Em 1738, o capitão mercante britânico Robert Jenkins apresentou-se ao Parlamento com um espetáculo mórbido: dentro de um frasco, exibia a própria orelha esquerda, decepada, segundo ele, por um oficial espanhol que o acusara de contrabandear açúcar das colônias. O gesto inflamou a opinião pública e forneceu munição política para um novo conflito entre Inglaterra e Espanha, que ficaria conhecido como a Guerra da Orelha de Jenkins.
As autoridades britânicas logo elaboraram um plano grandioso. O alvo era Cartagena, centro vital do império espanhol no Caribe, de onde partiam navios carregados de prata peruana rumo à Europa. Reuniram uma frota de 196 embarcações, o maior ataque anfíbio da história até então. Mas, paralelamente, uma missão menor e mais secreta foi traçada: cinco navios de guerra, com cerca de dois mil homens, cruzariam o Atlântico, contornariam o Cabo Horn e atacariam as possessões espanholas no Pacífico, da América do Sul às Filipinas.
A operação tinha uma fachada patriótica, mas no fundo escondia um propósito quase pirata: capturar o galeão da prata, que duas vezes por ano partia do México para as Filipinas carregado de metais preciosos, trocados por seda e especiarias asiáticas revendidas depois na Europa. Oficialmente, Londres negava patrocinar saques; na prática, tratava-se de um ato de pura ladroagem sob a bandeira da Coroa.
O desafio, porém, não era apenas a marinha inimiga. Os maiores obstáculos estavam nos mares selvagens do Cabo Horn, território de ventos cortantes, ondas de até trinta metros e icebergs traiçoeiros. Poucos marinheiros britânicos tinham conseguido cruzá-lo. A esperança recaía sobre o verão austral, entre dezembro e fevereiro, quando o mar prometia ser menos hostil — promessa que logo se revelou ilusória, pois foi justamente o contrário que se mostrou.Mesmo os navios de guerra mais sofisticados eram frágeis diante do oceano. Construídos em carvalho e cânhamo, com mastros e conveses vulneráveis a cupins, fungos e ao famigerado Teredo navalis — molusco capaz de devorar cascos inteiros —, já partiam em desvantagem. Colombo, em sua quarta viagem às Índias Ocidentais, perdera duas embarcações para esses inimigos invisíveis. Muitas vezes, um navio estava condenado antes mesmo de deixar o estaleiro.
Foi nesse contexto que surgiu o Wager. Originalmente mercante, desajeitado e atarracado, fora comprado pela Marinha para reforçar a frota. Conhecido como “excêntrico”, adernava de maneira perigosa. Para corrigir o defeito, o porão foi entulhado com mais de quatrocentas toneladas de ferro-gusa e pedras, numa tentativa desesperada de dar lastro. Em vez dos habituais 120 homens, levou cerca de 250, praticamente o dobro da tripulação para a qual fora projetado.
O excesso de gente, somado às más condições de higiene, favoreceu a explosão da “febre do navio”, hoje identificada como tifo. A bordo do Centurion, embarcação da mesma frota, contavam-se mais de 200 enfermos e pelo menos 25 mortos. Febres altíssimas, delírios e hemorragias ceifavam vidas diariamente. Sem saber que piolhos transmitiam a bactéria, os médicos relatavam homens tentando “pegar objetos no ar” em pleno delírio.
A Marinha ainda enfrentava outra crise: a escassez de marinheiros. As tentativas de recrutamento pacífico falharam, e as autoridades passaram a recorrer a métodos violentos. Gangues armadas percorriam cidades e vilas sequestrando qualquer um que tivesse aparência de marinheiro: camisas xadrez, chapéus redondos, calças largas, dedos manchados de alcatrão. Até mercadores recém-chegados, ansiosos por rever a família, eram arrastados para a frota.
O resultado era uma tripulação caótica. Voluntários traziam consigo varíola e outras doenças; muitos eram ladrões e criminosos recém-saídos da prisão de Newgate. Para completar, o governo enviou recrutas inexperientes e até veteranos inválidos do Royal Hospital de Chelsea — homens velhos, coxos, surdos, cegos, alguns com pernas de pau, levados em macas ao embarque. Seus rostos apavorados revelavam o que todos sabiam: estavam sendo enviados para morrer.
Esse caldo humano, misto de forçados, doentes e desesperados, formou a tripulação do Wager. Quando o naufrágio aconteceu, no século XVIII, a tragédia já estava anunciada. O desastre não apenas os confrontou com a fúria da natureza, mas desencadeou uma luta brutal entre os próprios sobreviventes, culminando em um tribunal militar que buscou separar heróis de traidores, disciplina de motim.
É essa história que David Grann reconstrói em “Os Náufragos do Wager – Uma História de Motim e Assassinato”. Baseado em diários de bordo, cartas, registros de corte marcial e documentos do Almirantado, o livro é uma narrativa eletrizante sobre sobrevivência, violência e a disputa pela verdade. Grann, já reconhecido por obras como Z – A Cidade Perdida e Assassinos da Lua das Flores, mais uma vez comprova sua habilidade em transformar pesquisa meticulosa em literatura de fôlego.Entre os jovens a bordo estava ainda John Byron, aspirante que sobreviveu ao motim e que, anos depois, se tornaria avô do poeta Lord Byron. Um detalhe biográfico que parece costurado sob medida para a imaginação literária.
Não por acaso, Hollywood também se rendeu à história. Martin Scorsese adquiriu os direitos do livro logo após concluir Assassinos da Lua das Flores, e já trabalha em uma adaptação que terá Leonardo DiCaprio no elenco, em papel ainda não revelado.
Um livro de aventura histórica, uma reflexão sobre poder e sobrevivência, um épico marítimo e, em breve, um filme. Os náufragos do Wager ainda têm muito a dizer — seja nas páginas de Grann ou nas imagens de Scorsese. Quem se deixar levar por essa viagem descobrirá que o verdadeiro perigo nunca esteve apenas no mar revolto, mas no coração humano.
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