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domingo, 12 de outubro de 2025

SOMOS ROCK


Já me cansei de festivais. Não tenho mais corpo, nem idade para isso. Hoje em dia, a sensação é que você vai muito mais pela “experiência” coletiva do que pelo show em si. Talvez por isso nunca tenha me seduzido o João Rock, em Ribeirão Preto. O line-up até tinha bons nomes, mas eram bandas que eu já tinha visto em dias melhores, misturadas com outras que pouco me interessavam. E quando interessavam, eu preferia ver em show fechado, menor, com menos suor de desconhecido encostando no ombro.

Mas aí veio o Somos Rock de 2015. Um festival em comemoração aos 40 anos da 89 FM, autointitulado "A Radio do Rock" e que prometia nove grandes nomes do rock nacional dos anos 80 e 90, praticamente a trilha sonora da minha infância e adolescência. Na verdade eram onze atrações, mas estou ignorando duas exceções no cartaz que não me fariam nunca sair de casa..

O problema foi a logística. Eu não estava disposto a encarar São Paulo e depois voltar dirigindo de madrugada. Resolvi então comprar uma excursão. Ingenuidade minha achar que seria “tranquilo”. Faltando dois dias para o embarque veio a confirmação do horário: saída às 2h30 da manhã em Jaú, cidade vizinha, o que já me obrigava a sair de casa de carro em plena madrugada. Mas vá lá: era cedo, mas fazia sentido, já que o ônibus ainda passaria por mais três cidades recolhendo gente.

Naturalmente, dormi mal. Fui para a cama cedo, pouco depois das 21h, mas o sono não veio fácil. Acordei às 23h para ir ao banheiro, depois voltei a dormir até quase 1h. Às 2h já estava em Jaú, meia hora antes da partida. O horário era impreterível: 2h30. Ou melhor, quase. Porque às 2h40 ainda faltavam duas passageiras. O ônibus partiu mesmo sem elas. Até que, no meio da estrada, o motorista parou e — adivinhe — lá vieram as duas correndo, jurando que no site constava saída às 3h. Pode até ser, mas havia um e-mail com anexos detalhados sobre os horários. Só que, no Brasil, manual de instruções é ficção científica. Resultado: saímos de Jaú com meia hora de atraso.

Chegamos a Bauru por volta das 4h. O cronograma já previa atrasos e percalços, então, em tese, ainda estávamos dentro do tempo. A volta, combinada para um posto de gasolina a poucos quarteirões do local do show, seria o teste final de convivência. E falhamos de novo. Duas mulheres se perderam — mesmo sendo em linha reta. O guia havia repetido mil vezes: “marquem referências, olhem bem o trajeto”. De nada adiantou. No ônibus, a instrução era esperar do lado de fora do posto para tirar uma foto antes de entrar. Três ou quatro ignoraram solenemente e entraram direto. Mais atraso. Perdemos quase uma hora parados em São Paulo por pura falta de atenção. O ser humano em excursão é sempre um estudo de caso.

Por sorte, o show acabou quase uma hora antes do previsto e o prejuízo não foi catastrófico — apenas aquele stress básico de quem tenta viver em comunidade.

E então, finalmente, vamos aos shows.

O FESTIVAL

Chegamos ao local dos shows às 10h. Os portões só abririam às 11h, então ficamos ali, feito gado no curral, esperando a boa vontade da produção. Quando enfim entramos, o espaço ainda estava praticamente vazio. Era possível andar sem esbarrar em ninguém, chegar tranquilo nas barracas e até comprar alguma coisa sem fila. Um luxo temporário.

Como já tínhamos parado às 7h30 num posto da estrada e feito um café da manhã que custou o equivalente a um mês de pó em casa (sem exagero), dispensei comida. Fui direto ao banheiro — ainda limpo, um milagre digno de registro — e depois garanti um chope e uma cerveja. E foi aí que fiz a pior escolha: deixei os salgadinhos e bolachas na mochila, dentro do ônibus. Não por falta de experiência — já fui a inúmeros shows — mas por um delírio temporário de achar que não faria falta.

O espaço tinha dois palcos, um do lado do outro, esquema pensado para que, quando um show acabasse, o próximo já começasse sem demora. Ótimo para quem foi pela música — e, no meu caso, significava que dificilmente sairia do lugar. Se eu me afastasse, não teria como voltar para o ponto estratégico que achei: bem no meio dos dois palcos, um pouco distante da grade, mas perfeito para acompanhar tudo sem precisar virar atleta de maratona. O terreno era uma desgraça, cheio de areia e irregular. No centro havia uma comprida base de plástico que separava os dois palcos, e foi em cima dela que fiquei, como quem encontra um oásis em meio ao deserto, protegendo a coluna de uma futura hérnia.

Para bebidas, até que funcionava: ambulantes circulando, acesso fácil. Mas comida era outra história. Havia umas três barracas mal distribuídas pelo evento, concentrando espetinhos, lanches e pastéis. E só. Nada daquela pompa de “experiência gastronômica” que festival moderno adora inventar. O cardápio era direto: coma ou passe fome. Eu escolhi a segunda opção. Às 11h30, quatro horas depois do café, ainda estava abastecido. Podia ter comprado alguma coisa para garantir, mas sinceramente não me animei. O objetivo era ver shows, não disputar fila de pastel. Mesmo assim tinha a experança de sair no meio de um show menor.

1- RAIMUNDOS



O Raimundos foi escalado para a ingrata função de abrir o festival ao meio-dia, com o sol martelando a cabeça e ainda assim arrastando um público considerável. No palco, a formação atual que se consolidou ao longo das provações: Marquim, que assumiu a guitarra após a saída de Rodolfo; Jean Moura, ex-roadie convertido a baixista oficial depois da morte de Canisso; e Caio Cunha, dono das baquetas há quase duas décadas. À frente, Digão — o último elo da formação original e guardião do nome Raimundos, sustentando a marca mesmo depois da troca traumática de vocalista. Se a longevidade do grupo pode ser questionada, o repertório não: eles têm hits suficientes para segurar qualquer plateia por uma hora sem baixar a energia.

O show foi pesado — até mesmo as baladas que um dia renderam sucesso radiofônico soaram com vigor, distantes das concessões comerciais do passado. Não por acaso, Rodolfo justificou sua saída, anos atrás, alegando que já não se via interpretando letras adolescentes, que soariam incompatíveis com sua nova vida espiritual. É curioso notar que essas mesmas letras, que hoje poderiam ser alvos de críticas, seguem entoadas com devoção pelos fãs, indiferentes ao sol a pino e à passagem do tempo.

De onde eu estava, não se ouviram provocações à postura política da banda. Longe da grande mídia, o Raimundos deixou para trás as imposições de gravadoras — como a obrigatória versão de 20 e Poucos Anos, de Fábio Jr. — que, embora desdenhadas por puristas, foram decisivas para colocar o grupo, ainda que brevemente, no mainstream, coisa que outras bandas pesadas da época, como o Dead Fish, jamais conseguiram.

Se o peso das guitarras foi inegável, a regulagem de som não colaborou: vocais mal equilibrados e instrumentos por vezes embolados. Nada, porém, que atrapalhasse o entusiasmo de quem já estava ali cedo — público que não veio por acaso, mas para ver os caras. O Raimundos pode até não ser mais a banda incômoda e disruptiva dos anos 90, mas sobreviveu ao que parecia impossível: a troca de vocalista, a morte de um integrante fundamental, a desconfiança da crítica. E se há uma certeza que permanece, é que no palco eles ainda sabem honrar o peso do próprio nome.

2- NANDO REIS


Mal o Raimundos encerrou no palco 1 e, pontualmente às 13h, Nando Reis já surgia no palco 2 — sem atrasos, sem enrolação. A seu lado, uma banda afiada: Eduardo Schuler na bateria e o filho Sebastião Reis nos violões (ambos do Colomy), além do sempre fiel Walter Villaça nas guitarras. Ou seja, Nando já entrava em campo com o jogo ganho: dono de um repertório que sustentaria horas de apresentação, em apenas uma hora não precisou de muito esforço para conquistar a plateia.

O problema, porém, foi o som. E aqui não dá para culpar a correria de festival, já que tanto Raimundos quanto Nando tiveram tempo de sobra para passagem. Aliás, quando cheguei por volta das 10h, o próprio Nando estava testando voz e violão. Ainda assim, o vocal soava fanho, estridente, como se alguém tivesse decidido equalizar a poesia em AM. Talvez não tenha sido a percepção de todos, mas eu estava justamente na frente de um conjunto de caixas que me atirava aquilo direto nos ouvidos — azar da geografia.

Felizmente, o repertório segurou a festa. O show abriu com Marvin, clássico dos Titãs, e seguiu por uma seleção de sucessos solo. Teve também a sempre obrigatória homenagem a Cássia Eller, que além de amiga foi intérprete de alguns dos maiores hits de Nando — e, convenhamos, também ajudou a impulsionar a carreira solo dele. Isso sem esquecer que Marisa Monte e Cidade Negra já haviam colocado seu nome no mapa das rádios antes mesmo dele assumir o protagonismo.

3- SUHAI

Talvez o nome mais estranho da escalação: quase ninguém sabia quem diabos era Suhai. Um cara? Uma banda? Um codinome secreto? Dias antes do festival, movido pela curiosidade, fui ao Deezer, ouvi duas músicas e desisti ,

Em meio a uma lista de medalhões do rock nacional, como surgiu esse nome desconhecido? Não faço ideia. Uma coisa é certa, tem um produtor influente e forte, mas a explicação provavelmente passa por favores de bastidores ou algum investimento generoso. Rock, afinal, também se move a acertos de contas.

Foi nesse momento que decidi sair para comer. Doce ilusão: o festival inteiro teve a mesma ideia. A fila era quilométrica, e se eu entrasse nela perderia o próximo show praticamente inteiro. Resultado: voltei para meu posto estratégico, sentei e deixei o som do Suhai vir até mim. Até agora não sei se era uma banda ou um cantor solo.

O que ouvi não ajudou a esclarecer. As músicas autorais lembravam um sertanejo universitário travestido de rock. Entre um acorde e outro, coube até uma cover de Cazuza para tentar animar o público. Mas o que vi foram conversas paralelas, celulares levantados e uma plateia mais interessada em matar o tempo do que prestar atenção.

A boa notícia é que a apresentação durou apenas meia hora. Suhai se despediu cedo e, involuntariamente, prestou um serviço: adiantou o cronograma do festival.

4 - IRA !


Mais um bom — e esperado — show. Desta vez, celebrando os 25 anos do Acústico MTV. Já perdi a conta de quantos shows do IRA! assisti ao longo da vida, mas lembro perfeitamente do primeiro: Lençóis Paulista, por volta de 1997. A banda vivia então um ostracismo pesado, depois do brilho dos anos 80 e de uma sequência de álbuns injustamente ignorados (Meninos da Rua PauloMúsica Calma para Pessoas NervosasSete). Ignorados pelo público, diga-se — porque eu, na época, ouvi todos até gastar o encarte.

A verdade é que, até o Acústico MTV, o IRA! sobrevivia de pequenos shows pelo interior. Foi o projeto da MTV que os catapultou de volta à primeira divisão do rock nacional. E ironia das ironias: músicas que haviam sido enormes fracassos, como Eu Quero Sempre Mais e Girassol, viraram hits radiofônicos. Não porque o público tivesse mudado de gosto da noite para o dia, mas porque, até então, faltara o empurrão das gravadoras e das rádios — e convenhamos, o público em geral não sai à caça de novidades; prefere consumir o que lhe é servido. Com o Acústico, veio a engrenagem de marketing e, de repente, aquelas canções ganharam a vitrine que sempre mereceram.

O fim viria em 2007, com Invisível DJ — um disco interessante, sim, mas que nunca encontrou seu brilho.  (escrevi uma crítica na época, aqui).   Depois, vieram brigas, processos e acusações dignas da Contigo. O retorno só aconteceu anos depois, com um longo e penoso mea culpa entre Nasi e Edgard Scandurra. Voltaram, mas sem Gaspa e André Jung— metade da formação original perdida pelo caminho. Em uma entrevista que fiz com Jung  (link aqui),, ficou claro que mágoas e ressentimentos ainda pairam no ar, como uma nuvem que não se dissipa.

Mas voltemos ao presente. O show foi, sim, excelente — ainda mais com um repertório à prova de falhas. Em apresentações curtas, o IRA! é imbatível. Consegui ver ao vivo músicas que nunca tinha testemunhado, entre elas Vida Passageira. Uma bela canção, sem dúvida, mas que abriga uma das piores frases já escritas no rock nacional — “onde a lua se parece com a bandeira da Turquia” — e obriga Nasi a se contorcer no microfone, como se fizesse aeróbica para caber no compasso. Ainda assim, bela canção.


E falando em Nasi, a voz já não é mais a mesma, mas neste show estava em forma bem melhor do que no desastre dos acústicos do ano passado. O ponto alto veio com Núcleo Base, que em 2025 ganhou contornos ainda mais políticos: Nasi passou o show inteiro fazendo sinais de “Anistia Não” em direção à plateia. Não sei se houve provocações diretas, mas seus sorrisos irônicos deixavam claro que havia ali um diálogo silencioso — e tenso.

De qualquer forma, foi um ótimo show. O IRA! pode ter atravessado crises, separações e reconciliações, mas segue com a mesma capacidade de traduzir, em música, as contradições do país — com raiva, lirismo e guitarras. E pensar que tudo começou, pra mim, lá em 1997, em Lençóis Paulista, no velho Marimbondo, quando a banda parecia um fantasma do passado. Quase trinta anos depois, ainda estou aqui — e eles também. E isso, num país que trata memória como coisa descartável, já é quase um milagre.

5 - BIQUINI CAVADÃO


Durante os anos de ouro do rock nacional, nos 80, o Biquini Cavadão jamais foi escalado para a “primeira divisão”. Tinha seus momentos radiofônicos com Tédio e Timidez, mas nunca chegou ao patamar de ParalamasTitãs ou Legião Urbana. E, ironicamente, foi na ressaca do gênero, já nos 90, que vieram os maiores hits da carreira: Zé NinguémVento Ventania e uma cover esperta de Chove Chuva, de Jorge Ben. Depois vieram Janaína e, em menor escala, Dani — e, sem perceber, o Biquini se tornou uma daquelas bandas que o público talvez não idolatre, mas sempre reconhece quando começa a tocar.

Na virada dos 2000, repetiram a cartilha do Capital Inicial e do IRA! — o auge tardio. Só que, se para os outros a salvação veio via o marketing dos acústicos MTV, o Biquini seguiu por outro caminho: virou uma espécie de banda de baile de luxo, abastecendo rádios com versões dançantes de clássicos dos anos 80, embaladas no projeto 80.

A crítica, claro, torceu o nariz. Mas a crítica especializada brasileira, convenhamos, há muito se especializou em falar mal do rock nacional — reverencia o virtuosismo de um Scandurra, mas faz cara feia diante do fã dos Engenheiros do Hawaii. Com o Biquini foi igual: diziam que faziam “pop vazio”, como se cantar sobre adolescência e tédio fosse um crime de lesa-pátria cultural.

Só que sejamos justos: o Biquini nunca quis ser filósofo da juventude. Queria divertir — e nisso, foi imbatível. A discografia guarda pérolas pop com melodias afiadas, arranjos limpos e produção eficiente. Mesmo os discos mais recentes escondem faixas inéditas que poderiam muito bem tocar em rádio, se ainda houvesse espaço para algo além da mesmice algorítmica. Os covers, regravados até o limite, garantiram sobrevida e uma fidelidade de público rara: shows lotados, estrada firme e até feitos improváveis — como lotar a praça central de Bariri na década passada. Poucos nomes do rock nacional podem se gabar de algo assim.

No centro de tudo está Bruno Gouveia, um dos grandes frontmen do país — carismático, preciso e dono de um controle absoluto da plateia. Seus shows são pura catarse: o público canta junto, pula, ri e esquece o resto da vida por uma hora. Foi exatamente assim no Parque Villa-Lobos: sob o sol impiedoso da tarde e o cansaço já rondando, Bruno e seu Biquini (perdão, não resisti) conseguiram levantar a multidão.

Não é filosofia. Mas quem precisa de filosofia quando se tem um refrão gritado a plenos pulmões, falando de tédio?

6 - PATO FU

Soube tarde demais que o Pato Fu tinha passado por Bauru. Uma pena. É uma daquelas bandas que, ao vivo, mostram camadas que o rádio nunca revelou — e que lembram o quanto a meiguice, quando levada a sério, pode ser uma forma de subversão. Quem reduz o grupo às baladinhas de fim de tarde dos anos 90 ignora o tanto de peso, ironia e invenção que eles carregam por trás das melodias doces.

O começo foi meio desastroso, e nem isso tirou o encanto. Fernanda Takai, visivelmente desconfortável, acenava para os técnicos como quem pede ajuda de um bote salva-vidas em alto-mar. Logo depois da primeira música, explicou: o retorno de palco tinha falhado. Engraçado — da plateia, o som parecia perfeito. Aos poucos, a sintonia foi voltando, como se a banda respirasse junto novamente, e o show tomou corpo. Quando tudo se encaixou, veio o prêmio: o carisma calmo de Fernanda, o humor de John Ulhoa, a elegância magnética de Ricardo Koctus no baixo, e, claro, o prazer quase doméstico de ver Xande Tamietti de volta à bateria — uma presença que, mesmo anunciada há tempos, ainda desperta aquele sorriso de quem reencontra um amigo antigo.

No setlist, os grandes clássicos estavam todos lá: “Canção pra Você Viver Mais”“Depois”“Sobre o Tempo” e o cover sempre irresistível de “Ando Meio Desligado”, dos Mutantes — que continua soando como uma ponte entre gerações de malucos criativos. Entre os hits, surgiam pérolas menos conhecidas, mas igualmente encantadoras, como “Gol de Quem?” (video aqui) e “O Filho Predileto do Rajneesh”, lembrando ao público que a banda nunca foi apenas sobre ternura — mas também sobre estranheza, ironia e experimentação.


O ponto alto, pra mim, veio com “Capetão 666 FM”. Uma pequena epopéia rock-pop-fu — caótica, divertida e absolutamente única. Pena que tocaram só a primeira parte, cortando o clímax antes do fim, e emendando direto em “Uh Uh Uh Lá Lá Lá Ié Ié”, encerrando o show num clima de festa leve e redentora.

Foi, de longe, o show mais inventivo e sincero do festival — aquele que faz a gente lembrar que nem toda doçura é inocente, e que o Pato Fu sempre foi isso: gentil na forma, provocador no conteúdo, e deliciosamente fora da casinha.

7- ULTRAJE A RIGOR

Alguém da plateia arriscou a provocação, mas mal conseguiu terminar a palavra “anistia” — o “não” foi instantaneamente soterrado pelo riff inicial de “Ciúme”. Roger olhou para os companheiros com aquele sorriso nervoso de quem já esperava o golpe. Um gesto cúmplice e automático, típico de quem aprendeu há décadas que provocação faz parte do ofício.

Ultraje a Rigor tem em “Nós Vamos Invadir Sua Praia” um dos discos mais sólidos — e paradoxais — do rock nacional. Onze faixas, dez hits. “Se Você Sabia” e “Zoraide” ficaram no banco de reservas, mas o resto é um desfile de clássicos. Um daqueles raros álbuns que se ouve do começo ao fim sem vontade de pular nada. O sucessor, “Sexo”, repetiu a façanha em menor escala: menos hinos, mas ainda quatro grandes canções que sobrevivem no imaginário coletivo, tocadas à exaustão em rádios, bares e ressacas.

O brilho, claro, foi se apagando com o tempo. Os anos 90 fecharam as portas do mainstream para quase todo o rock brasileiro — mas não para o público do interior, que continuou recebendo o Ultraje como se ainda estivéssemos em 1987. Mesmo quando o som já não estava nas paradas, os palcos seguiam lotados. E na virada dos 2000, Roger ainda cravou mais um hit, “Nada a Declarar”, com seu refrão inflamado que reciclava a velha verve debochada de “Filho da Puta” e “Chiclete”. Em meio ao marasmo sonolento da música brasileira da época, era quase um ato de resistência — ainda que disfarçado de piada.

No festival em questão, o clima era de pólvora contida. No mesmo lineup, Raimundos e Ultraje a Rigor — duas bandas cujos líderes, Digão e Roger, colecionam desavenças com meio mundo do rock nacional, agora turbinadas por suas posições políticas nada discretas. Some-se a isso o IRA!, que ocupa o extremo oposto do espectro ideológico, mas com a mesma agressividade verborrágica, e o backstage parecia mais um campo minado do que um camarim.

No fim do show, Roger tentou posar de diplomata. Anunciou ao microfone que ele e Edgard Scandurra haviam feito as pazes — “ele veio me pedir desculpas”, disse, com aquele ar de satisfação passivo-agressiva que já virou marca registrada. E completou, com a ironia que só ele acredita ser elegância: “Preferia que tivesse sido em público, mas tá valendo.”

O típico Roger: corrosivo, autoconfiante, incapaz de deixar a provocação morrer. O mesmo garoto de 1985 — só que agora tocando para um país que parece ter esquecido que o deboche também era uma forma de lucidez.

8- TITÃS

Confesso: esse era o show que eu planejava usar como desculpa para finalmente comer alguma coisa. Achei que, por ser lotado, não faria tanta diferença sair por uns minutos. Mas minha esposa me desestimulou: se saíssemos dali, onde tínhamos conquistado um ponto perfeito, jamais conseguiríamos voltar para ver os últimos shows. E como não sou desses caras de pau que chegam atrasados e empurram todo mundo para se meter na frente, acabei concordando.

A expectativa para os Titãs não era das maiores. Os últimos álbuns foram um desfile de canções fracas, e a banda hoje é só uma fração do que já foi — sobraram apenas três. Branco Mello, infelizmente, perdeu a voz para problemas sérios de saúde, e eu já havia assistido recentemente à turnê de reunião, aquela sim memorável.

Mas a sorte esteve do nosso lado: o formato de uma hora fez com que o repertório fosse certeiro. Só tropeçaram em Apocalypse Só, com aquele coro de crianças que já nasce irritante, mas o resto foi pancada atrás de pancada, clássicos tocados com peso e vigor. Até Marvin apareceu de novo, a segunda versão do dia, depois de Nando Reis mais cedo. E claro, no final não podia faltar Epitáfio, o maior hit dos Titãs neste século. Eu, particularmente, não suporto a canção, mas era inevitável — se até na turnê de reunião, centrada na fase em que todos estavam no grupo, ela entrou, aqui não seria diferente.

No fim, o show se mostrou muito melhor do que minhas expectativas deixavam supor. Tocaram com garra, o público cantou como se fosse a última vez, e até eu me vi contagiado. Para quem pretendia sair para comer, acabei engolindo tudo ali mesmo: riffs, letras e a sensação de que, quando os Titãs querem, ainda são gigantes.

9- NENHUM DE NÓS

A “cota sulista” do dia ficou a cargo do Nenhum de Nós, outra banda com carreira sólida e um punhado de hits que resistem ao tempo. É verdade que depois dos anos 2000 não emplacaram nada de hits nacionais (apesar de ótimos discos que valem a pena), mas continuam entregando um show cheio de grandes canções.

Thedy Corrêa, com sua presença habitual, talvez não estivesse nos melhores dias de voz — acontece até nos pampas. Ainda assim, faixas como Eu CaminhavaCamila, Camila e a sempre festejada versão de Starman, do David Bowie (que muita gente ainda jura ser uma música original da banda), garantiram momentos de coro coletivo.

Aliás, foi justamente durante Astronauta de Mármore que Thedy resolveu exercer seu lado justiceiro: parou o show no meio para dar um belo esporro nos roadies do Paulo Ricardo, que estavam testando a bateria bem na introdução. Para quem estava na plateia já era incômodo; para quem estava no palco, com retorno direto no ouvido, devia ser de enlouquecer. Foi quase uma performance paralela: Bowie no céu, roadies no chão e Teddy no meio, segurando a bronca.

10 - PAULO RICARDO


Não sabia exatamente o que esperar desse show. Não do que eu queria — isso estava claro —, mas do que poderia acontecer. Meu receio era encarar um Paulo Ricardo da fase solo “brega romântica”, quando tentou ser um Roberto Carlos. Aliás, foi a última coisa que soube dele, mesmo sem nunca ter acompanhado aquele período.

O RPM foi minha primeira paixão no rock nacional. Eu tinha uns 9 ou 10 anos quando o primeiro disco invadiu as rádios sem dó. No meu aniversário de 11, tinha certeza absoluta de que ganharia do meu tio Ari o recém-lançado Rádio Pirata ao Vivo. Que decepção quando, no dia, ele apareceu com um single do Roupa Nova com a música Dona. Um banho de água fria. Claro, depois ouvi aquele compacto tantas vezes que arranhei o vinil, mas na hora foi frustrante.

Ainda assim, foi esse mesmo tio que me levou ao show do RPM em Bauru. Não lembro o local — devia ser pequeno para aquele evento. Pode ter sido a Luso ou algum clube parecido. Mas sei que foi o mesmo espaço onde, algum tempo antes, vi o Barão Vermelho ainda com Cazuza. Esse último não me empolgou tanto quanto o RPM naquela época.

Mais tarde, outra tia me levou às Lojas Americanas em Bauru — naqueles tempos, o paraíso para quem gostava de música — e me deu o recém-lançado Quatro Coiotes. O disco não teve nem sombra do sucesso dos anteriores, mas eu ouvi demais, mesmo sem o apelo pop que a idade pedia. Partness virou uma das canções mais tocadas da minha vida naquela fase de descoberta.

Também lembro de um domingo em que acompanhei o mesmo tio até Jacuba, distrito de Arealva, onde ele ia jogar futebol. Fiquei no carro ouvindo a fita do Rádio Pirata ao Vivo. Isso já em 89/90 — foi uma redescoberta daquele álbum que nunca ganhei. Nessa época eu ainda não corria atrás de discos: ouvia o que tinha em casa e, na TV, nunca fui muito de programas musicais. Isso só mudou depois dos 15 anos, quando o interesse se firmou.

Tudo isso para chegar até o show do Paulo Ricardo. Qualquer receio desapareceu nos primeiros acordes de Rádio Pirata. O golpe da nostalgia veio forte. Louras Geladas logo em seguida, com a mesma potência. O clima deu uma caída com o cover chocho de Vida Real, e emendou com a atual Herói Made in Brazil — que tem toda a cara do velho RPM e deixa claro para quem é endereçada.


A grande surpresa da noite foi Juvenília. Não esperava por essa. E ainda teve a participação especial de Thedy Corrêa em A Cruz e a Espada — sem dúvida, um dos pontos altos do festival. Paulo Ricardo emendou depois um medley de cores: a chatinha Imagine fundida com One, do U2, e ainda uma citação de Strawberry Fields Forever. Pensei que puxaria London, London, do Caetano, aquela que o RPM fez virar deles, mas não veio. Uma pena. Pelo menos veio Flores Astrais, outra que o RPM apropriou com categoria. Mais um grande momento.

Já o cover em clima disco fora de epoca e sem inspiração de Pro Dia Nascer Feliz . Poderia ter escolhido qualquer outra, mas enfim. A compensação veio na reta final: Revoluções por MinutoAlvorada Voraz e Olhar 43 em sequência matadora, levando o show a um final catártico e energético.

Não havia como terminar melhor a noite. Mas ainda tinha mais um show.



11 TIJUANA

Nos primeiros anos da década de noventa, ainda na adolescência, o rock nacional era a minha grande paixão. De fora eu ouvia o que estava estourado: Guns N’ Roses, Faith No More, Nirvana, Red Hot Chili Peppers, Pink Floyd. Mas a coisa virou a partir de 95, já nos anos de faculdade. O nacional foi ficando em segundo plano e quem entrou com tudo foram Radiohead, Smashing Pumpkins, The Cure, The Smiths, Pixies, Luna, Velvet Underground, Belle and Sebastian, Bowie, Travis, Blur, Oasis, James, Meat Puppets, Dylan, Teenage Fanclub, Wilco e tantos outros que se acumulavam nas descobertas.

Do lado de cá, Skank, Raimundos e Pato Fu foram as últimas bandas brasileiras que realmente me interessaram. Depois disso, só os recifenses — Chico Science & Nação Zumbi, Mundo Livre, Eddie, Mula Manca — me chamaram a atenção em momentos diferentes. Já Jota Quest, Charlie Brown Jr., CPM 22, Pitty, Detonautas… nunca me deram vontade de ouvir um disco inteiro. O que conheço é o que tocava por aí, sem escapatória. Tirando Charlie Brown e Pitty, não sei distinguir uma música do CPM 22 ou dos Detonautas. Até conheço, mas não sei de quem é o quê.

E aí veio o Tijuana. Era a banda que eu já tinha decidido abandonar sem dó para finalmente comer e ir ao banheiro. Mas resolvi ficar, pelo menos umas duas músicas, só para ver qual era.

Começaram bem: peso, fusão de rap com rock e ritmos brasileiros, uma energia que lembrava Planet Hemp. Mas já na segunda música achei que tinha visto o suficiente e fui comer, ouvindo de longe. Enquanto isso, o público que estava no Palco 2 se aglomerou em frente ao Palco 1, mas nem assim encheu: dava para andar tranquilo e até chegar perto do palco sem esforço.

Depois de quase 14 horas de jejum, almocei e voltei para a apresentação. Mas a vibe inicial já tinha evaporado. Atrás de mim, uma garota cantava algumas músicas com algo que talvez fosse emoção — ou só hábito — mas enfim, estava se divertindo.

No fim, reconheci uma: aquela do Tropa de Elite que todo mundo conhece. Para ser honesto, eu só sabia o refrão, então nem percebi de imediato. Foi a deixa perfeita. Antes que a multidão resolvesse sair junto, aproveitei e fui embora. O festival acabou, e eu ja estava acabado fazia tempo.


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