“ o mundo é maior do que o interior de sua cabeça” (Jake)
O que fazemos quando não há mais ninguém? Quando precisamos sustentar o próprio peso sem o amparo de outra presença? Como seguir quando o eco é a única resposta? Quando não há ninguém — nunca — o que resta da vida? O que significa um dia, uma semana, um ano? O que é, afinal, uma vida inteira? Tudo parece apontar para algo além de si mesmo, como se o sentido estivesse sempre em outro lugar. Talvez seja preciso tentar de novo, por outro caminho.
Não é que não sejamos capazes de aceitar o amor ou a empatia. É que essas coisas só existem em relação — e, quando não há ninguém, com quem partilhar o gesto? Ações e movimentos, no fundo, são performances: construções que imitam a verdade, mas raramente a tocam. Toda ação é um disfarce, uma tentativa de organizar o caos.
A vida, então, se torna uma alegoria: uma metáfora longa demais, uma narrativa que usamos para suportar o vazio. Não compreendemos o sentido das coisas apenas pela experiência — nós o reconhecemos por meio dos exemplos, das histórias que nos servem de espelho.
Li Estou Pensando em Acabar com Tudo, de Iain Reid, em 2021 — no auge da pandemia. Foi um livro que me marcou profundamente, talvez porque sua solidão dialogasse com a do mundo. Um thriller psicológico, denso e melancólico, que parecia feito sob medida para aquele tempo suspenso, quando o isolamento era literal e simbólico. (Bem, ao menos deveria ter sido literal — se as pessoas fossem de fato empáticas e não apenas hipócritas que se escondem atrás de discursos religiosos e regras morais, mas vivem na contramão daquilo que pregam.)
Eu já havia decidido, há algum tempo, não ver adaptações de livros que tivesse lido — nem continuações, nem transposições de games ou gibis. Então, quando a adaptação cinematográfica do romance foi anunciada naquele mesmo ano, passei batido. O livro, afinal, pedia uma releitura: ele mesmo convida o leitor a recomeçar do fim, a voltar ao início com outro olhar. Mas, entre tantas páginas e tantos outros títulos à espera, acabei adiando esse retorno — por enquanto.
Mas acontece que o filme é dirigido por Charlie Kaufman — um dos roteiristas mais geniais e singulares deste século. Daqueles raros autores cuja assinatura permanece intacta, mesmo quando filtrada por diretores diferentes como Spike Jonze, Michel Gondry ou George Clooney. São poucos os roteiristas que conseguem isso: ser reconhecíveis mesmo quando o enquadramento não lhes pertence.
E, ao contrário de tantos nomes brilhantes que tropeçam quando passam da escrita à direção, Kaufman parece ter encontrado justamente aí o seu terreno natural. Sinédoque, Nova York continua sendo, a meu ver, uma das maiores obras-primas do cinema contemporâneo — um filme absolutamente devastador e luminoso ao mesmo tempo, como só ele saberia fazer.
Kaufman esteve em São Paulo na semana passada, durante a Mostra Internacional de Cinema, para um evento que precedeu a exibição de seu novo curta Como Fotografar um Fantasma e também de Anomalisa. A conversa, mediada pela roteirista Eva H.D. — parceira dele tanto neste curta quanto no anterior Jackals & Fireflies — tinha algo de metalinguístico, quase uma versão da vida real de Adaptação, aquele filme dirigido por Spike Jonze em que Nicolas Cage interpreta o próprio Kaufman, em crise criativa e perseguido pela sombra de um irmão inventado. O próprio Kaufman, com seu humor meio seco, fez questão de lembrar: “Não posso fazer Adaptação de novo.”Foi então que Estou Pensando em Acabar com Tudo voltou à minha vida. Lembrei que, anos antes, havia decidido deliberadamente não assistir ao filme. Mas, afinal, era um Kaufman dirigindo — e não fazia sentido manter essa lacuna. Resolvi encarar.
Como disse antes, eu tinha gostado muito do livro. E qual não foi minha surpresa ao descobrir que o filme é, de fato, ainda melhor. Não são muitos os casos em que o cinema supera a literatura — e, quando isso acontece, costuma ser porque o texto original era medíocre. Raramente um grande livro dá origem a um filme tão ou mais potente. Mas não vou me perder nesse debate: já aprendi que textos longos cansam os leitores de internet e esse ja esta longo demais. Aliás, tenho a impressão de que nem os amigos leem mais, mesmo quando a gente envia o link com carinho. Pelo menos é o que percebo quando converso sobre algo que acabei de escrever, um disco que gosto e a pessoa age como se isso fosse novo. Enfim...
O que importa é que Kaufman acrescenta ao filme uma camada que o livro apenas insinuava: a arte como tema central. E ele o faz de um modo que é, ao mesmo tempo, poético e crítico, equilibrando-se entre o ensaio e a confissão — uma reflexão sobre o que significa criar em um mundo que parece já não ter espaço para o mistério.
O filme, à primeira vista, parece simples: uma jovem viaja com o namorado para conhecer os pais dele, em uma fazenda isolada. O relacionamento é recente, e a estrada coberta de neve sugere tanto uma travessia física quanto um percurso emocional. Mas logo percebemos que Estou Pensando em Acabar com Tudo não é sobre isso — a viagem não é real, e o encontro familiar é apenas um artifício narrativo, um teatro íntimo encenado dentro da mente de um homem no fim da vida.
O que vemos é, na verdade, o processo de um homem relembrando — ou talvez reinventando — tudo o que não viveu: as oportunidades desperdiçadas, os amores que não prosperaram, os sonhos que se desintegraram ao longo dos anos. A jovem, interpretada por Jessie Buckley, não existe como pessoa, mas como síntese mental, uma amálgama de lembranças, desejos e arrependimentos. Ela é o espelho das mulheres que passaram por sua vida — ou que ele apenas imaginou ter amado.
Kaufman não tem qualquer interesse em construir suspense ou em entregar reviravoltas. O que o fascina é o jogo de identidades e memórias, a forma como o pensamento se dobra sobre si mesmo até se tornar ininteligível. Ele quer que o espectador perceba, desde o início, que está preso a esse labirinto mental. Não há um mistério a ser resolvido — há apenas a lenta constatação de que tudo o que vemos é reflexão, não revelação.
Ao contrário de tantos filmes que se apoiam no “twist” final, Kaufman não trata a natureza das lembranças como um truque. Se fizesse isso, a dimensão filosófica da obra se perderia: só entenderíamos o filme quando ele terminasse, e o que importa aqui é a percepção gradual, o modo como o espectador é convidado a viver o pensamento, não apenas a descobri-lo.Essas são reflexões sinceras, não performances de tristeza. Logo no início, ouvimos uma frase que resume toda a ética do filme: “Você pode fingir uma ação, uma fala — mas não um pensamento.” E é nisso que reside a força de Kaufman: ele acredita que os pensamentos, por mais contraditórios ou dolorosos, são as últimas verdades autênticas que nos restam. Mesmo quando mentimos para nós mesmos, sabemos — lá no fundo — que estamos mentindo.
A estética do filme reforça essa clausura mental. O formato 4:3, quase quadrado, estreita o espaço visual e cria uma sensação constante de claustrofobia. Não há respiro. É como se o enquadramento nos empurrasse para dentro da cabeça do protagonista. O resultado é um visual nostálgico, reminiscente das fotografias antigas, que traduz o aprisionamento do tempo e da memória. Esse enquadramento reduzido também intensifica os estranhamentos sutis — especialmente nas transições entre o Jake jovem e o Jake velho, nos closes em que as eras parecem se sobrepor sem que percebamos exatamente quando.
A jovem é, em essência, uma projeção do inconsciente de Jake — a personificação daquilo que ele tentou esconder de si mesmo. É nesse ponto que surge o porão, um dos elementos mais simbólicos e inquietantes do filme. Em quase toda narrativa, o porão é o espaço do que foi reprimido; aqui, ele cumpre a mesma função: representa o id, o território subterrâneo da mente, onde se acumulam as memórias recalcadas, os desejos não ditos e as verdades que ele se recusa a encarar.
Não é por acaso que, em certo momento, a jovem diz à mãe dele: “O Jake não quer que eu vá ao porão.” É claro que não quer. Ele teme que essa mulher — perfeita em sua imaginação, moldada como projeção idealizada — desça ao subsolo simbólico de sua psique e descubra aquilo que ele mais tenta esconder: suas fragilidades, seus fracassos, sua solidão essencial. A resposta da mãe é reveladora: “Ele se isola. Tem poucas pessoas na vida.” O porão, portanto, é mais do que um espaço físico — é o coração trancado do personagem, o lugar onde o amor não entrou e de onde ele nunca saiu.Tratar essa narrativa não como mistério, mas como estrutura de memória, é uma escolha brilhante de Kaufman. Se o filme guardasse a revelação para o final, reduzindo tudo a um truque de roteiro, perderia o que há de mais potente em sua proposta: a reflexão sobre a natureza das lembranças, da identidade e do arrependimento. O que interessa não é descobrir que tudo se passa na mente de alguém — é perceber isso aos poucos, sentir a oscilação entre lembrança e invenção, e reconhecer-se nesse fluxo.
O personagem de Jake não é movido por uma patologia grave, tampouco por delírio. Kaufman não o trata como doente, mas como um homem paralisado pela falta de escolha. Ele vive à margem da própria vida, observando-a acontecer. Permite que as coisas sigam seu curso, como quem espera que o sentido venha de fora. Sua tragédia não é a loucura — é a passividade, o hábito de deixar o tempo decidir por ele.
Somos sempre, em alguma medida, fruto da criação que nos formou. No caso de Jake, o isolamento na fazenda e a ausência de amigos moldaram uma personalidade retraída, incapaz de lidar com o mundo. Em um dos flashbacks, vemos os pais discutindo ao fundo — uma lembrança breve, mas suficiente para sugerir que a solidão do personagem não é escolha, e sim consequência. O ambiente em que cresceu explica a dificuldade de se conectar, o medo da exposição, a vida que levou.Cresci também em uma fazenda. Tinha asma e passava mais tempo dentro do quarto lendo do que correndo lá fora. Sempre fui tímido, embora tivesse muitos amigos na escola; nunca me tranquei completamente dentro de mim, mas o simples fato de morar longe já impunha uma solidão silenciosa, de longos fins de tarde em que o tempo parecia se arrastar. Por isso, me identifiquei tanto com Jake. Seu isolamento, seu olhar voltado para dentro, me pareceram familiares. compreendemos que a solidão do personagem não é uma escolha, mas uma herança. O ambiente em que cresceu explica o medo da exposição, a dificuldade de se conectar, a vida que acabou levando — uma vida que, de certo modo, também poderia ter sido a minha.
O terror do filme nasce dessa angústia silenciosa. Kaufman brinca com elementos típicos do gênero — o porão escuro, a estrada coberta de neve, a sorveteria no meio do nada —, mas subverte tudo isso. O medo, aqui, não vem de monstros, e sim da consciência de não ter vivido plenamente, de perceber que o tempo passou e nada aconteceu. O verdadeiro horror é o de olhar para trás e ver que a própria existência se tornou um borrão.
O filme lamenta essa falta de realização, a dor de quem teve sonhos, mas nunca o impulso de persegui-los. Jake, formado em física, é agora zelador em uma escola. Há algo profundamente comovente nessa queda silenciosa: o homem que um dia estudou o universo termina limpando as sobras dele. Não que esse trabalho seja indigno — Kaufman não julga isso —, mas é impossível não sentir o peso simbólico dessa trajetória. Em certo momento, o personagem observa antigos alunos que agora trabalham em supermercados e reflete sobre como todos, ele inclusive, cederam à mediocridade do possível. A vida se tornou uma sucessão de dias aceitáveis, quando poderia ter sido algo mais.
E talvez seja por isso que o filme comove tanto. Porque, no fundo, fala de todos nós, dos caminhos que deixamos de seguir, das conversas que não tivemos, das pessoas que deixamos passar. O que Kaufman constrói é menos um drama psicológico e mais um espelho existencial — um lembrete de que o tempo é implacável, e de que a vida, se não for vivida agora, será lembrada apenas como hipótese.
Quando o filme termina, voltamos às mesmas perguntas que o abriram — aquelas que ecoam dentro da cabeça, quando o silêncio é total: o que fazemos quando não há mais ninguém? o que significa um dia, uma vida inteira? Kaufman não oferece respostas. Talvez porque, no fundo, não existam respostas — apenas o pensamento, esse último território onde ainda somos reais.








Um comentário:
Que reflexão legal Gustavo, adorei ❤️. Gosto muito desse filme
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