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sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Entre Fones e Destinos - Parte 2 - The Best of Bowie 1969/1974

 Entre Fones e Destino é uma coluna onde vou analisar alguns discos que mudaram minha vida e fizeram parte dela. Às vezes o texto acaba levando para outros caminhos, mas o foco principal será sempre este álbum. Frank Jorge já dizia: “Fui lhe mostrar um disco de um cantor que sempre gostei, mas você não me deu atenção.” Essa frase me pega. Quantas vezes, cheio de empolgação, você tenta mostrar algo para alguém, e a pessoa simplesmente não presta atenção? Você começa a tocar a música, e antes mesmo do vocal entrar, ela já está conversando sobre outra coisa. É a vida.

Parte 1(Grandaddy) pode ser acessado aqui.

Eu confesso que cheguei a duvidar se colocaria uma coletânea nesta série de crônicas. Mas foi por ela que conheci de verdade o Bowie — e aí tudo mudou. Mesmo centrado em sua fase inicial, o disco já traz o Bowie em metamorfose. É impressionante a variedade que ele oferece, mesmo dentro de uma moldura aparentemente coesa. Um artista que já parecia vários.

Nunca gostei muito de coletâneas. Sempre fui do álbum. Gosto de ouvir a ideia inteira, da primeira à última faixa. Coletâneas me soam como vitrines — e eu prefiro entrar na loja, andar pelos corredores, pegar os objetos com as mãos. Mas às vezes é por uma vitrine que a gente se apaixona pela primeira vez.

A minha relação com o Bowie começa com uma lembrança falsa. Ou, melhor dizendo, uma lembrança implantada, como aquelas de filme de ficção científica. Quando criança, eu não era muito ligado em música. Morava na zona rural, e por mais que música estivesse por todo lado — no rádio da cozinha, nos programas de TV, nas casas ao lado — ela não tinha ainda um lugar afetivo na minha vida. Era pano de fundo, não trilha sonora.

Não havia, naquela primeira fase, ninguém ao redor que servisse como guia musical. Minha mãe ouvia rádio AM, e eu ouvia por tabela. Meu pai gostava de boleros antigos, moda de viola e música caipira, mas não era um cara da música. Minhas tias tinham alguns discos de MPB — uma Elis aqui, um Caetano ali — nada muito além. Um vizinho teve discos dos Beatles. Outro, nem sei o que ouvia. Só mais tarde percebi que essas ausências também formaram o que eu viria a procurar.

Um tio de Bauru, um pouco mais velho, foi talvez a primeira figura com algum papel musical na minha formação. Lembro de ele me levar para shows quando eu era bem pequeno — shows que só mais tarde ganhariam importância pra mim, como Cazuza, RPM e Legião Urbana. Raul Seixas e o Mussum do Originais do Samba, por exemplo, tocaram num comício na cidade. Eu devia ter uns três anos. Claro que não me lembro. Mas como meu pai nunca perdia um comício e minha mãe sempre o acompanhava, é quase certo que eu estava lá. Gosto de pensar que sim. Às vezes a memória não está na lembrança, mas na cena que a gente constrói com os dados disponíveis. E aquilo faz parte.

Quando se tem 10 anos, qualquer adulto parece muito mais velho do que realmente é. E esse mesmo tio, que era algo como dez ou doze anos mais velho do que eu, parecia um senhor. Mas foi ele quem, sem saber, me levou para perto da música — mesmo que só anos depois eu fosse notar.


Na infância, música vinha pela televisão. Minha mãe assistia muito Silvio Santos. Era o pop da época que me alcançava, misturado aos desenhos e programas infantis. E foi num desses programas que ouvi, pela primeira vez, “O Astronauta de Mármore”, do Nenhum de Nós. Eu não fazia ideia de que era uma adaptação de David Bowie. Só sabia que gostava muito daquilo. Era diferente de tudo o que eu conhecia.

Na adolescência, as coisas mudaram. Conheci pessoas que viviam música. Foi quando comecei a comprar revistas como a Bizz, a Rock Brigade, a ler a Ilustrada, o Folhateen, o Caderno 2 . Era o mundo se abrindo — e junto dele, a crítica. Lembro que “O Astronauta” era malhado pelos críticos como uma sombra da original Starman. Não me lembro exatamente quando descobri que era uma versão, mas provavelmente foi lendo num desses veículos.

O problema era o acesso. Na primeira metade dos anos 90, sem internet e morando no interior, conhecer uma música exigia esforço. Nenhum dos meus amigos tinha disco do Bowie. Eles ouviam Metallica, U2, R.E.M., Faith No More, Iron Maiden, Slayer, Megadeth. O nome “David Bowie” era uma lenda distante. Sabíamos que era importante, mas não sabíamos como ele soava.

Talvez eu tenha ouvido algo dele na MTV. Quando ela chegou por UHF, ainda era instável na minha cidade. Só na época da faculdade, em São Carlos, com TV a cabo, é que pude ver mais. Lembro de “I’m Afraid of Americans” — mas, sinceramente, não me chamou atenção. Provavelmente ouvi muito Bowie em filmes sem saber que era ele. “I’m Deranged”, por exemplo, fecha A Estrada Perdida de David Lynch — e aquilo me impactou. A música tinha o mesmo peso desconcertante do filme. Mas eu não sabia que era ele. A conexão só veio depois.

Tudo mudou quando, no fim dos anos 90, entrei na Gê Som — a loja de discos da minha cidade que frequentava quase diariamente. Ela era, junto com a locadora, meu templo. Ali encontrei a coletânea do Bowie que cobria sua fase inicial. Comprei mais por curiosidade, por querer entender afinal quem era esse tal de Bowie de quem tanto falavam.

Fui ouvir o CD no rádio do carro, parado no estacionamento do Gelaguela — a lanchonete de um amigo querido que, nas tardes, era nosso ponto de chegada e, nas madrugadas, nosso ponto de fuga. Foi ali, no fim de tarde, que ouvi Space Oddity pela primeira vez. E logo em seguida, finalmente, Starman. A música que eu tanto queria conhecer na sua forma original.

Foi paixão imediata.

Na arrogância da juventude, cheguei a desprezar “O Astronauta de Mármore” por um tempo, como os críticos faziam. Mas hoje enxergo o valor da versão. Gosto da entrega, da adaptação poética. Quando o vocalista canta “Quero um machado pra quebrar o gelo”, e eu entendi que vinha direto de Ashes to Ashes, senti como se o próprio Renato Russo (expert na apropriação de frases inteiras) tivesse baixado no Teddy Correa.

Mais tarde comprei o volume 2 da coletânea, que cobria a fase entre 1974 e 1979, mas levei mais tempo para digerir. A única que me pegou logo foi Heroes — que, aliás, eu já conhecia na versão do Wallflowers, da trilha do filme Godzilla.

 Heroes também me fez lembrar de outra coisa — ou melhor, de mais uma coisa — que só me veio agora, enquanto escrevo. É curioso como certas conexões ficam adormecidas na memória até que algo as puxe de volta. Durante a adolescência, o livro Christiane F. me marcou profundamente. Li numa fase em que tudo parecia urgente e intenso, e aquele retrato cru de juventude quebrada grudou em mim. Sabia que ela era fã do Bowie, claro, mas só agora, colocando tudo em perspectiva, percebo que foi provavelmente naquele filme baseado no livro que vi o David Bowie pela primeira vez. Tem uma sequência marcante em que ele canta Heroes ao vivo — em alemão, Helden. A cena é poderosa, mas na época o que me impactava era o drama dela. Era a Christiane quem era fã. Eu, não. Ainda não.

Ainda bem que disse “provavelmente” porque, pensando melhor, talvez meu primeiro contato com Bowie tenha sido ainda mais cedo, com o filme Labirinto. Não foi um daqueles filmes essenciais da minha infância, mas lembro de tê-lo visto passando na TV quando era pequeno — e muito provavelmente parei para assistir, ainda que sem grande envolvimento. Curiosamente, tenho a trilha sonora em LP hoje, talvez mais por valor de coleção do que por afeto. Não é um disco que me emociona como outros do Bowie. Tem quem ame, eu sei, principalmente pelo fator nostalgia. Mas pessoalmente, sempre achei que essa fase anos 80 do Bowie não conversa muito com os outros artistas oitentistas que eu gosto. E é estranho isso, porque adoro os anos 80. Só que o Bowie, nessa época, parece descolado — como se estivesse ali, mas ao mesmo tempo não pertencesse. Poderia ter editado o texto pra colocar essa informação de cara mas gosto dessa ideia de idas e vindas da mente. Lembrei até de outro fato mas vou guardar quando falar de um disco especifico no futuro. Se é que me lembrar na hora.

Mesmo assim, a presença dele foi se acumulando aos poucos na minha vida, silenciosamente — uma figura que aparecia nos cantos, nos filmes, nas capas, nos nomes citados — até que, um dia, finalmente parei para ouvi-lo de verdade.

Um amigo que conheci depois, ja nos anos 2000, era apaixonado pelo disco Let’s Dance, mas eu torci o nariz. Hoje, gosto da faixa-título e de mais uma ou outra, mas é uma fase dele, essa dos anos 80 que acho muito fraca. Curiosamente, uma das minhas top 3 do Bowie — Absolute Beginners — é dessa fase que em geral não me pega tanto. Também por causa do filme homônimo, um dos meus cults de cabeceira.

Meu primeiro disco de verdade do Bowie foi o Heathen, de 2002. Não foi o primeiro lançado após eu tê-lo descoberto de vez, mas foi o primeiro que chegou na Gê Som com algum destaque, acompanhado de ótimas críticas. E realmente marcou — foi a grande volta do Bowie, embora os anos 90 já escondessem trabalhos excelentes, mesmo que mais difíceis.

Ainda pretendo escrever sobre algum outro disco do artista. Já tenho em mente quais. Embora a proposta dessa série de crônicas seja falar de apenas um álbum por artista, Bowie não é o Camaleão à toa. A cada fase, redescubro um novo Bowie. E por isso, ele escapa — como sempre fez — a qualquer estrutura rígida. Com ele, toda regra parece merecer uma exceção.



Nick Cave - Piedade de Mim



Não espere uma biografia tradicional. Piedade de Mim, HQ do alemão Reinhard Kleist, não quer explicar nada. Quer fazer você sentir. É uma obra que mistura tempos, estados mentais e realidades alucinadas para retratar Nick Cave — e faz isso mais como "Não Estou Lá" do que como "Um Completo Desconhecido'. Quem não conhece a obra de Cave certamente vai se sinter perdido, mas quem topar a viagem pode sair transformado.  Se você é daqueles que pensam "ah, eu queria que fosse...",  não é definitivamente pra você !

O próprio Cave aparece em cena interagindo com personagens reais — como a parceira criativa (e amorosa) Anita Lane e o guitarrista Mick Harvey — e também com fantasmas das suas músicas, como Elisa Day. Às vezes, é ele com ele mesmo: um pistoleiro envelhecido saído de um western esquecido, uma versão jovem e debochada, uma barataou um Quasímodo moderno tentando escapar da turba. A HQ é um caleidoscópio da psique artística de Cave: morte, fé, amor, redenção, decadência — tudo em colisão permanente.

Conhecer o pós-punk londrino e berlinense dos anos 1980 — Siouxsie, Bauhaus, Psychedelic Furs — ajuda. As referências estão lá, mas não vêm com explicações. Elas aparecem secas. Se você pescou, ótimo. Se não, segue o baile.

Em um dos momentos-chave da HQ, Cave diz a Anita Lane: “De qualquer forma, não tô nem aí para o que esperam de mim. Quero escrever sobre aquilo que sou.” Essa frase resume o espírito da obra: visceral, introspectiva e livre de amarras.

Kleist apesar da fidelidade histórica, está mais interessado na fidelidade emocional. O traço preto e branco expressionista casa perfeitamente com o mundo de Cave — um universo de sombras, cruzes, suor e poesia. Cave, afinal, sempre foi mais um pregador gótico do que um cantor de rock. E a HQ acerta ao traduzir isso em imagens: é como se Cave estivesse cantando cada página com sua voz grave, em um sermão sobre culpa, paixão e perdição.

A graphic novel foca no começo de tudo. No fim dos anos 1970, em Melbourne, Cave formou a banda The Boys Next Door. Jovens, brancos, raivosos e teatrais, fizeram barulho o suficiente para cruzar o mundo e chegar em Londres, onde viraram The Birthday Party. Era um som desorganizado, violento, catártico. Uma parede de ruído e literatura decadente. Um campo de testes para os temas que Cave levaria adiante: religião, carne, dor e salvação.

À deriva como uma nau no mar revolto, sem bússola nem porto à vista, a guinada definitiva na trajetória de Nick Cave veio com Blixa Bargeld, do Einstürzende Neubauten — banda alemã que fazia música com furadeiras, chapas metálicas e ecos industriais. Ao lado dele e Mick Harvey do The Birthday Party, Cave fundou o Nick Cave and the Bad Seeds. Enfim, uma formação instável por natureza, quase líquida, que atravessava com desenvoltura o blues, o gospel, o pós-punk, o rock experimental e até trilhas de velório. Foi nesse caldeirão sonoro que Cave deixou de ser apenas um vocalista performático e assumiu a forma quase mítica de um pregador do fim dos tempos — o Johnny Cash do lado mais escuro da lua.

E então... veio o Brasil.

Em 1989, atolado em vícios, luto e desilusões amorosas, Cave decidiu sumir. Largou a Europa e apareceu em São Paulo, onde se casou com uma moça que conheceu durante os shows que aqui fezera em 89, e que virou a se tornar a mãe de seu primeiro filho, brasileiro (e por pouco não foi, ja que Jethro, que só conheceu o Pai com 7 anos nasceu pouco tempo depois). Longe da cena europeia e dos holofotes, virou quase um fantasma paulistano: o gringo pálido que aparecia em botecos da Zona Oeste. 

Mas o isolamento fez bem. Como um Leonard Cohen dos Trópicos, em um estúdio no Sumaré e depois mixado em Berlin, ele gravou The Good Son (1990), um disco mais calmo, melancólico e reflexivo.  Essa brisa da febre tropical rendeu a faixa “Foi na Cruz”, onde ele canta em português, misturando o gospel sulista com o catolicismo da periferia paulistana. Uma beleza dissonante, como um salmo cantado fora do tom — úmido, íntimo, com ecos de capela abandonada. Ainda que nem tudo funcione o tempo todo, há passagens de lirismo e profundidade que mais do que compensam os tropeços.

Essa fase brasileira, geralmente tratada como curiosidade exótica, é muito mais do que isso. Foi um ponto de virada. Aqui, Cave trocou o caos performático pelo lirismo trágico que definiria sua fase mais madura. E Piedade de Mim apesar de passar meio rasteiro em uma pagina, capta essa transição com precisão e sensibilidade.

Para os fãs, a HQ é um prato cheio de referências e sensações. Para os iniciantes, pode ser um mergulho escuro e sem guia. Mas quem atravessar a névoa vai encontrar ali o retrato de um artista que nunca teve medo de encarar os próprios demônios — e transformá-los em arte.

E assim, o livro começa como um labirinto de espelhos.
E termina como um espelho no qual você vê, de leve, o que ainda não entendeu.

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