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quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Discos que esquecemos


Ontem, num sebo, me vi de novo fazendo o que mais gosto: fuçando prateleiras, caçando CDs de bandas de rock que eu não conhecia — ou achava que não conhecia. Ia pelo instinto, pela capa, como se a estéticaainda dissesse mais que o algoritmo.

Já estava no fim da garimpagem. A pilha de achados crescia, e eu começava a deixar alguns de lado quando um nome simples me fisgou: Girls. O título era ainda mais despretensioso — Album.

Dei de ombros, mas senti aquele breve arrepio que precede uma lembrança. Um déjà vu musical. À primeira vista, o nome me levou à série Girls, mas algo ali soava mais antigo. Como se a banda já tivesse passado pela minha vida sem deixar bilhete.

O encarte não ajudava: só fotos de garotas, cada uma representando uma faixa. Nada de letras, nada de contexto. Na última imagem, dois rapazes — provavelmente a banda. Ou o duo. Fiquei indeciso se levava. O nome, confesso, não me seduzia, mas a capa tinha algo: um ar cool, minimalista, que me lembrou Behaviour, dos Pet Shop Boys — e não por acaso também um duo.

Levei.

E, por curiosidade ou destino, foi o primeiro que botei pra tocar assim que entrei no carro (sim, ainda tenho toca-CDs no carro). Bastaram os primeiros acordes de “Lust for Life” pra memória voltar como uma onda: eu não apenas já tinha ouvido falar do duo — eu já tinha ouvido o disco. E muito. Conseguia até cantarolar os versos, meio surpreso com a própria voz. A faixa seguinte, “Laura”, também me soava familiar. Foi quando percebi: eu não estava conhecendo uma banda nova — estava reencontrando uma antiga conhecida que minha memória tinha arquivado num canto esquecido.

O problema é que não lembro de onde. Talvez fosse um disco que baixei na época em que se baixava tudo — e que se perdia tudo também. Talvez tenha ouvido num filme, lido sobre em algum jornal, numa crítica de rodapé. Procurei no IMDb e não encontrei nada. Nenhuma trilha sonora que explicasse aquela familiaridade absurda. Falando em cinema, me veio à cabeça (500) Dias com Ela), de 2009 — curiosamente o mesmo ano do álbum. Antes de pesquisar, eu jurava que fosse de uns anos antes, coisa do início dos 2000. Mas não: é até mais recente do que eu pensava. O curioso é que 2009 ainda parece ontem — embora já tenha 16 anos.


O que começou como uma simples sensação virou uma redescoberta. Eu não só conhecia o disco, como o tinha ouvido bastante, mesmo que por um curto período — e o havia esquecido completamente. Desde então, tento entender de onde veio.

Pesquisei um pouco: o Girls era uma banda de indie rock de São Francisco, formada em 2007, com dois membros — Christopher Owens e JR White. Lançaram só dois discos — esse e Father, Son, Holy Ghost (2011), que, claro, já encomendei. Em 2012, Owens anunciou sua saída pra seguir carreira solo, encerrando o grupo. Encontrei também um LP solo dele num preço ótimo — e arrisquei.

Lendo sobre o compositor, descobri uma história que parece ficção: Owens cresceu na seita itinerante Children of God. O irmão mais novo morreu de pneumonia porque os fiéis recusavam atendimento médico. Não gosto de comparar religiões, mas há seitas que fazem as outras parecerem perfeitamente razoáveis.

Recentemente, um amigo me pediu desculpas por não ir à minha festa de 50 anos: disse que “não comemora aniversários”. Quase respondi que não precisava explicar — eu sabia o motivo, e qualquer explicação soaria ainda mais absurda. Nunca vou entender o que leva as pessoas a isso, embora elas creiam fielmente que sabem.

A família de Owens deixou os Estados Unidos pra seguir com o grupo, vivendo “por toda a Ásia” até ele completar dez anos. Depois, pela Europa. Aos 16, na Eslovênia, ele deixou a seita, voltou pros EUA, trabalhou em tudo quanto é canto — inclusive repondo CDs em supermercado — e, anos depois, formou o duo que eu reencontraria, sem querer, no fundo de uma prateleira empoeirada.

Ainda estou ouvindo o disco. Parei na segunda faixa, revivendo lembranças que eu nem sabia que existiam. Talvez, com sorte, outra música me devolva o resto do que perdi.

Por coincidência, agora em outubro a banda Oktober Beaver vai abrir o show do Weezer, em São Paulo. Outra que também vive num desses cantos apagados da memória. Lembro que, anos atrás, quando discos importados levavam meses pra chegar, recebi um LP japonês da banda — e não fazia ideia de por que o tinha comprado. Devia ter visto num filme, gostado, esquecido, e o disco ficou.

Até hoje não lembro o motivo do primeiro impulso. Comprei outros depois, mas sempre me intriga não lembrar como cheguei ao primeiro — mesmo há tão pouco tempo.

Mas a verdade é que a memória também se desgasta. A gente vive, ouve, lê, baixa, apaga. E um dia reencontra tudo isso — num sebo, numa música, num refrão esquecido — e percebe que o passado tem trilha sonora. Só que ela toca baixinho, como um vinil gasto, mas com chiado demais pra ser esquecida de vez.

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