Quem gosta de Velvet Underground, Talking Heads, Modern Lovers, Television ou Mazzy Star deveria conhecer o Luna — se ainda não conhece. É uma daquelas bandas que parecem nascer das cinzas de outras: melodias frágeis alternando com ruídos desconcertantes, sempre privilegiando ideias em vez de virtuosismo. O Velvet é a referência mais óbvia, mas cada suspiro de Dean Wareham também carrega a sombra de Tom Verlaine.O Luna foi uma das vozes mais consistentes da cena nova-iorquina dos anos 90, com suas canções tristes, irônicas, emocionais. Surgiu em 1991, logo após o fim do Galaxie 500, e seguiu o fio subterrâneo do punk sessentista revisitado pelo Velvet nos anos 80. Lunapark (1992) abriu caminho com faixas como Slash Your Tires e I Can’t Wait. Bewitched(1994) trouxe Sean Eden à guitarra e, como bênção, a presença de Sterling Morrison em Great Jones Street e Friendly Advice. Em 1995, Penthouse consolidou a reputação da banda, com Tom Verlaine e Laetitia Sadier entre os convidados.
Vieram depois Pup Tent (1997) e The Days of Our Nights (1999). Este último manteve a verve velveteana em faixas como Dear Diary e Superfreaky Memories, mas também deu espaço a ironias afiadas em covers improváveis: Sweet Child O’ Mine, do Guns N’ Roses, e Neon Lights, do Kraftwerk, ambos em arranjos guitarrísticos. “Não sou fã do Axl Rose. O Guns acho horrível como banda, mas essa música é ótima, não dá para negar. Pra falar a verdade nem íamos colocar a versão no disco, mas acabamos cedendo para agradar a gravadora”, disse Dean, sem rodeios.
Dois anos depois, sua vida seria atravessada pelo horror. Dean morava perto do World Trade Center e assistiu ao 11 de setembro de sua janela. “Eu estava tomando café e olhando pela janela, até perceber um monte de gente em cima de um prédio vizinho olhando para a mesma direção. Comecei a ouvir sirenes, fiquei curioso e desci à rua. Foi quando vi uma das torres pegando fogo. Peguei o metrô e, quando saí, as duas estavam em chamas. Parei e fiquei olhando aquele espetáculo horrível.”O detalhe mais cruel: em 1º de agosto de 2001, dia de seu aniversário, o Luna havia sido uma das últimas bandas a se apresentar no térreo do WTC. “Eu conheço pessoas que trabalhavam no WTC. Nem dá para acreditar que vi o prédio ruir. É estranho termos feito um dos últimos shows lá, no dia do meu aniversário. O show foi ótimo… não dá nem para acreditar que depois vi o prédio desabar. Foi uma coisa muito bizarra. Não consigo acreditar nisso. Foi uma das coisas mais bizarras que já aconteceu no mundo.”
Poucos dias depois, a tragédia atravessava oceanos. Em 26 de setembro de 2001, o Luna tocou em São Carlos, no interior de São Paulo, com abertura dos cariocas da Pelvs. O baixista Justin Harwood já não fazia parte da banda, substituído por Britta Phillips — atriz e dubladora do desenho Jem and the Holograms. Foi dela que ganhei o recém-lançado Luna Live, em versão brasileira dupla, sua estreia na formação. Naquele momento, porém, eu só conhecia The Days of Our Nights.E foi justamente por isso que aquele show virou uma espécie de rito de passagem. Cada música que não vinha da minha memória, mas surgia ali pela primeira vez, tinha a força de uma revelação. 4th of July entrou com uma linha de guitarra cintilante, lenta e cortante como uma lâmina enferrujada, e eu senti como se estivesse vendo a cidade se encher de fumaça. Season of the Witch apareceu em clima hipnótico, quase ritual, e foi impossível não sentir o peso daquele título poucos dias depois do 11 de setembro. Chinatown soava como um passeio noturno por ruas úmidas, luzes refletidas no asfalto; Tiger Lily era um sussurro doce que parecia deslizar entre os ombros do público, deixando cada um sozinho dentro de si.
E então Friendly Advice: Dean a apresentou — “Essa música não está lançada em sua versão original no Brasil, mas pode ser encontrada no Luna Live, gravado em Washington e Nova Iorque e lançado por aqui” —, e as guitarras construíram um arco melódico que parecia nunca acabar. O momento mais delicado veio com o cover de Bonnie & Clyde, de Serge Gainsbourg, com Britta assumindo o papel de Jane Birkin. Sua voz soava frágil, quase tímida, mas era justamente essa fragilidade que arrepiava.No palco, Dean mantinha a postura blasé, como quem mal se importa, mas as melodias cresciam em camadas, erguidas como frágeis catedrais de melancolia. O contraste era inevitável: em um pequeno barzinho na avenida principal de uma cidade universitária do interior paulista, aquelas músicas carregavam ainda o eco do caos recente de Nova Iorque. Desde então, nunca mais ouvi o Luna sem lembrar daquela noite em São Carlos — um instante em que a música deixou de ser apenas som e se transformou em revelação íntima diante do absurdo da História.




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