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quinta-feira, 18 de setembro de 2025

MONSTROS


O “cancelador” é a versão progressista do “cidadão de bem”. Ambos acreditam na sua própria régua moral e não hesitam em usá-la para medir o mundo.

Uns anos atrás, por exemplo, fui convidado pelo jornal O Globo para uma entrevista sobre cancelamentos. O tema: a banda Apanhador Só. Até então eu nem sabia que a banda tinha sido “cancelada”. Chegaram até mim porque eu havia escrito algumas coisas sobre eles. Falei, claro, contra os cancelamentos — e também contra o linchamento constante de Woody Allen. Quando a matéria saiu, nada do que eu disse apareceu. Pior: o texto era tendencioso e só acusava a banda e outros artistas. Guardadas as devidas proporções, ficou um sentimento de cancelamento aqui.

Em outra ocasião, participei de uma entrevista para um trabalho acadêmico sobre cinema nacional. Defendi os tempos da Embrafilme, quando o cinema brasileiro ainda conversava com seu público, mesmo entre tropeços. Hoje, a falta de pressão por público transformou parte da produção em filmes voltados apenas para a própria bolha, sem nenhum esforço em falar com quem está de fora. Não sei se minhas falas entraram no trabalho, até porque nunca teve um retorno — e, sinceramente, não me surpreenderia se tivessem sido cortadas.

Charlie Gordon, personagem de Flores para Algernon, dizia que “as pessoas se ressentem quando alguém lhes mostra que conhecem apenas a superfície de problemas complexos”. Não vou me comparar a Gordon, não chego a tanto, mas há algo nessa frase que explica muito do jogo de versões em que me vi.

A formação de um cinéfilo

Meu mergulho no cinema começou ainda no cursinho, antes da faculdade. Não havia internet — era preciso garimpar VHS em locadoras da cidade. O acervo era limitado, mas o que havia já bastava para descobertas. Nas viagens a Bauru, onde moravam tios e avós, aproveitava para vasculhar locadoras maiores. Foi lá, por exemplo, que encontrei Serpico, que minha cidade não tinha, mas que já estava no meu radar.

O lado ruim de conhecer tantos clássicos aos 20 anos era o contraste: quase tudo o que estava sendo lançado parecia menor. Pulp Fiction, quando estreou, me empolgou. Mas em retrospecto percebo que subestimei muito do cinema comercial daquela época, sem entender que um filme não precisa ser perfeito para ter valor. A maturidade, afinal, ensina a gostar das imperfeições.

Boa parte da sanha “canceladora” vem das novas gerações — gente inteligente, geralmente em idade escolar ou universitária, mas ainda sem bagagem cultural mais ampla. Isso faz diferença: sem repertório, a análise se resume a julgamentos apressados. É natural ver jovens cinéfilos fascinados por Christopher Nolan. E faz sentido: Nolan é competente, técnico, atento a detalhes no blockbuster americano. Complica um pouco as coisas, o que dá um certo ar de mistério — perfeito para essa idade. Mesmo que, às vezes, essa complexidade seja mais perfume que essência.

Quando criança e adolescente, diretores não eram a minha preocupação. O interesse era pelo filme em si, sobretudo os blockbusters. Diretores eram Spielberg e, vá lá, Hitchcock. Eu gostava dos thrillers de Brian De Palma, mas nem sabia que Vestida para MatarDublê de Corpo e Os Intocáveis eram do mesmo diretor. Só fui ligar os pontos já perto da faculdade.

Woody Allen, Polanski e a régua moral

Entre os primeiros diretores que me marcaram estavam Scorsese, Coppola, Kubrick e, claro, Woody Allen. Minha primeira lembrança dele vem da infância: nas chamadas de fim de ano da Globo, aparecia Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo. Aos 12 ou 13 anos, o título bastava para chamar a atenção. Vi no sábado em que passou, sem saber ainda quem era o diretor. Outras chamadas chamavam atenção pelo nome: Noivo Neurótico, Noiva Nervosa ou Taxi Driver – Motorista de Táxi. Alguns eu só fui assistir depois.

Na adolescência e depois na faculdade, mergulhei em Allen: A Rosa Púrpura do CairoA Era do RádioTiros na BroadwayPoderosa AfroditeTodos Dizem Eu Te Amo, estes três últimos eram os que estavam em evidencia no momento. Lembro de conversas no ônibus para São Carlos, onde um colega criticava moralisticamente Allen por namorar a enteada. Curiosamente, esse mesmo colega hoje é casado com uma mulher trinta anos mais jovem que ele. São ironias que só a vida escreve.

Sobre Allen, minha posição é clara: acho falsas as acusações contra ele no caso da filha adotiva. Não que seja santo — traiu a esposa com Soon-Yi, que na época era menor de idade segundo a lei, mas não uma criança. Desde então estão juntos. Quanto à filha do casal, as acusações sempre me pareceram forçadas, fruto de uma disputa marcada pelo descontrole de Mia Farrow. Não esqueçamos: dois filhos dela se suicidaram.

De qualquer forma, a carreira de Allen seguiu forte durante décadas. Atores e atrizes disputavam papéis em seus filmes. Mia Farrow, vale dizer, não era coadjuvante nessa disputa: tinha prestígio e carreira própria. Até 2016, Allen manteve a média de um filme por ano. Só com o movimento #MeToo os ataques ficaram mais sistemáticos, a ponto de comprometer sua produção. Mesmo assim, sua filmografia já estava recheada de títulos icônicos.

Roman Polanski é outro caso. Ao contrário de Allen, aqui não há nebulosa: há crime. Condenado por estupro de menor, vive foragido dos Estados Unidos desde os anos 1970. Ainda assim, seguiu carreira consagrada, com direito à Palma de Ouro em Cannes e Oscar de melhor diretor. Vale a leitura do livro da vítima, Samantha Geimer: A Menina – Uma Vida à Sombra de Roman Polanski. É impactante e nada panfletário.

O dilema do fã

Como cancelar diretores com obras desse porte? ManhattanNoivo Neurótico, Noiva NervosaA Era do RádioCrimes e PecadosMatch Point — todos de Allen. Faca na ÁguaChinatownO Bebê de RosemaryRepulsa ao SexoO Pianista— de Polanski. Não se trata de dizer que filmes ou livros são “obrigatórios”, mas de reconhecer que quem se interessa de verdade por cinema não pode simplesmente ignorar essas obras.

Esse dilema é justamente o tema de Monstros – O Dilema do Fã, da jornalista Claire Dederer. O livro é delicioso: levanta perguntas difíceis, joga com a ironia, leva o leitor a uma conclusão para depois puxar o tapete. É leitura recomendada sobretudo para quem acha que já tem opinião formada — seja por excesso de certezas, seja por pura falta de repertório.

No fim, tudo volta ao começo: o “cidadão de bem” e o “cancelador” são faces opostas do mesmo impulso — a certeza de que sua régua moral deve ser aplicada ao mundo. Um, com a Bíblia debaixo do braço; outro, com hashtags na ponta dos dedos. Ambos se arrogam o direito de decidir quem merece existir em praça pública e quem deve ser jogado ao ostracismo. Mas a arte, por sorte, insiste em sobreviver a esses tribunais improvisados. Filmes, livros e músicas continuam ali, esperando quem queira se arriscar a encarar suas ambiguidades. O resto é barulho de época — tão passageiro quanto qualquer moda moral.

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