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quarta-feira, 29 de outubro de 2025

LUNA


Quem gosta de Velvet Underground, Talking Heads, Modern Lovers, Television ou Mazzy Star deveria conhecer o Luna — se ainda não conhece. É uma daquelas bandas que parecem nascer das cinzas de outras: melodias frágeis alternando com ruídos desconcertantes, sempre privilegiando ideias em vez de virtuosismo. O Velvet é a referência mais óbvia, mas cada suspiro de Dean Wareham também carrega a sombra de Tom Verlaine.

O Luna foi uma das vozes mais consistentes da cena nova-iorquina dos anos 90, com suas canções tristes, irônicas, emocionais. Surgiu em 1991, logo após o fim do Galaxie 500, e seguiu o fio subterrâneo do punk sessentista revisitado pelo Velvet nos anos 80. Lunapark (1992) abriu caminho com faixas como Slash Your Tires e I Can’t WaitBewitched(1994) trouxe Sean Eden à guitarra e, como bênção, a presença de Sterling Morrison em Great Jones Street e Friendly Advice. Em 1995, Penthouse consolidou a reputação da banda, com Tom Verlaine e Laetitia Sadier entre os convidados.

Vieram depois Pup Tent (1997) e The Days of Our Nights (1999). Este último manteve a verve velveteana em faixas como Dear Diary e Superfreaky Memories, mas também deu espaço a ironias afiadas em covers improváveis: Sweet Child O’ Mine, do Guns N’ Roses, e Neon Lights, do Kraftwerk, ambos em arranjos guitarrísticos. “Não sou fã do Axl Rose. O Guns acho horrível como banda, mas essa música é ótima, não dá para negar. Pra falar a verdade nem íamos colocar a versão no disco, mas acabamos cedendo para agradar a gravadora”, disse Dean, sem rodeios.

Dois anos depois, sua vida seria atravessada pelo horror. Dean morava perto do World Trade Center e assistiu ao 11 de setembro de sua janela. “Eu estava tomando café e olhando pela janela, até perceber um monte de gente em cima de um prédio vizinho olhando para a mesma direção. Comecei a ouvir sirenes, fiquei curioso e desci à rua. Foi quando vi uma das torres pegando fogo. Peguei o metrô e, quando saí, as duas estavam em chamas. Parei e fiquei olhando aquele espetáculo horrível.”

O detalhe mais cruel: em 1º de agosto de 2001, dia de seu aniversário, o Luna havia sido uma das últimas bandas a se apresentar no térreo do WTC. “Eu conheço pessoas que trabalhavam no WTC. Nem dá para acreditar que vi o prédio ruir. É estranho termos feito um dos últimos shows lá, no dia do meu aniversário. O show foi ótimo… não dá nem para acreditar que depois vi o prédio desabar. Foi uma coisa muito bizarra. Não consigo acreditar nisso. Foi uma das coisas mais bizarras que já aconteceu no mundo.”

Poucos dias depois, a tragédia atravessava oceanos. Em 26 de setembro de 2001, o Luna tocou em São Carlos, no interior de São Paulo, com abertura dos cariocas da Pelvs. O baixista Justin Harwood já não fazia parte da banda, substituído por Britta Phillips — atriz e dubladora do desenho Jem and the Holograms. Foi dela que ganhei o recém-lançado Luna Live, em versão brasileira dupla, sua estreia na formação. Naquele momento, porém, eu só conhecia The Days of Our Nights.

E foi justamente por isso que aquele show virou uma espécie de rito de passagem. Cada música que não vinha da minha memória, mas surgia ali pela primeira vez, tinha a força de uma revelação. 4th of July entrou com uma linha de guitarra cintilante, lenta e cortante como uma lâmina enferrujada, e eu senti como se estivesse vendo a cidade se encher de fumaça. Season of the Witch apareceu em clima hipnótico, quase ritual, e foi impossível não sentir o peso daquele título poucos dias depois do 11 de setembro. Chinatown soava como um passeio noturno por ruas úmidas, luzes refletidas no asfalto; Tiger Lily era um sussurro doce que parecia deslizar entre os ombros do público, deixando cada um sozinho dentro de si.

E então Friendly Advice: Dean a apresentou — “Essa música não está lançada em sua versão original no Brasil, mas pode ser encontrada no Luna Live, gravado em Washington e Nova Iorque e lançado por aqui” —, e as guitarras construíram um arco melódico que parecia nunca acabar. O momento mais delicado veio com o cover de Bonnie & Clyde, de Serge Gainsbourg, com Britta assumindo o papel de Jane Birkin. Sua voz soava frágil, quase tímida, mas era justamente essa fragilidade que arrepiava.

No palco, Dean mantinha a postura blasé, como quem mal se importa, mas as melodias cresciam em camadas, erguidas como frágeis catedrais de melancolia. O contraste era inevitável: em um pequeno barzinho na avenida principal de uma cidade universitária do interior paulista, aquelas músicas carregavam ainda o eco do caos recente de Nova Iorque. Desde então, nunca mais ouvi o Luna sem lembrar daquela noite em São Carlos — um instante em que a música deixou de ser apenas som e se transformou em revelação íntima diante do absurdo da História.













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