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quarta-feira, 17 de setembro de 2025

O Iluminado: as duas versões de um mesmo labirinto


Este artigo é uma versão reformulada de um texto publicado alguns anos atrás. O original, mais fragmentado e acompanhado de fotos quadro a quadro, comentava cena por cena as diferenças entre as duas versões de O Iluminado. Para quem quiser mergulhar nessa leitura mais visual — com imagens que ajudam a comparar cada acréscimo e supressão —, ele continua disponível neste [link].


 Poucos sabem que O Iluminado tem diferenças substanciais entre a versão lançada nos Estados Unidos e a exibida no resto do mundo. A cópia internacional — aquela a que estamos acostumados — dura 119 minutos. Já a americana, aprovada por Stanley Kubrick, estende-se por cerca de 144 minutos, com acréscimo de aproximadamente 25 minutos de material. Não se trata de uma “versão do diretor” — ambas receberam seu aval —, mas de duas estratégias distintas para calibrar o olhar do público: a americana, mais longa e explicativa; a internacional, mais seca e enigmática.

Os acréscimos

Logo no início, após a apresentação de Wendy e Danny, a mãe conforta o filho dizendo que a temporada no Hotel Overlook será divertida e que ele não deve ter medo. Paralelamente, vemos Jack sendo apresentado a Bill Watson pelo gerente Ullman. Em seguida, numa conversa estendida, Jack menciona que foi professor, que agora escreve um livro e que a temporada isolada seria propícia ao trabalho. Ullman também explica o fechamento do hotel no inverno — informação que, na versão curta, o espectador só descobre depois.

Após a primeira visão de Danny no banheiro, surge uma cena inédita: uma médica examina o garoto, pergunta sobre o desmaio e ouve dele a primeira menção ao amigo imaginário Tony, ainda envolta em silêncio. Na sequência, a médica conforta Wendy e extrai a confissão de que Jack, bêbado, já deslocara o braço de Danny. A revelação sela o trauma familiar e introduz o alcoolismo de Jack muito antes do que conhecemos.

Outros momentos se alongam: Ullman mostra o salão Colorado e Wendy comenta os desenhos indígenas, lembrando o passado glorioso do hotel que já recebeu presidentes e estrelas de cinema. Ao apresentar o quarto, Jack apalpa a cama e inspeciona o banheiro. Do lado de fora, Ullman alerta que o labirinto exige cautela. Mais adiante, ao mostrar o salão de festas, explica que cabem 300 pessoas e que o estoque de bebidas fora retirado no inverno. Jack, em resposta, diz que não há problema, afinal “eles não bebem”. É também nesse ponto que conhecemos Suzie trazendo Danny da sala de jogos — enquanto na versão curta, Hallorann simplesmente aparece direto na cozinha.

A relação entre Hallorann e a família também ganha mais detalhes. Ele faz um comentário curioso sobre o nome Winnifred, apelido de Wendy. E, durante a conversa com Danny, acrescenta: assim como pessoas, lugares também podem ser iluminados — referência direta ao próprio hotel.

A partir daí, pequenas inserções dão outra cadência: Wendy empurrando um carrinho de café (cena de 20 segundos intercalada com Danny no triciclo), uma conversa no café da manhã em que Jack confessa sentir que já esteve no Overlook, quase um déjà-vu. É um raro instante de intimidade conjugal, pontuado pelo deboche de Wendy, que imita sons fantasmagóricos. Mais adiante, quando Jack joga a bolinha contra a parede, a versão longa inclui apenas um novo plano de costas — detalhe de oito segundos.

Outros acréscimos surgem em momentos cruciais: Wendy assiste à TV na cozinha enquanto o noticiário fala do desaparecimento de Susan Roberts e da tempestade que se aproxima. Uma cena mostra Hallorann dentro do avião conversando com uma aeromoça, depois o pouso, a garagem Durkin e a ligação para o amigo Larry pedindo o carro de neve — todo um bloco de mais de dois minutos eliminado da versão curta, que resume tudo em dois cortes.

O arco de Danny/Tony também ganha sublinhados: antes de entrar no quarto onde encontra Jack, ele pede à mãe para buscar seu carro de bombeiros; Wendy o alerta para não incomodar o pai. Quando Wendy assiste Papa-Léguas com Danny já tomado por Tony, pega um taco de beisebol antes de sair — detalhe que prepara a sequência seguinte. Há também a cena em que Wendy caminha aflita pelo quarto, falando sozinha sobre fugir com o carro de neve, até ser interrompida por Danny/“Tony” repetindo o “Redrum”. Na continuação, Danny aparece catatônico, afirmando que “Danny não está mais ali”.

Pequenas alterações prosseguem: Jack retira mais peças do rádio, vemos uma cartela de horário “8am”, e Hallorann tentando contato novamente. E, antes do clímax, uma sequência de Wendy perambulando pelo hotel, onde encontra o salão coberto de teias de aranha e cheio de esqueletos — uma visão fantasmagórica e literal, jamais presente na versão internacional.

O epílogo perdido

Um dado curioso: após as exibições-teste, Kubrick ainda removeu uma cena de cerca de dois minutos que aparecia logo após a imagem de Jack congelado na neve. Nela, Wendy e Danny eram mostrados em segurança, num epílogo quase conciliador. Essa cena foi definitivamente suprimida e permanece perdida — talvez um fantasma condenado a nunca mais assombrar a película.

O paradoxo das duas versões

Essas diferenças não são mero detalhe de colecionador: elas escancaram uma contradição. Como conciliar o rigor minimalista de Kubrick, que perseguia cada corte com a obsessão de um cirurgião, com a existência de uma versão mais redundante, quase didática? A resposta talvez esteja no choque entre arte e mercado, entre o gesto autoral e a necessidade de dialogar com públicos diferentes.

Outros diretores também revisitaram suas próprias obras, às vezes por ego, outras para buscar novos caminhos. Sergio Leone sofreu com Era uma Vez na América: nos Estados Unidos, o filme foi lançado em uma versão de 139 minutos, mutilada e remontada em ordem cronológica, que arruinou sua recepção. Só anos depois os americanos puderam ver a montagem original de 229 minutos, já cultuada na Europa, e reconhecer o épico de Leone em sua forma concebida. Coppola encurtou Apocalypse Now sob pressão e, décadas depois, devolveu-lhe a exuberância com o Redux. Ridley Scott, com Blade Runner, já cultuado, reafirmou seu status quando lançou a versão sem narração, mais ambígua e próxima do que imaginava. Kubrick, em O Iluminado, foi além: já na época da estreia permitiu duas versões distintas, ajustando o filme conforme o público a que se destinava. Richard Donner só viu seu Superman IIganhar forma real em 2006, quando o chamado Donner Cut veio à tona. E David Fincher, em contraste, recusou-se a endossar a versão estendida de Alien 3, preferindo manter distância de um projeto que considerava irremediavelmente comprometido.

Mas Kubrick é um caso singular. Ele não foi vítima de estúdio, como Leone ou Scott: aprovou pessoalmente ambas as versões. O que se revela é sua ambiguidade estratégica. Para o público internacional, ofereceu a concisão e o mistério. Para o público americano, a narrativa “mastigada”, com explicações adicionais e diálogos redundantes. Uma concessão calculada, talvez.

No fundo, O Iluminado confirma que mesmo Kubrick, arauto da perfeição formal, sabia jogar o jogo da indústria. Seu cinema continua sendo um labirinto — não apenas no espaço, mas também no tempo. Um filme que existe em duas durações, dois ritmos, dois modos de encarar o espectador. E é justamente aí que reside sua força: O Iluminado não é apenas sobre um hotel assombrado, mas sobre o próprio cinema como construção instável, sempre à beira de se perder em corredores demais.

Kubrick, ao contrário de tantos, nos deixa um paradoxo: o mesmo diretor que acreditava que o excesso de explicação matava a atmosfera, também legou uma versão que insiste em explicar. Talvez a lição seja essa: nenhum corte, por mais rigoroso, consegue domesticar o enigma. O Overlook continuará nos encarando, ambíguo e inacabado, como se fosse a própria metáfora do cinema moderno — uma arte que, entre silêncio e redundância, nunca para de assombrar.

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