu sotaque carregado e estilo exagerado, é outro achado — cada gesto dele parece uma pequena peça de teatro popular. E, claro, ninguém menos que Totò, um gênio absoluto do riso, numa participação pequena, mas memorável, como o “professor” que ensina a arte (fracassada) de explodir cofres.
Já Claudia Cardinale, é verdade, tem pouco a fazer no roteiro — sua função ali parece ser apenas existir, linda e em silêncio. Pode soar machista, e talvez até seja, mas a própria lógica da comédia da época se alimentava disso: beleza como distração, como alívio, como ponto de exclamação visual. E sejamos francos, naquele momento do cinema italiano, bastava ela entrar em cena para que tudo parasse por um instante — inclusive a crítica.
A grande comédia não serve apenas para fazer rir — ela revela, critica, expõe. Em Os Eternos Desconhecidos, o riso nasce do fracasso coletivo e do improviso da sobrevivência. São pobres tentando ser profissionais do crime em uma sociedade que já os criminaliza por existirem.
Embora o filme carregue o preto e branco de outra época, sua essência continua dolorosamente atual. A sociedade veste novas roupas, fala novas línguas, adota novos discursos — mas o enredo de fundo, aquele subterrâneo social de desigualdade, frustração e tentativa de sobrevivência às margens, permanece quase intacto. Por mais que os jovens sonhem em transformar o mundo — e tentem, com a coragem que só a juventude tem —, há estruturas que resistem com uma teimosia quase cínica. Mudam as vitrines, mas o estoque no porão é o mesmo.
O segundo filme é de outra época e de outra maturidade de Monicelli: Parente è serpente, de 1992. Um título que já anuncia o veneno escondido sob a mesa da ceia de Natal.Vi pela primeira vez numa madrugada qualquer, na Globo. Achei aquilo diferente, estranho, engraçado. Gravei em VHS e revi muitas vezes — cada uma descobrindo uma camada nova. Só recentemente consegui ver no original italiano, e aí tudo fez ainda mais sentido.
A história parece simples, e é: uma típica família italiana se reúne para o Natal. Mas o que emerge ali é um verdadeiro acerto de contas, um balanço emocional que não se encerra com o panetone. Sob o verniz das boas maneiras, aparecem o humor negro, a solidão dos velhos, a homossexualidade escondida, os silêncios de uma geração e os ressentimentos passados de boca em boca, como receitas de família.
É um filme cruel, mas com risos que doem mais por serem verdadeiros. A narrativa é contada pelo olhar do neto — uma criança que descreve os adultos com a ingenuidade de quem ainda não aprendeu a mentir. E, assim, tudo se torna mais claro, mais brutal.
Nas relações entre as irmãs, entre elas e a cunhada, vemos um jogo de rejeições silenciosas: a cunhada é tratada como uma caricatura fútil e vulgar, mas se vê como parte legítima da família. E nesse ruído entre o que se é e o que se aparenta, o filme constrói seu retrato cruel e preciso da família tradicional.
Vindo de família italiana, assisto a esses filmes com certo desconforto familiar. Como em Fellini, reconheço nas caricaturas um parentesco verdadeiro. Os gestos teatrais, as acusações passivo-agressivas, o amor que vira cobrança e se disfarça de cuidado — tudo isso me é familiar demais.
Monicelli sabia, como poucos, rir da tragédia cotidiana. Seus personagens são sempre pessoas comuns, derrotadas pela vida, tentando ainda assim enganar o destino — nem que seja por um minuto. Seus filmes são espelhos tortos, mas fiéis. E talvez por isso, tão atemporais.
Há famílias que a gente não escolhe — e justamente por isso, muitas vezes, elas também não nos escolhem de volta. Já outras, surgem do acaso, do improviso, da necessidade. Não têm laços de sangue, mas criam laços onde antes só havia falta.
Os Eternos Desconhecidos, no filme de Monicelli, são isso: uma fraternidade formada por homens quebrados pela vida. Unidos não por afinidade, mas por um plano desajeitado, um golpe improvável. São cúmplices antes de serem amigos. Frágeis, desastrados, ridículos até — mas, à sua maneira, leais. Suportam-se. Precisam-se. E é aí, no tropeço conjunto, que nasce um tipo raro de afeto: o que se constrói nas falhas, no riso envergonhado, no fracasso compartilhado.
Em Parente é Serpente, o cenário é outro. É Natal, e a família está reunida. Mas o que deveria ser afeto vira disputa. O sangue pesa, e os vínculos apertam mais do que acolhem. Cada palavra é uma armadilha, cada abraço vem com um espinho escondido. Tudo é tradição, aparência, obrigação. A ceia é farta, mas o convívio é escasso.
De um lado, os que nada têm e tentam construir algo juntos. Do outro, os que têm tudo, mas preferem manter distância — mesmo sentados à mesma mesa. Um grupo divide a miséria com generosidade; o outro reparte o conforto com rancor.
No fim, talvez seja isso: o fracasso vivido junto tem mais calor que o sucesso vivido sozinho. Família, às vezes, é quem erra com você — e não quem aponta o dedo quando você erra.
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