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quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Estou pensando em acabar com tudo


“ o mundo é maior do que o interior de sua cabeça” (Jake)


O que fazemos quando não há mais ninguém? Quando precisamos sustentar o próprio peso sem o amparo de outra presença? Como seguir quando o eco é a única resposta? Quando não há ninguém — nunca — o que resta da vida? O que significa um dia, uma semana, um ano? O que é, afinal, uma vida inteira? Tudo parece apontar para algo além de si mesmo, como se o sentido estivesse sempre em outro lugar. Talvez seja preciso tentar de novo, por outro caminho.

Não é que não sejamos capazes de aceitar o amor ou a empatia. É que essas coisas só existem em relação — e, quando não há ninguém, com quem partilhar o gesto? Ações e movimentos, no fundo, são performances: construções que imitam a verdade, mas raramente a tocam. Toda ação é um disfarce, uma tentativa de organizar o caos.

A vida, então, se torna uma alegoria: uma metáfora longa demais, uma narrativa que usamos para suportar o vazio. Não compreendemos o sentido das coisas apenas pela experiência — nós o reconhecemos por meio dos exemplos, das histórias que nos servem de espelho.

Li Estou Pensando em Acabar com Tudo, de Iain Reid, em 2021 — no auge da pandemia. Foi um livro que me marcou profundamente, talvez porque sua solidão dialogasse com a do mundo. Um thriller psicológico, denso e melancólico, que parecia feito sob medida para aquele tempo suspenso, quando o isolamento era literal e simbólico. (Bem, ao menos deveria ter sido literal — se as pessoas fossem de fato empáticas e não apenas hipócritas que se escondem atrás de discursos religiosos e regras morais, mas vivem na contramão daquilo que pregam.)

Eu já havia decidido, há algum tempo, não ver adaptações de livros que tivesse lido — nem continuações, nem transposições de games ou gibis. Então, quando a adaptação cinematográfica do romance foi anunciada naquele mesmo ano, passei batido. O livro, afinal, pedia uma releitura: ele mesmo convida o leitor a recomeçar do fim, a voltar ao início com outro olhar. Mas, entre tantas páginas e tantos outros títulos à espera, acabei adiando esse retorno — por enquanto.


Mas acontece que o filme é dirigido por Charlie Kaufman — um dos roteiristas mais geniais e singulares deste século. Daqueles raros autores cuja assinatura permanece intacta, mesmo quando filtrada por diretores diferentes como Spike JonzeMichel Gondry ou George Clooney. São poucos os roteiristas que conseguem isso: ser reconhecíveis mesmo quando o enquadramento não lhes pertence.

E, ao contrário de tantos nomes brilhantes que tropeçam quando passam da escrita à direção, Kaufman parece ter encontrado justamente aí o seu terreno natural. Sinédoque, Nova York continua sendo, a meu ver, uma das maiores obras-primas do cinema contemporâneo — um filme absolutamente devastador e luminoso ao mesmo tempo, como só ele saberia fazer.

Kaufman esteve em São Paulo na semana passada, durante a Mostra Internacional de Cinema, para um evento que precedeu a exibição de seu novo curta Como Fotografar um Fantasma e também de Anomalisa. A conversa, mediada pela roteirista Eva H.D. — parceira dele tanto neste curta quanto no anterior Jackals & Fireflies — tinha algo de metalinguístico, quase uma versão da vida real de Adaptação, aquele filme dirigido por Spike Jonze em que Nicolas Cage interpreta o próprio Kaufman, em crise criativa e perseguido pela sombra de um irmão inventado. O próprio Kaufman, com seu humor meio seco, fez questão de lembrar: “Não posso fazer Adaptação de novo.”

Foi então que Estou Pensando em Acabar com Tudo voltou à minha vida. Lembrei que, anos antes, havia decidido deliberadamente não assistir ao filme. Mas, afinal, era um Kaufman dirigindo — e não fazia sentido manter essa lacuna. Resolvi encarar.

Como disse antes, eu tinha gostado muito do livro. E qual não foi minha surpresa ao descobrir que o filme é, de fato, ainda melhor. Não são muitos os casos em que o cinema supera a literatura — e, quando isso acontece, costuma ser porque o texto original era medíocre. Raramente um grande livro dá origem a um filme tão ou mais potente. Mas não vou me perder nesse debate: já aprendi que textos longos cansam os leitores de internet e esse ja esta longo demais. Aliás, tenho a impressão de que nem os amigos leem mais, mesmo quando a gente envia o link com carinho. Pelo menos é o que percebo quando converso sobre algo que acabei de escrever, um disco que gosto e a pessoa age como se isso fosse novo. Enfim...


O que importa é que Kaufman acrescenta ao filme uma camada que o livro apenas insinuava: a arte como tema central. E ele o faz de um modo que é, ao mesmo tempo, poético e crítico, equilibrando-se entre o ensaio e a confissão — uma reflexão sobre o que significa criar em um mundo que parece já não ter espaço para o mistério. 

O filme, à primeira vista, parece simples: uma jovem viaja com o namorado para conhecer os pais dele, em uma fazenda isolada. O relacionamento é recente, e a estrada coberta de neve sugere tanto uma travessia física quanto um percurso emocional. Mas logo percebemos que Estou Pensando em Acabar com Tudo não é sobre isso — a viagem não é real, e o encontro familiar é apenas um artifício narrativo, um teatro íntimo encenado dentro da mente de um homem no fim da vida.

O que vemos é, na verdade, o processo de um homem relembrando — ou talvez reinventando — tudo o que não viveu: as oportunidades desperdiçadas, os amores que não prosperaram, os sonhos que se desintegraram ao longo dos anos. A jovem, interpretada por Jessie Buckley, não existe como pessoa, mas como síntese mental, uma amálgama de lembranças, desejos e arrependimentos. Ela é o espelho das mulheres que passaram por sua vida — ou que ele apenas imaginou ter amado.

Kaufman não tem qualquer interesse em construir suspense ou em entregar reviravoltas. O que o fascina é o jogo de identidades e memórias, a forma como o pensamento se dobra sobre si mesmo até se tornar ininteligível. Ele quer que o espectador perceba, desde o início, que está preso a esse labirinto mental. Não há um mistério a ser resolvido — há apenas a lenta constatação de que tudo o que vemos é reflexão, não revelação.

Ao contrário de tantos filmes que se apoiam no “twist” final, Kaufman não trata a natureza das lembranças como um truque. Se fizesse isso, a dimensão filosófica da obra se perderia: só entenderíamos o filme quando ele terminasse, e o que importa aqui é a percepção gradual, o modo como o espectador é convidado a viver o pensamento, não apenas a descobri-lo.

Essas são reflexões sinceras, não performances de tristeza. Logo no início, ouvimos uma frase que resume toda a ética do filme: “Você pode fingir uma ação, uma fala — mas não um pensamento.” E é nisso que reside a força de Kaufman: ele acredita que os pensamentos, por mais contraditórios ou dolorosos, são as últimas verdades autênticas que nos restam. Mesmo quando mentimos para nós mesmos, sabemos — lá no fundo — que estamos mentindo.

A estética do filme reforça essa clausura mental. O formato 4:3, quase quadrado, estreita o espaço visual e cria uma sensação constante de claustrofobia. Não há respiro. É como se o enquadramento nos empurrasse para dentro da cabeça do protagonista. O resultado é um visual nostálgico, reminiscente das fotografias antigas, que traduz o aprisionamento do tempo e da memória. Esse enquadramento reduzido também intensifica os estranhamentos sutis — especialmente nas transições entre o Jake jovem e o Jake velho, nos closes em que as eras parecem se sobrepor sem que percebamos exatamente quando.

A jovem é, em essência, uma projeção do inconsciente de Jake — a personificação daquilo que ele tentou esconder de si mesmo. É nesse ponto que surge o porão, um dos elementos mais simbólicos e inquietantes do filme. Em quase toda narrativa, o porão é o espaço do que foi reprimido; aqui, ele cumpre a mesma função: representa o id, o território subterrâneo da mente, onde se acumulam as memórias recalcadas, os desejos não ditos e as verdades que ele se recusa a encarar.

Não é por acaso que, em certo momento, a jovem diz à mãe dele: “O Jake não quer que eu vá ao porão.” É claro que não quer. Ele teme que essa mulher — perfeita em sua imaginação, moldada como projeção idealizada — desça ao subsolo simbólico de sua psique e descubra aquilo que ele mais tenta esconder: suas fragilidades, seus fracassos, sua solidão essencial. A resposta da mãe é reveladora: “Ele se isola. Tem poucas pessoas na vida.” O porão, portanto, é mais do que um espaço físico — é o coração trancado do personagem, o lugar onde o amor não entrou e de onde ele nunca saiu.

Tratar essa narrativa não como mistério, mas como estrutura de memória, é uma escolha brilhante de Kaufman. Se o filme guardasse a revelação para o final, reduzindo tudo a um truque de roteiro, perderia o que há de mais potente em sua proposta: a reflexão sobre a natureza das lembranças, da identidade e do arrependimento. O que interessa não é descobrir que tudo se passa na mente de alguém — é perceber isso aos poucos, sentir a oscilação entre lembrança e invenção, e reconhecer-se nesse fluxo.

O personagem de Jake não é movido por uma patologia grave, tampouco por delírio. Kaufman não o trata como doente, mas como um homem paralisado pela falta de escolha. Ele vive à margem da própria vida, observando-a acontecer. Permite que as coisas sigam seu curso, como quem espera que o sentido venha de fora. Sua tragédia não é a loucura — é a passividade, o hábito de deixar o tempo decidir por ele.

Somos sempre, em alguma medida, fruto da criação que nos formou. No caso de Jake, o isolamento na fazenda e a ausência de amigos moldaram uma personalidade retraída, incapaz de lidar com o mundo. Em um dos flashbacks, vemos os pais discutindo ao fundo — uma lembrança breve, mas suficiente para sugerir que a solidão do personagem não é escolha, e sim consequência. O ambiente em que cresceu explica a dificuldade de se conectar, o medo da exposição, a vida que levou.

Cresci também em uma fazenda. Tinha asma e passava mais tempo dentro do quarto lendo do que correndo lá fora. Sempre fui tímido, embora tivesse muitos amigos na escola; nunca me tranquei completamente dentro de mim, mas o simples fato de morar longe já impunha uma solidão silenciosa, de longos fins de tarde em que o tempo parecia se arrastar. Por isso, me identifiquei tanto com Jake. Seu isolamento, seu olhar voltado para dentro, me pareceram familiares. compreendemos que a solidão do personagem não é uma escolha, mas uma herança. O ambiente em que cresceu explica o medo da exposição, a dificuldade de se conectar, a vida que acabou levando — uma vida que, de certo modo, também poderia ter sido a minha.

terror do filme nasce dessa angústia silenciosa. Kaufman brinca com elementos típicos do gênero — o porão escuro, a estrada coberta de neve, a sorveteria no meio do nada —, mas subverte tudo isso. O medo, aqui, não vem de monstros, e sim da consciência de não ter vivido plenamente, de perceber que o tempo passou e nada aconteceu. O verdadeiro horror é o de olhar para trás e ver que a própria existência se tornou um borrão.

O filme lamenta essa falta de realização, a dor de quem teve sonhos, mas nunca o impulso de persegui-los. Jake, formado em física, é agora zelador em uma escola. Há algo profundamente comovente nessa queda silenciosa: o homem que um dia estudou o universo termina limpando as sobras dele. Não que esse trabalho seja indigno — Kaufman não julga isso —, mas é impossível não sentir o peso simbólico dessa trajetória. Em certo momento, o personagem observa antigos alunos que agora trabalham em supermercados e reflete sobre como todos, ele inclusive, cederam à mediocridade do possível. A vida se tornou uma sucessão de dias aceitáveis, quando poderia ter sido algo mais.

E talvez seja por isso que o filme comove tanto. Porque, no fundo, fala de todos nós, dos caminhos que deixamos de seguir, das conversas que não tivemos, das pessoas que deixamos passar. O que Kaufman constrói é menos um drama psicológico e mais um espelho existencial — um lembrete de que o tempo é implacável, e de que a vida, se não for vivida agora, será lembrada apenas como hipótese.

Quando o filme termina, voltamos às mesmas perguntas que o abriram — aquelas que ecoam dentro da cabeça, quando o silêncio é total: o que fazemos quando não há mais ninguém? o que significa um dia, uma vida inteira? Kaufman não oferece respostas. Talvez porque, no fundo, não existam respostas — apenas o pensamento, esse último território onde ainda somos reais.



Um comentário:

pat disse...

Que reflexão legal Gustavo, adorei ❤️. Gosto muito desse filme