Com o sucesso das “Extraordinárias Viagens” de Júlio Verne — entre elas Vinte Mil Léguas Submarinas, A Volta ao Mundo em 80 Dias e Viagem ao Centro da Terra —, publicadas na França na segunda metade do século XIX, o mercado editorial europeu descobriu uma nova febre literária. Escritores e editoras passaram a lançar coleções inspiradas em Verne, explorando aventuras ambientadas em terras distantes, repletas de invenções improváveis e personagens excêntricos, movendo-se na tênue fronteira entre a ciência e o sonho.
Entre os nomes que seguiram essa trilha estava Paul Deleutre (1856–1915), que assinava suas obras com o pseudônimo Paul D’Ivoi. Um dos autores mais prolíficos de seu tempo, D’Ivoi escreveu dezenas de romances populares, incluindo cerca de uma dúzia de histórias de aventura no estilo “científico-fantástico”. O mais conhecido deles, Les Cinq Sous de Lavarède (Os Cinco Centavos de Lavarede), ganhou grande notoriedade e chegou até mesmo ao cinema, em uma adaptação dirigida por Maurice Cammage em 1939.
Apesar de sua popularidade na época, os personagens de D’Ivoi não resistiram ao tempo — ao contrário dos de Verne, que continuaram a inspirar novas gerações. Entre esses nomes esquecidos está o enigmático Docteur Mystère, protagonista de um romance publicado em 1899 na coleção Les Voyages Excentriques, da editora Boivin et C.ie.
O personagem é descrito como “um homem magro e elegante, de dedos longos e finos, rosto expressivo e bronzeado, e olhos penetrantes”. A princípio, pouco se sabia sobre ele — apenas o apelido Docteur Mystère, dado por seu inseparável companheiro de aventuras, o jovem Cigale.
O Docteur Mystère chega à Europa vindo da Índia, por volta de 1898, em uma missão secreta. Traz consigo uma formação enciclopédica, vasto conhecimento de medicina e uma coleção de invenções ousadas, ilustradas por D’Ivoi em desenhos técnicos que soam tão imaginativos quanto improváveis.
Usando turbante e barba longa, Mystère viaja a bordo do “Hotel Elétrico”, uma espécie de casa móvel movida a energia — não muito diferente da “casa motorizada a vapor” criada por Júlio Verne. As paredes desse engenho são feitas de um alumínio semelhante ao das garrafas térmicas, o que mantém o interior agradavelmente refrigerado. Entre suas invenções, há até um “tableau téléphotique”, uma espécie de televisão primitiva, ajustada para receber imagens à distância sem o uso de câmeras.
Mystère parece antecipar seus contemporâneos Röntgen e Marconi no uso de raios X e ondas eletromagnéticas. Ele carrega uma arma capaz de disparar um devastador raio elétrico e veste uma armadura especial feita com bobinas Ruhmkorff, que geram ao seu redor um campo protetor — um verdadeiro escudo científico.
Ao longo de quase quatrocentas páginas, D’Ivoi conduz o leitor por uma Índia ricamente descrita, cheia de costumes, rituais e crenças locais. Nessa paisagem de exotismo e intriga, Mystère enfrenta a poderosa casta brâmane e a temida seita dos thugs, que exploram a superstição popular. Seu grande adversário é Arkabad, um aliado de russos e afegãos que planeja uma ofensiva contra o território indiano.
Anos antes dos acontecimentos principais, o cruel Arkabad havia dizimado a nobre linhagem hindustani dos Rundjee, condenando o único sobrevivente — o jovem príncipe Rama Rundjee — a um destino pavoroso: ser enterrado vivo em um estado de semicatalepsia, induzido por poções de origem misteriosa.
Mas, como logo se revela, Rama Rundjee e o Docteur Mystère são a mesma pessoa. Após dois anos nesse estado entre a vida e a morte, o príncipe consegue escapar, levando consigo uma pequena bolsa repleta de diamantes. Exilado na Europa, dedica-se ao estudo das mais diversas disciplinas, lado a lado com os maiores especialistas de seu tempo, aperfeiçoando-se em ciências, medicina e tecnologias emergentes.Ao retornar à ação, acompanhado de seu fiel companheiro Cigale e da amada Na-Indra, Mystère enfrenta os inimigos da cidade afegã de Herat, usando suas armas elétricas e engenhos científicos para derrotar Arkabad e seus aliados corruptos. O vilão encontra a morte nesse confronto, e o herói, finalmente liberto de seu passado, se retira com Na-Indra — desaparecendo do mundo sem deixar rastros.
Além da onda dos romances de aventura inspirados em Júlio Verne, outra febre literária tomou conta do público nas viradas do século XIX para o XX: as histórias protagonizadas por jovens heróis, figuras audaciosas que enfrentavam o mundo movidos por coragem e idealismo. Esse tipo de narrativa alcançava enorme sucesso tanto na França quanto em outras partes do mundo.
Nos Estados Unidos, os romances de Horatio Alger Jr. (1832–1899) eram sucesso absoluto. Suas histórias seguiam um padrão inspirador: garotos pobres, guiados pela coragem e pela moral de trabalho, que ascendem socialmente graças ao esforço individual — uma tradução literária perfeita do chamado “modo de vida americano”.
Na França, o espírito juvenil também encontrava seus heróis. Gavroche, o destemido menino de Os Miseráveis, de Victor Hugo, havia se tornado símbolo da bravura popular nas barricadas de Paris. E embora sua morte fosse inevitável no romance, sua figura inspirou toda uma geração de personagens semelhantes.
Em 1880, um novo “garoto de Paris” surgiu: Friquet, protagonista de Le Tour du Monde d’un Garnement de Paris, de Louis Boussenard. A obra unia o espírito aventureiro das jornadas de Verne — especialmente A Volta ao Mundo em 80 Dias (1873) — ao entusiasmo pelos jovens protagonistas que desafiam o mundo. Boussenard escreveria diversos outros livros com o mesmo personagem, tornando-se um autor amplamente imitado (e, segundo muitos críticos, copiado sem piedade) por seus contemporâneos.Paul D'Ivoi escreveu por sua vez o ja citado Os Cinco Centavos de Lavarede (Les cinq sous de Lavarède) que tem como personagem principal o jovem Armand Lavarède, que resolve andar pelo mundo com apenas cinco centavos no bolso. Este foi o livro mais famoso e reimpresso do autor, mas o que nos importa aqui é que quando Docteur Mystere foi publicado, o autor percebeu que o coadjuvante Cigale tinha mais potencial que o personagem principal. Assim como Lavarède, ele era jovem e poderia viver algumas extraordinárias aventuras pelo Mundo.
Percebendo o potencial de seu jovem coadjuvante, Paul D’Ivoi decidiu dar a Cigale o protagonismo que antes pertencia ao próprio Docteur Mystère. Assim nasceu uma nova série de aventuras com o garoto no centro da ação.
O primeiro desses livros foi "Cigale na China" (1901), no qual o herói participa do célebre cerco às missões diplomáticas durante a Rebelião dos Boxers. No ano seguinte, D’Ivoi lançou "Massilague de Marseille", onde o rapaz se envolve em uma intriga internacional para evitar uma guerra entre as Américas do Norte e do Sul. Já em "Le Semeurs de Grâce" (1903), o cenário se desloca para a Amazônia, mostrando que o autor não poupava fôlego nem fronteiras ao levar seu personagem a novas jornadas.
Esses romances tiveram boa recepção em sua época, sendo reeditados várias vezes, ainda que o tempo tenha relegado Cigale e seu criador a um certo esquecimento — ao contrário da perenidade conquistada por Júlio Verne.
Na mitologia criada por D’Ivoi, Cigale — cujo nome significa “Cigarra” — era originalmente um menino de rua, acolhido ainda criança por Rama Rundjee, o futuro Docteur Mystère. Foi o garoto quem lhe deu o apelido pelo qual ficaria conhecido, invertendo a hierarquia tradicional entre mestre e aprendiz. Sem conhecer o próprio nome, Cigale carregava o apelido como uma marca de identidade.
Mais tarde, ao se mudarem para a Inglaterra, Mystère o adota legalmente, registrando-o como Jacques Mystère, uma homenagem a São Giacomo, o apóstolo viajante — símbolo perfeito para um jovem destinado a cruzar o mundo em busca de aventuras.te.
É aqui que entra Alfredo Castelli, criador do célebre Martin Mystère, o “detetive do impossível”. O personagem surgiu em 1982, publicado pela Sergio Bonelli Editore, e rapidamente se consolidou como um dos grandes ícones da linha italiana de quadrinhos de mistério e ficção científica.
Alguns anos depois, durante uma visita a Paris, Castelli se deparou com um livro curioso exposto nas tradicionais bancas dos bouquinistes — os sebos à beira do Sena. Na capa, lia-se um nome que o deixou intrigado: Docteur Mystère. Até então, o autor italiano desconhecia completamente o escritor francês Paul D’Ivoi, muito menos sua obra. Movido pela coincidência, comprou o volume e o leu em uma única noite.
Embora tenha considerado o texto original lento e excessivamente descritivo, Castelli percebeu naquele antigo romance um elo temático e simbólico com seu próprio universo ficcional. Viu ali uma oportunidade de reconstruir as origens do sobrenome Mystère, integrando o personagem de D’Ivoi à genealogia literária de Martin — um gesto que, além de prestar homenagem, também ajudou a resgatar o esquecido autor francês para uma nova geração de leitores. Ouso dizer que se não fosse Castelli nunca saberia da existencia do Docteur, pelo menos até o momento.
Essa releitura foi publicada na Itália em 1996, nas edições 174 e 175 de Martin Mystère, e chegou ao Brasil pela Mythos Editora, dentro da segunda série do personagem, nos volumes 22 e 23. Se quiser saber um pouco mais do bom e velho Martin no Brasil siga esse link.
Nessa história, Martin Mystère recebe uma carta enigmática de um parente até então desconhecido: um tio distante que vive isolado em uma região remota da Escócia. Movido pela curiosidade, Martin parte em direção ao castelo ancestral dos Mystère e lá conhece Paul Mystère, irmão mais novo de seu bisavô — um homem de aparência vigorosa e espírito inquieto, embora já tivesse mais de noventa anos.
Essa conexão entre o passado literário e o presente dos quadrinhos cria uma ponte curiosa entre dois séculos de aventura — de Paul D’Ivoi a Alfredo Castelli — mostrando como a imaginação científica e o espírito explorador podem atravessar gerações e formatos sem jamais perder o fascínio.
Depois dessa redescoberta, Alfredo Castelli decidiu expandir o universo de Docteur Mystère em uma série de álbunsproduzidos em parceria com o desenhista Lucio Filippucci. O resultado foi uma trilogia que dialoga com o espírito dos velhos romances científicos do século XIX, mas com um toque contemporâneo de humor e metalinguagem.
A estética e o clima das histórias lembram inevitavelmente “A Liga Extraordinária”, de Alan Moore, que surgia na mesma época explorando os mesmos arquétipos de aventura vitoriana. Assim como Moore, Castelli enche suas narrativas de referências culturais e literárias — desfilam pelas páginas personagens e alusões que vão de Moriarty a Popeye, passando até por Peter Pan. São citações que funcionam como piscadelas cúmplices ao leitor, embora sem o mesmo refinamento narrativo do escritor britânico.
O Docteur Mystère de Castelli, contudo, difere bastante do herói original de Paul D’Ivoi. O tom é menos dramático e mais lúdico, ainda que preserve traços fundamentais do personagem: o fiel assistente Cigale, o engenhoso Hotel Elétricoe o inseparável espírito enciclopédico que o define — misto de cientista, aventureiro e homem de honra.
A Mythos tambem chegou a publicar dois álbuns no formato europeu aqui no Brasil em 2007. "Os Misterios de Milão" (originalmente de 2004) e "A Guerra dos Mundos" (2005). Há ainda um terceiro, inédito por aqui, produzido em 2010, "Gli orrori della giungla nera" (Os Horrores da Selva Negra)
Nesse terceiro episódio, Castelli e Filippucci mergulham no espírito das aventuras coloniais do século XIX — mas com o humor irônico e a sofisticação narrativa típicos do autor.
A trama se passa na Índia britânica, onde o Docteur Mystère e seus companheiros, Cigale e Ch’ing Kwai, investigam uma série de acontecimentos bizarros em meio à selva tropical: tribos em transe, tambores que ecoam noite adentro e rumores sobre uma entidade sem corpo que teria caído do céu.
A história mistura misticismo oriental, cientificismo vitoriano e terror pulp — com direito a experiências de transplante de cabeça e um vilão que tenta renascer como uma espécie de “Frankenstein mecânico” (e que quem leu os 2 anteriores sabe do que estou falando). O tom é de paródia elegante: Castelli brinca com os clichês dos romances de exploração e das narrativas coloniais, mas infunde nelas uma crítica à arrogância da ciência e à obsessão ocidental por “civilizar” o desconhecido.
Visualmente, os álbuns de Docteur Mystère são um espetáculo à parte. Lucio Filippucci transforma cada página em uma viagem sensorial: selvas densas e sufocantes, templos em ruínas e laboratórios improvisados surgem com riqueza de detalhes, criando uma atmosfera que oscila entre Jules Verne e Joseph Conrad, com ecos inconfundíveis de Indiana Jones e Lovecraft. O resultado é uma mistura precisa de aventura, exotismo e estranhamento.
É pouco provável que esse terceiro volume, Gli orrori della giungla nera, seja publicado isoladamente no Brasil. O mais plausível seria que alguma editora se arriscasse a lançar os três álbuns reunidos em um único volume, o que daria à obra a dimensão que ela merece.Fica a esperança de que isso aconteça — e talvez a Editora 85, que atualmente publica Martin Mystère em edições que compilam cinco números italianos por volume, possa considerar incluir o personagem em seu catálogo. Afinal, trazer Docteur Mystère de volta às prateleiras seria também resgatar uma das pontes mais curiosas entre a literatura de aventuras do século XIX e os quadrinhos modernos.
Esse ano chegue a informação que uma editora independente chamado Leitura Mania tambem chegou a publicar o Livro do D'Ivoi. Tentei contato mas não obtive resposta, então não sei se esta realmente disponível para aquisição, uma vez que foi via Catarse e nem tudo que foi financiado la respeita os prazos
No fundo, tudo parece voltar ao ponto de partida. Quando Júlio Verne inaugurou suas viagens extraordinárias, talvez não imaginasse que, mais de um século depois, ainda haveria quem continuasse explorando os mesmos territórios de mistério, ciência e imaginação.
De Paul D’Ivoi, com seu excêntrico Docteur Mystère e o pequeno Cigale, a Alfredo Castelli, com seu olhar meticuloso de arqueólogo das narrativas, há uma linha invisível que atravessa o tempo — a mesma que une as páginas amareladas dos romances do século XIX aos álbuns de quadrinhos de hoje.
E é justamente essa continuidade — entre o passado fabulista e o presente nostálgico — que mantém viva a promessa das aventuras exóticas. Porque, no fim das contas, todo leitor que abre um desses livros está sempre embarcando na mesma jornada: a eterna viagem extraordinária em busca do desconhecido.
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