Entre Fones e Destino é uma coluna onde analiso alguns discos que mudaram minha vida e fizeram parte dela. Às vezes o texto acaba levando para outros caminhos, mas o foco principal será sempre este álbum. Frank Jorge já dizia: “Fui lhe mostrar um disco de um cantor que sempre gostei, mas você não me deu atenção.” Essa frase me pega. Quantas vezes, cheio de empolgação, você tenta mostrar algo para alguém, e a pessoa simplesmente não presta atenção? Você começa a tocar a música, e antes mesmo do vocal entrar, ela já está conversando sobre outra coisa. É a vida.
Parte 1(Grandaddy) pode ser acessado aqui.
Parte 2 (David Bowie) pode ser acessado aqui
Parte 3 (Legião Urbana) pode ser acessado aqui
Sabe quando você é super fã de uma banda que nunca ouviu? Pois é.
Morar numa cidadezinha do interior nos anos 90 era aventura para quem gostava de música. Às vezes a gente lia numa revista ou jornal sobre um disco, mas não tocava nas rádios locais e tampouco chegava às lojas. Ao lado de Bariri tem Jaú e Bauru, onde aparecia mais coisa — mas nunca tudo. Em uma dessas idas, entre 1990 e 1991, meu amigo Duzão (descanse em paz) me pediu um disco do Lou Reed. Ele nunca tinha ouvido. Eu, menos ainda.
Depois de rodar várias lojas em Jaú, achei Songs for Drella em uma próximo a praça da matriz. Não fazia ideia de que era o lançamento da época. Foi o único que encontrei e, portanto, o escolhido. Cheguei em casa, coloquei no toca-discos… e não gostei. Acho que o Duzão também não, mas aí já não lembro. Não sabia quem era Lou Reed, muito menos que tinha feito parte de uma tal banda chamada The Velvet Underground. Descobri isso só depois, folheando uma edição da revista Bizz, na sessão “Discoteca Básica”. O subtítulo da seção era impagável: “Compre, empreste, roube. O importante é ter esse disco.” Numa daquelas edições, lá estava ele: o seminal The Velvet Underground & Nico, ou melhor, o “disco da banana”.
Mas uma coisa é ler, outra é ouvir. Entre a revista e a audição real, passaram-se alguns anos. Em 1995 ou 1996, já na faculdade, lembro de um sábado de manhã em que fui com meu amigo Bié a uma loja de discos na Avenida São Carlos. Tinha gasto quase todo o dinheiro na noite anterior (estudante, né). Na prateleira, um box branco com a indefectível banana de Warhol estampada. Trazia toda a discografia da banda. Custava o preço de um rim. Saí da loja sem ele, levei a coletânea Songs in the Key of X: Music from and Inspired by the X-Files bem, muito mais em conta.Mas, nos anos seguintes, já bem mais interessado na banda, me arrependi amargamente de não ter levado aquele box. Não naquele dia, claro — estudante sem dinheiro não tinha como (a não ser que eu levasse ao pé da letra a recomendação da Bizz). Mas eu poderia ao menos ter feito um esforço nos meses seguintes, apertar o bolso, abrir mão de uns gibis… qualquer coisa que me garantisse aquela caixa branca com a banana na capa. Mas, na época, nunca dei muita bola pro veganismo (se bem que muito menos hoje). Hoje talvez tivesse levado o box só para postar no Instagram com a hashtag #BananaOrgânica — e ainda posar de pioneiro.
Em 1998, gravei da MTV o clipe de “Sweet Jane”, registro da reunião de 1994. Foi a primeira vez que tenho consciência de ouvi o Velvet. Vai que ja tivesse ouvido em um filme, afinal “Perfect Day”, do Lou Reed, via Trainspotting, já fazia parte da minha vida. Mas confesso: Sweet Jane não me bateu à época. Ficou perdida entre os VHS gravadosDurante toda a década de 90, o Velvet era um fantasma pairando sobre a minha cabeça: todo mundo falava, mas eu mesmo não ouvia nada. Bandas como Luna, Belle & Sebastian, R.E.M. — que chegou a gravar covers de “There She Goes Again”, “Femme Fatale” e “Pale Blue Eyes” (essa última também revisitada pela Marisa Monte, provando que até a MPB já tinha passado pelo labirinto do Velvet) — todos apontavam para eles como referência.
Curioso, porque nas críticas que lia, o Velvet aparecia como sujo, pesado, mergulhado em drogas e sadomasoquismo. Difícil conciliar isso com os escoceses fofinhos do Belle & Sebastian.Na virada para os 2000, a internet já fervia. O Napster tinha caído, mas Emule e Limewire davam conta do recado. Mesmo assim, nunca baixei o Velvet. Foi em Bauru, na mesma loja onde me apresentaram o Luna, que perguntei pelo disco. O vendedor não tinha para vender, mas ofereceu gravar da própria coleção. Depois de uma semana um primo meu me trouxe de Bauru essa gravação, junto com outra icônica, o Primeiro disco do Jupiter Maça e o "Peloton" do The Delgados, que consegui com o mesmo cara.
Eis que cheguei em casa com um CD-R, capa e encarte em xerox colorido. Coloquei no player e, nos primeiros acordes de “Sunday Morning”, entendi a comparação com Belle & Sebastian. Nada da barulheira que imaginava: havia algo etéreo, delicado, que me pegou de surpresa. Claro, o barulho estava lá em outras faixas, mas não era só isso. Era muito mais.Poucos discos soam tão inaugurais quanto The Velvet Underground & Nico. Não apenas abriram portas: eles pareciam nascer fora do tempo, como se o futuro tivesse sido prensado em vinil. A banana de Warhol é perfeita: doce por fora, rosa e venenosa por dentro. O choque está tanto nas letras — heroína, prostituição, alienação — quanto na forma: Lou Reed sussurra como quem pede café; Nico canta como uma sacerdotisa gélida perdida em Nova Iorque. Morrison e Cale estilhaçam as canções, Maureen Tucker marca a procissão sombria, e o ouvinte vai sendo puxado para dentro desse mundo sem dó nem piedade.
“Sunday Morning” é falsa inocência. “Heroin”, até hoje, continua uma das canções mais perturbadoras já gravadas. “I’ll Be Your Mirror” é um lampejo de ternura em meio ao caos. Não é um disco perfeito — e aí está sua perfeição. Dissonante, desigual, tosco até. Mas, por isso mesmo, seminal. Como disse Brian Eno: “Pouquíssimas pessoas compraram esse disco, mas todas que compraram formaram uma banda.”No meu caso, não formei uma banda. Mas virei fã. Fã à distância durante uns dez anos, sem nunca ter ouvido uma nota. Quando finalmente ouvi, foi paixão imediata. E, para fechar o círculo, anos depois comprei o tal box do Velvet Underground — aquele mesmo que me escapou em São Carlos nos anos 90. Hoje tenho dois: um aberto e outro lacrado. Afinal, quem é fã de verdade sabe que nada mais coerente do que ser, ao mesmo tempo, o sujeito que ouve compulsivamente… e o que guarda o objeto intacto, como se ainda fosse aquele fã de uma banda que nunca tinha ouvido.
Anos depois, no Sesc Pinheiros, Lou Reed subiu ao palco para apresentar uma nova versão do lendário Metal Machine Music.O teatro, com sua acústica precisa, logo se transformou num campo de batalha sonora. Antes mesmo de ele aparecer, os ruídos já tomavam o ar — e quando se instalou, de guitarra em punho, a experiência virou algo entre o transe e o caos. Ao seu lado, Ulrich Krieger e Sarth Calhoun disparavam saxofones distorcidos, eletrônicas, drones, zumbidos. Nada lembrava o Lou Reed que os fãs esperavam. Nenhuma melodia, nenhum refrão. Só ruído, puro e denso, como um teste de resistência.
Metade da plateia foi embora. A outra metade, atônia foi diminuindo aos poucos.
Eu fiquei.
E lá estava eu, décadas depois do garoto que comprou Songs for Drella sem saber quem era Lou Reed, ouvindo-o esculpir o silêncio com barulho.
Era o mesmo homem — e, de certo modo, o mesmo menino.
Quando, já perto do fim, ele voltou sozinho e tocou “I’ll Be Your Mirror”, tudo se encaixou.
A canção que nasceu doce e melancólica soava agora como um eco distante, quase metálico.
Mas era um espelho perfeito: distorcido, sim — mas ainda um espelho que brindou os heróis que ficaram naquela noite barulhenta. Não era o Velvet que eu queria mas o que tinha.
E foi ali, naquele momento em que Lou Reed e o ruído se tornaram uma coisa só, que percebi: ser fã de uma banda que nunca ouvi é continuar tentando ouvir o que a gente nunca entende por completo — e é justamente isso que faz a música durar.






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