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terça-feira, 19 de agosto de 2025

Eu me Recordo

Eu me recordo.

Era 31 de outubro de 1993 quando vi meu primeiro Fellini. Não porque eu tivesse memória de elefante — longe disso. Eu só me recordo porque foi o dia em que Fellini morreu, e eu acabei de conferir no Google. Mas naquela noite, a casa estava cheia de parentes. Tive de ceder meu quarto — provavelmente à namorada do meu tio, na época — e fui parar na sala, num colchão dividido com ele e mais alguns. Dormir, de fato, eu não dormi. Quem iria pregar os olhos sabendo que a TV mostraria um filme com aquele nome sonoro e enigmático: Amarcord?

Eu me recordo.

A notícia veio no Jornal da Globo. Como homenagem, a emissora mudou a programação — coisa que fazia de vez em quando, naqueles anos ainda menos cínicos — e enfiou Fellini na grade. E lá fui eu, desavisado, assistir àquela saga familiar feita de pedaços. E tive a sensação estranha de que Fellini, de algum modo misterioso, conhecia a minha família e havia filmado sobre ela. Estava tudo lá: as tias neuróticas, os almoços em que todos falavam ao mesmo tempo e ninguém entendia nada, as intromissões na vida alheia, as brigas triviais elevadas a tragédias, os dramas desproporcionais sobre bobagens. Era como ver o nosso almoço de domingo atravessando o Adriático e ganhando sotaque de Rimini.

Eu me recordo.

Na dublagem brasileira, que infelizmente era o que tínhamos na época, a personagem Gradisca ganhou outro nome, curioso e improvável: “S’il vous plaît”. Em italiano, “Gradisca” já trazia a graça do convite — “sirva-se”, “aproveite” —, e na versão em português ela veio travestida de francês, como se tivesse atravessado fronteiras sem pedir licença. A troca podia soar estranha, mas não lhe roubava o encanto. Continuava sendo a mesma figura magnética, a mulher inalcançável que concentrava em si os desejos de toda uma cidade. Apenas mudava a chave: do apelo provinciano para uma elegância sonora, quase sofisticada, sem perder em nada o charme com que Fellini a esculpiu.

Eu me recordo.

Naquele tempo eu já gostava muito de cinema, mas ainda estava preso ao circuito Blockbuster — expressão que só aprenderia depois. Diretores, eu só conhecia de nome os óbvios: Spielberg e Hitchcock, que já eram estrelas pop. Foi só em 1994, no cursinho, que a chave da cinefilia começou a virar — embora os sinais sempre estivessem lá. A virada mesmo veio na faculdade, quando conheci um amigo cujo pai adorava Amarcord e tinha gravado o filme em VHS. Nunca cheguei a conhecer o pai, que morreu antes que me fosse apresentado, mas de uma coisa tenho certeza: bom gosto ele tinha.

Eu me recordo.

Se nunca havia visto Fellini antes, seus fantasmas já rondavam. Eu era leitor voraz de gibis, e numa daquelas histórias italianas do Tio Patinhas aparecia um cineasta contratado para filmar algo. Não lembro direito se era uma historia em que o Pato Donald virava piloto de Fórmula 1 ou coisa parecida. Só lembro que aquele cineasta contratado para fazer o marketing era o Fellini. Algum dia ainda reencontro esse gibi — que, por sinal, ainda guardo.

Havia também os guias de filmes que eu comprava sempre. Foi num deles que vi, pela primeira vez, uma crítica de A Doce Vida e uma foto que me marcou: Marcello Mastroianni, numa festa, fazendo uma mulher de cavalinho. Não me recordo quem era a atriz e, ao reler a foto anos depois, não consegui identificar (Magali Noël ?). Mas aquela imagem grudou na minha memória como se fosse um sonho.

Eu me recordo.

Demorei anos para ver meu segundo Fellini. Foi numa locadora de bairro, daquelas que floresciam no fim dos anos 90 e não duravam muito. Ainda era VHS. E lá estava . Levei para casa e achei difícil, frio, distante. Nada daquela identificação imediata que Amarcord havia me dado. Mas mesmo sem entender direito, senti que havia algo ali, algo que só mais tarde eu voltaria a procurar.

Alguns anos depois, comprei em DVD a coletânea Histórias Extraordinárias, adaptação de três contos de Poe. E a minha favorita era justamente a de Fellini, uma versão livre de Toby Dammit. Um filme curto, hipnótico, que parecia concentrar toda a estranheza do seu cinema em poucos minutos. Nele estava Terence Stamp — que alias morreu neste fim de semana — no auge da juventude, intensamente perturbado, muito antes de ser, em tempos de crianças adultizadas, mais lembrado por adultos infantilizados como o General Zod de Super Homem, de Richard Donner. Para mim, porém, Stamp sempre será aquele ator que, em meio às sombras e ao delírio felliniano, encarnou um personagem condenado a flertar com o abismo.

Com a chegada da internet rápida, enfim tive acesso à filmografia de Fellini. Fui descobrindo filme por filme, comprando os DVDs que iam saindo. Mas aí, já não era mais memória: era escolha. Era paixão organizada.

Eu me recordo.

E, no fundo, é disso que se trata Amarcord. Do gesto simples e impossível de recordar. Porque a lembrança nunca é fiel — ela sempre mente, sempre se confunde. Mas insiste em sobreviver.


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Abaixo, texto original publicado numa cronica de jornal e depois no livro "Saudade de minhas lembranças"



EU ME RECORDO

 

 

 

 

 

D

E todos os filmes que assisti, foi de Felline um dos únicos em que me recordo exatamente a data em que o ví pela primeira vez: 31 de Outubro de 1993 (para os mais precisos 1º de Novembro, já que passara da meia noite). Foi a primeira vez que ví um filme desse que foi um dos maiores cineastas de todos os tempos (e ainda o é). Tão grande que virou até adjetivo. 31 de Outubro foi o dia em que Felline finalmente completou sua obra. E Anjos Pagãos desceram à Terra e o levaram para o lugar que vão os únicos. E fizeram também com que a Globo deixasse de lado algumas explosões e exibisse um outro tipo de arrombo, o criativo, e passou “Amarcord”.

 

Na época eu não estava tão ligado em cinema que não fosse o Hollywoodiano. Não fosse pelo jornal da Globo eu nem assistiria o filme, mas fui em frente. Até então meu referêncial de grandes diretores era Spilberg e George Lucas. Não foi um causa tão nobre como gostaria , mas enfim, teve sua função.

 

E o filme me conquistou. De alguma forma que não sabia bem como, Felline conhecia a minha família e fez um filme sobre eles. Estava tudo lá, as Tias neuróticas , os almoços com todos falando ao mesmo tempo, desentendendo-se e metendo-se na vida de cada um.

 

Fiquei um bom tempo sem ver nenhum outro filme do diretor. Simplesmente porque a TV nunca passava e porque as locadoras de minha cidade não possuiam nenhum vídeo sequer deste grande mestre (e ainda não possuem). Somente ao entrar na Faculdade , ao conhecer um novo amigo cujo pai adorava “Amarcord” e tinha gravado. Não conhecei o pai dele que morreu antes que me fosse apresentado, mas sem dúvida tinha bom gosto.

 

Com o tempo , novos contatos , a ascensão da Internet me deram a chance de ver novos filmes dele. Desde o belíssimo “La Estrada” até “La voice de la Luna”. Talvez o melhor Felline que já vi foi “A doce Vida”  ou até mesmo o espetacular “oito e meio”, mas o meu coração não deixa com que “Amarcord” perca o seu lugar na história. A minha.

sábado, 16 de agosto de 2025

Eddington

 Perdi meu melhor amigo na pandemia. Não gosto muito de usar o termo “melhor amigo” — soa adolescente demais —, mas é a forma mais justa de expressar o que sentia. Não era o amigo mais antigo, mas era o que permaneceu na minha cidade, aquele com quem dividi infância, adolescência e boa parte da vida adulta. Mesmo que a convivência já tivesse diminuído, continuávamos nos encontrando quase toda semana. E então, de repente, não mais. A pandemia não levou apenas pessoas, mas também o ritmo dos dias, a ilusão de continuidade, a segurança de que o banal estaria sempre ali.

Talvez por isso Eddington me atinja de modo tão direto. O filme encena o vazio e a paranoia de um tempo em que até as figuras de autoridade se revelaram incapazes de oferecer respostas. Não falo só dos personagens: penso também no mundo real, no fato de Donald Trump ter ocupado a presidência dos Estados Unidos — eleito duas vezes, como se fosse um troféu da burrice coletiva — ou de figuras como Nikolas Ferreira e Carla Zambelli serem levadas a sério no Brasil. O problema não é apenas a brutalidade do discurso, mas a indigência intelectual transformada em método: frases mal articuladas, conceitos distorcidos, raciocínios que fariam corar um aluno de ensino fundamental — e, ainda assim, seguidos com devoção. É nesse caldo de mediocridade que a desorientação de Eddington encontra seu espelho.

Ari Aster segue sendo um cineasta da inquietação e, mesmo ao se aventurar num faroeste atravessado por elementos de paródia, não abandona o terror. Ele apenas troca de máscara. O que antes eram espíritos e maldições, aqui se converte em medo difuso, alimentado pelo confinamento, pelas ruas mascaradas e pelos diálogos atravessados de paranoia. O horror não desaparece: só muda de forma, deixando o sobrenatural para dar lugar ao trivial. Ele se insinua nos detalhes, no intervalo entre uma videoconferência e um discurso político, na hesitação de um personagem diante da própria incapacidade de formular frases com sentido. É o terror da banalidade, da vida cotidiana, transformado em matéria cinematográfica.

Ambientado em maio de 2020, o filme encena um microcosmo da confusão política contemporânea: a pequena cidade americana dividida entre o entusiasmo do prefeito Ted Garcia (Pedro Pascal) por um gigantesco centro de dados e a resistência de ambientalistas que enxergam catástrofes ecológicas à frente. Nesse tabuleiro surge o xerife Joe Cross (Joaquin Phoenix), atormentado por rancores pessoais e decidido a concorrer ao cargo, transformando divergências públicas em duelo privado.

E é aqui que a ficção se cola ao real. Joe é o equivalente ao nosso “Zé”: o homem comum, anônimo, sem brilho. Cross remete tanto ao peso da cruz quanto ao temperamento irritadiço e à encruzilhada existencial em que o personagem se encontra. Um sujeito que não domina a gramática — seus slogans de campanha saem com erros grotescos —, não organiza raciocínios, mas encontra seguidores exatamente por encarnar essa confusão crua. É o mesmo mecanismo que sustenta Trump, Zambelli ou Nikolas Ferreira: o erro vira autenticidade, a ignorância se converte em bandeira. O homem médio erguido como herói porque “fala como a gente”, quando na verdade só expõe a falência de qualquer horizonte político.

Do outro lado, Ted Garcia combina a sonoridade simpática de “Ted”, quase pop, com um dos sobrenomes latinos mais comuns nos EUA. O resultado é a construção de um político progressista de imagem polida, próximo e representativo, mas igualmente cheio de contradições.

Entre o homem qualquer e o político calculista, o embate escancara um duelo que é menos sobre projetos coletivos e mais sobre o vazio que a pandemia deixou para cada indivíduo preencher como podia. O resultado é uma arena de discursos atravessados, onde ninguém consegue sustentar a coerência das próprias convicções por mais de alguns minutos — reflexo direto da política real em tempos de feeds e algoritmos.

Phoenix encarna um homem raivoso e mal-articulado, cuja falta de educação formal se traduz em adesivos de campanha com erros gramaticais e explosões impulsivas em protestos transmitidos ao vivo. Pascal, em contrapartida, surge como político calculista, que fala em nome da ciência quando convém, mas ignora previsões científicas sobre os impactos ambientais do projeto que defende. Esse contraste — a impulsividade emocional contra a racionalidade estratégica — é o coração do filme.

 Aster, no roteiro, recusa as caricaturas fáceis: o conservador não é apenas um bruto irracional e o progressista tampouco surge como santo altruísta. O filme respira justamente nesse terreno ambíguo, feito de contradições que ninguém gosta de encarar. Ao ironizar tanto a direita quanto a esquerda, Aster garante um resultado que incomodará — sobretudo aqueles mais ansiosos por enxergar no cinema um espelho confortável de suas convicções. Para esses, Eddington será mais do que um incômodo: será quase uma ofensa pessoal.

Aster mergulha também no teatro das redes sociais. Lives feitas no calor do momento, protestos transformados em selfies e jovens ativistas que mais parecem ensaiar performances para seduzir potenciais parceiros do que mobilizar uma causa real. O filme toca nesse ponto com ironia e desconforto: o ativismo político se reduz a estética, tripé e iluminação antes do discurso.

Uma geração formada politicamente em timelines, sem arcabouço histórico ou ideológico sólido: é essa a imagem mais incômoda que Eddington projeta. Jovens que se educaram politicamente a partir de feeds instáveis, entre memes e slogans, e que muitas vezes confundem engajamento com curtidas ou discursos inflamados com militância real.

Entre a autoanálise paralisante de militantes privilegiados e a adesão rasa a slogans, o resultado é uma radiografia incômoda de uma geração formada politicamente em timelines, sem arcabouço histórico ou ideológico consistente. Há, claro, boas intenções, mas também uma ingenuidade que beira o amadorismo político: protestos que se confundem com performances estéticas, discursos que soam como threads improvisadas no Twitter, causas abraçadas mais pela visibilidade que oferecem do que pelo risco real de defendê-las.

A cultura do cancelamento, por exemplo — que nem sequer aparece no filme, mas serve aqui como paralelo — ilustra bem essa lógica: uma tentativa juvenil de “mudar o mundo” que soa antes como catarse moral do que como transformação efetiva. É como se bastasse excluir alguém do debate para que estruturas inteiras deixassem de existir. O problema é que a história mostra o contrário: é sempre mais fácil imaginar o fim do mundo do que derrubar pilares como o patriarcado ou o capitalismo, ainda tratados como intocáveis. Nesse sentido, Eddington não apenas aponta a superficialidade dessa militância digital, mas também sua fragilidade: deseja a revolução, mas tropeça na falta de memória histórica e na ausência de ideologia sólida.

Não faltam também as sombras que rondam esse cenário: negacionismo pandêmico, teorias conspiratórias sobre vacinas e microchips, o fantasma de George Soros, gurus espirituais de biografia inventada (Austin Butler, como um picareta carismático), todos compondo o retrato de um país que se alimenta de paranoia. O filme não acusa apenas a fragilidade dos indivíduos; ele mostra como essa vulnerabilidade é explorada — por políticos populistas, por líderes carismáticos de ocasião, por todos aqueles que transformam medo em capital. Se a história se passasse no Brasil, poderíamos facilmente trocar alguns nomes: bastaria acenar para as teorias tortuosas de um Olavo de Carvalho, para os fiéis seguidores de coaches travestidos de filósofos, ou ainda para a retórica grotesca que insiste em comparar Hitler a movimentos de esquerda — um raciocínio que só encontra lógica na cabeça de quem já tem predisposição natural a acreditar em qualquer palestra motivacional de auditório.

Ao longo da narrativa, Aster espalha pequenas gags que, vistas isoladamente, podem soar como piadas fáceis — zombarias rápidas sobre teorias conspiratórias, debates estéreis em videoconferências ou protestos transformados em espetáculo performático. À primeira vista, parecem apenas episódios soltos, quase uma colagem de absurdos do cotidiano pandêmico. Mas esse acúmulo tem função: pavimenta o caminho para o mergulho no terceiro ato, quando o humor finalmente se deforma em histeria coletiva e o ridículo ganha sua expressão mais brutal na violência. Até porque, convenhamos, ninguém precisa que Ari Aster reinvente a roda: cada espectador já traz consigo a própria bagagem daqueles dias de confinamento, máscaras e paranoias, pronta para ressoar diante da tela.

É aí, porém, que reside o paradoxo do filme. Se por um lado a preparação sugere a promessa de uma catarse, por outro o clímax falha em cumprir esse movimento. O caos e a violência que irrompem no final não se convertem em comentário social nem em desfecho catártico, mas em espetáculo um tanto gratuito — quase como se Aster buscasse refúgio no gênero para escapar das perguntas mais duras que vinha levantando. Há potência no percurso, mas a conclusão esbarra na própria impossibilidade de oferecer respostas. Porque se 2020 nos ensinou algo, foi justamente a experiência de viver desorientados, imersos em paranoia e ruído, sem mapa para atravessar o labirinto. 

Nesse sentido, talvez o filme seja mais honesto do que parece: o clímax caótico é proposital, uma tradução do delírio coletivo de então. Ainda assim, a frustração persiste — reconhecer a intenção não elimina a decepção de ver o filme optar por reproduzir o ruído, sem jamais se arriscar a decifrá-lo.

Se por um lado Aster demonstra habilidade ao construir tensões políticas e sociais, por outro desperdiça talentos valiosos do elenco. Emma Stone, embora tenha função narrativa como a esposa deprimida de Joe, carece de bons momentos e permanece subaproveitada, quase uma sombra em cena. Já Austin Butler aparece numa chave de caricatura: seu personagem de guru espiritual funciona mais como piada sobre falsos profetas e coaches do que como figura dramática. Pior, sua presença acaba atrapalhando o fluxo da história, servindo apenas como desculpa para afastar Louise do núcleo central. Se sua participação fosse cortada, a trama pouco sentiria falta — poderia ser substituída por qualquer outro personagem episódico, sem alterar o resultado.

Por isso, mesmo irregular, Eddington merece atenção. Porque incomoda, porque provoca, porque transforma telas de celular em personagens tão centrais quanto os humanos. E porque, ao fim, reafirma que o verdadeiro terror de Ari Aster não nasce de fantasmas ou demônios, mas da vertigem coletiva de um mundo que já não consegue dar sentido ao próprio colapso.




domingo, 10 de agosto de 2025

A Hora do Mal


No cinema — assim como na literatura, na música ou no teatro — a ideia de “originalidade absoluta” é um mito confortável. Quando alguém se encanta por algo que julga inédito, o mais provável é que esteja diante não de uma ruptura histórica, mas de sua própria ignorância sobre o que veio antes. É um fenômeno recorrente: aquilo que não conhecemos, chamamos de novo. Desde a epopeia grega até o romance moderno, passando pelos contos orais e pela dramaturgia elisabetana, tudo já foi feito. O que se renova, de fato, não é a matéria-prima da história, mas a maneira como ela é moldada.

O que torna um filme relevante não é um suposto frescor temático, e sim o modo como o autor desenvolve sua narrativa — e, sobretudo, a sintonia que estabelece com o seu tempo. A “originalidade” que realmente importa está no instante histórico em que a obra é produzida e no quanto de verdade ela consegue colocar em cena, reverberando com o mundo ao redor.

E há ainda outra camada: um filme pode sobreviver ao seu próprio contexto e ganhar novos significados conforme o olhar que o recebe. Interpretamos o passado com as lentes do presente, e essa releitura é tão legítima quanto a intenção original do diretor. Em última instância, é a leitura pessoal que dá sentido à obra. Se aquilo que está em tela valida uma percepção íntima, a função do filme — seja ela qual for — já está cumprida.

No cinema de terror, por exemplo, elementos como o escuro, o desconhecido e a sensação de rejeição não são apenas bem-vindos: são estruturais. O famigerado jump scare — tantas vezes acusado de ser um recurso barato — é prova disso. Não existe técnica ruim em si, apenas má aplicação. O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick, é repleto de jump scares, e nem por isso deixa de ser considerado, por muitos — inclusive por quem nem aprecia o gênero — o melhor filme de terror já feito. Não por acaso, dois dos grandes exemplares de terror lançados em 2025 fazem referência explícita a Kubrick.

Nos últimos anos, termos como “terror elevado” ou "pos horror" têm ganhado popularidade, revelando mais sobre o preconceito contra o gênero do que sobre qualquer suposta “nobreza” de determinados filmes. É um rótulo que parte da ignorância histórica: como se o terror sempre tivesse sido um campo de exploração rasa e, só agora, tivesse descoberto profundidade temática.

Essa lógica se repete em outros rótulos. “Trash” é um deles — usado, muitas vezes, para desqualificar obras sanguinolentas ou debochadas, como se o exagero fosse sinal de incompetência. Entre os muitos mal-entendidos que cercam a história do cinema, poucos são tão persistentes quanto a ideia equivocada de “filme B” como sinônimo de obra malfeita. Na realidade, o termo nasceu de um arranjo industrial muito específico: eram produções enxutas, de curta duração e orçamento limitado, programadas para acompanhar um título principal em sessões duplas. Longe de serem meros “tapa-buracos”, essas obras tinham seu próprio ecossistema criativo, com equipes inteiras dedicadas a explorar narrativas mais ousadas justamente por não carregarem o peso das apostas milionárias.

Foi nesse terreno menos vigiado que floresceu uma liberdade rara: histórias excêntricas, abordagens narrativas fora do padrão e soluções visuais engenhosas para driblar a falta de recursos. Muitas vezes, o frescor dessas produções superava a previsibilidade dos filmes de prestígio que as precediam na tela.

A letra “B”, portanto, não é um rótulo de mediocridade, mas uma referência a outro lugar na escala de produção — como num time de futebol em que um time B ou Reservas não significa incompetência, inferioridade em relaçao ao titular. e sim estar em um campo diferente, com suas próprias regras e possibilidades.

Entre os debates mais artificiais que rondam o estudo do cinema de gênero está a suposta fronteira entre “terror” e “horror”. Para alguns, trata-se de categorias distintas, quase estanques; para mim, essa cisão soa mais como um capricho acadêmico do que uma necessidade real. Pegue House of the Devil, de Ti West: durante a maior parte do tempo, o filme se sustenta em atmosfera, insinuação, tensão crescente — o chamado “terror” segundo essa lógica classificatória. De repente, uma cabeça rola, e, num piscar de olhos, estaríamos no território do “horror”. Mas o que realmente mudou? A essência do filme não se transformou; foi apenas a superfície que se tingiu de sangue.

O problema é acreditar que a arte deve obedecer a compartimentos rígidos, como se o cinema fosse um laboratório químico onde cada frasco contém apenas um elemento puro. O oposto é verdadeiro: a arte existe para subverter fórmulas, atravessar fronteiras e borrar linhas que teóricos passam anos tentando desenhar.

Se quisermos recorrer a imagens mais concretas, poderíamos dizer que o “terror” é a presença invisível, o cheiro de morte antes de encontrar o corpo; o “horror” é o tropeço no cadáver, a materialidade incontornável daquilo que antes era apenas sugestão.

Já o suspense, muitas vezes tratado como gênero, é na verdade um mecanismo narrativo que respira da mesma atmosfera do terror: ambos exploram a expectativa, o temor do que pode acontecer. A diferença é que, no suspense, não raro o desfecho poupa o espectador — a vítima foge, o perigo é contido, a ameaça se dissolve. É um jogo de corda esticada que, por vezes, se recusa a arrebentar.

O cinema não se encaixa em fórmulas. E A Hora do Mal (2025), dirigido por Zach Cregger, confirma essa máxima. Ambientado em um mundo pós-pandêmico — onde a tensão coletiva ainda pulsa —, o filme retrata uma comunidade assombrada pela violência, pela desconfiança e pela acusação que circula como rumor contagioso. São tempos em que se condena com rapidez, se imuniza a compaixão e se liquida qualquer diferença em nome de uma moral expurgada.

Na tradição do gênero a narrativa se estrutura em torno da construção e transgressão de fronteiras — não apenas físicas, mas éticas e simbólicas. A Hora do Mal explora essas fissuras. A epidemia não matou apenas corpos, mas escorreu em paranoia: vizinhos se viraram uns contra os outros, acusações surgem rápidas como vírus, e uma falsa moralidade se autoconfirma autoritária e violenta.

É nesse contexto que entra um dos elementos mais perturbadores da contemporaneidade: as câmeras — sejam as corporais (BWCs), sejam as empunhadas por cidadãos. Prometidas como mecanismos de controle e responsabilização, há provas de que essas câmeras nem sempre cumprem o papel heroico que se espera (seja no mal utilizado VAR ou portadas por cidades do Bem em Aviões). Em A Hora do Mal, a presença maciça de vigilância se justifica com paternalismo, mas atua como lente distorcida que amplifica subjetividades vigilantes postas como justiça.

Refletindo sobre isso, o crítico cultural John Berger já chamava atenção para a maneira como as imagens são construídas e politizadas, não confiáveis como “olhos neutros”, mas carregadas de intenção e poder. O próprio espectador, ao assistir, decide: “o que vejo é verossímil?”, “quem me ativa essa interpretação?”. Nesse aspecto, A Hora do Mal, como arte, devolve a cena ao espectador — afinal, como se sustenta essa moral de vigilantes se não houver quem a legitime ?

A Hora do Mal (2025) surge num momento em que o horror cinematográfico encontra terreno fértil não apenas no sobrenatural, mas no cotidiano distorcido pela paranoia moral, pela violência institucional e pelo espetáculo da vigilância. O filme articula seu terror naquilo que há de mais perturbador na vida contemporânea: a facilidade com que a sociedade, movida por uma noção enviesada de “justiça”, se volta contra o indivíduo, legitimando crueldades em nome de uma falsa moral.

Ambientado num cenário onde a fronteira entre vítima e algoz é turva, o longa se ancora no clima pós-pandemia — um período marcado pelo recrudescimento de discursos punitivistas, pela ascensão da vigilância como ferramenta de controle e pelo linchamento simbólico mediado por redes sociais. Nesse contexto, a monstruosidade não é apenas um traço das criaturas que habitam a tela, mas das pessoas comuns, que se transformam em agentes de violência ao reivindicar para si o papel de defensores do “bem”.

É aqui que a leitura de John Berger se torna crucial. Em Ways of Seeing (1972), o autor chamava atenção para a maneira como as imagens são construídas e politizadas — nunca confiáveis como “olhos neutros”, mas carregadas de intenção e poder. Essa perspectiva ressoa fortemente na narrativa de A Hora do Mal, onde câmeras corporais de policiais, registrando atos hediondos, são apresentadas não como instrumentos de transparência, mas como armas retóricas, moldando a percepção pública e justificando atrocidades. O filme escancara o que Berger antecipava: a imagem como “prova” é uma ilusão confortável, pois o enquadramento, a seleção e o contexto determinam o que vemos — e, sobretudo, o que somos impedidos de ver.

Ao expor a violência policial como performance para a câmera, o longa dialoga com uma realidade em que a filmagem se torna espetáculo, não fiscalização. Policiais cometem horrores diante da lente não apesar de estarem sendo gravados, mas porque sabem que controlam a narrativa sobre o que essas imagens significarão. O horror, portanto, não está apenas no sangue ou nas sombras, mas no sorriso satisfeito de quem aperta o “rec” acreditando que já tem a história do seu lado.

O olhar pós-pandêmico do filme também ecoa debates emergentes sobre o perigo da vigilância convertida em espetáculo. Como apontam estudos do professor David A. Harris, especialista em justiça criminal, embora essas câmeras possam reduzir casos de abuso em alguns contextos, elas não garantem transparência total nem geram confiança pública automaticamente — sobretudo quando o acionamento das câmeras é seletivo ou controlado pela própria polícia. Em A Hora do Mal, essa tensão é encenada de forma contundente: a câmera está presente, mas a ética desaparece.

O título original do filme, Weapons, carrega uma carga simbólica poderosa que vai além do sentido literal de armamento físico. Ele evoca as múltiplas formas de violência presentes na narrativa — não só as armas tangíveis, mas também as atitudes agressivas, os julgamentos precipitados e as tensões sociais que se tornam armas invisíveis contra o outro. Nesse sentido, Weapons sugere que o conflito principal não é apenas externo, mas interno, manifestado nas dinâmicas de poder, medo e moralidade distorcida que permeiam o ambiente do filme. É uma reflexão sobre como as “armas” podem ser tanto objetos quanto comportamentos, capazes de ferir e destruir de maneiras diversas e igualmente devastadoras.

O recurso recorrente de filmar os atores de costas, mesmo após já terem sido apresentados de frente, é uma escolha estilística que reforça a atmosfera de desconfiança e isolamento que permeia o filme. Essa técnica cria uma distância emocional entre o espectador e os personagens, sugerindo que há sempre algo oculto, uma verdade que permanece fora do alcance imediato. Ao negar o rosto como ponto fixo de identificação, o diretor subverte a expectativa tradicional de proximidade e intimidade, ressaltando a fragmentação das relações humanas em um contexto marcado pelo medo e pela vigilância constante. Essa estratégia visual espelha o tema central do filme: a dificuldade de enxergar o outro em sua totalidade, o permanente estado de suspeita e o desafio de confiar em um mundo onde as certezas são armadilhas.


Por fim, A Hora do Mal exemplifica um terror multifacetado que vai além dos sustos óbvios e do gore explícito, embora não hesite em usar sangue e violência gráfica para chocar e provocar. O filme também incorpora um humor negro afiado, especialmente em seu desfecho, que alivia e ao mesmo tempo intensifica a sensação de desconforto. Não se trata apenas de uma explosão escarlate atrás de cada porta, mas de um mal que se infiltra nos olhares desconfiados, nos silêncios cúmplices e na voracidade com que julgamos antes de ouvir. Essa combinação de violência explícita, humor ácido e atmosfera sufocante cria um retrato perturbador da erosão do tecido social, onde o verdadeiro horror reside tanto nas ações visíveis quanto nas atitudes invisíveis que corroem a confiança coletiva.

Em tempos em que “encontrar culpados” virou um esporte moral, A Hora do Mal lembra que o monstro pode estar no espelho, não na forma grotesca, mas na solidez de nossas certezas. A arte, aqui, cumpre seu papel: desconfiar de verdades fáceis e expor que nada é totalmente novo. Toda imagem, como toda narrativa, é um rearranjo — limpo e polido — de algo que já existia, moldado para que acreditemos estar vendo pela primeira vez.

Se você chegou até aqui, tem a sorte de não saber muito sobre a história do filme. Evite sinopses e resenhas, seja em texto ou vídeo. Assista sem expectativas, de mente e olhos abertos — é justamente essa surpresa que faz o filme ganhar toda a sua força. Fui ver o filme sabendo apenas quem era o Diretor e sem saber se era filme de monstro, vampiros, terror psicológico ou qualquer informação, mesmo o plot inicial onde o filme desenvolve seu mistério.



quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Entre Fones e Destino - Parte 3 - Urban Legion Omnia Vincit

Entre Fones e Destino é uma coluna onde vou analisar alguns discos que mudaram minha vida e fizeram parte dela. Às vezes o texto acaba levando para outros caminhos, mas o foco principal será sempre este álbum. Frank Jorge já dizia: “Fui lhe mostrar um disco de um cantor que sempre gostei, mas você não me deu atenção.” Essa frase me pega. Quantas vezes, cheio de empolgação, você tenta mostrar algo para alguém, e a pessoa simplesmente não presta atenção? Você começa a tocar a música, e antes mesmo do vocal entrar, ela já está conversando sobre outra coisa. É a vida.

Parte 1(Grandaddy) pode ser acessado aqui.

Parte 2 (David Bowie) pode ser acessado aqui


Meu primeiro disco da Legião Urbana foi — naturalmente — o primeiro. Mas não por amor à estreia, nem por senso arqueológico. Foi por um acaso. Ou por necessidade. Nessas horas, a memória mente bonito: diz que foi escolha, mas a verdade é que sobrou pra ele.

Engraçado é que minha porta de entrada na Legião não foi “Será”. Eu era criança, e naquela fase a música ainda era um som de fundo, algo que escapava do rádio AM da cozinha, entre o café coado e o “Jornal da Manhã”. Devia ter ouvido “Será” nessa época, mas passou batido — como uma faixa escondida no final do CD, que você só descobre quando o silêncio já dura tempo demais.

Minha primeira lembrança real foi “Faroeste Caboclo”. Aquilo sim me acertou como um estilingue na testa. Não lembro exatamente como chegou até mim. Lembro só que um colega do primário, que não lembro quem, me emprestou uma fita K7 onde ele havia gravado da rádio. Por um tempo foi minha nova obsessão.

Passei noites deitado sobre a  cabine da F-1000 do meu pai onde tinha um toca fitas, ouvindo no escuro, tentando decorar. E consegui, com mais facilidade do que decorar o Hino Nacional — que, convenhamos, foi uma tortura imposta pela escola. “Faroeste”, não. Aquele era o nosso hino. Tinha palavrão, sangue e redenção. Coisas que a cartilha militar jamais ensinaria.

Era o fim da ditadura, mas eu nem sabia que vivia numa. No interior, tudo parecia distante — Brasília, protestos, palavras como censura ou repressão. A escola tampouco ajudava: seguíamos a cartilha militar sem notar, decorando hinos e frases cívicas com aquele entusiasmo automático de quem acredita estar apenas cumprindo o dever. Hoje vejo que os professores também não ensinavam diferente não por medo, mas porque cresceram assim, acostumados ao silêncio e à obediência, como se o mundo fosse mesmo aquilo que vinha impresso nos livros. A vida no interior era diferente das grandes capitais.

Aliás, ainda nessa fase de abertura as rádios ainda tocavam com cautela. Nessa fita K7 tinha gravada a versão censurada. O general com o “piii” na mão, o trecho remixado  “olha pra cá, olha pra cá, sem vergonha” — e sempre que canto a música, é essa a versão que me vem primeiro. A infância é um looping de fita rebobinando.

Mas depois de Faroeste, a Legião sumiu do meu radar. Visto de hoje, o tempo entre uma coisa e outra foi curto, quase nada. Mas sob o olhar da infância, cada espera era um oceano, e os dias se alongavam como se jamais fossem acabar. Até que, em 1989, fui ao show deles em Araraquara com um tio. Sabia pouco da banda, mas lembro da presença magnética do Renato no palco. Foi quando ouvi, talvez pela primeira vez, “Pais e Filhos”, “Meninos e Meninas”, “Há Tempos”. O tempo da escola ia acabando, e o Ensino Médio (que na época a gente chamava de Segundo Grau) começava — junto com outras descobertas.

Foi aí que um amigo, o Eduardo (não o da Mônica), me emprestou As Quatro Estações. Pedi pra ele num sábado à noite e no domingo ele me trouxe  na missa das crianças. Fiquei com o disco na mão o tempo todo, meio que constrangido de estar com um disco na missa, mas desviando o olhar dos cânticos para o encarte. Confesso: ali já havia mais liturgia do que no panfleto da celebração.

Depois veio o Dois, emprestado pelo mesmo amigo. Em 1991 conheci um outro amigo, o Olavo, e ele tinha o "Que pais é esse". Sem o encarte, porque o primeiro amigo, o já citado Eduardo, emprestou o disco e tinha surrupiado o encarte e até o recortado para fazer capa de caderno (fazíamos muito disso a epoca. Não a de surripiar, mas de fazer capas de cadernos, ja que as opções de papelaria era sempre as mesmas capas genéricas sobre Surf e modelos. Quem viveu naquela epoca deve odiar o termo Orgulho Nerd).

Chegou minha vez de comprar um disco. E, como todo mundo já tinha os outros, escolhi o primeiro — Legião Urbana, 1985. Ninguém da turma tinha, o que era o caminho natural.  Naquela época procurávamos comprar uma coisa diferente que ninguém tinha uma vez que o acesso era difícil e não dava muito pra gastar as fichas numa coisa que poderíamos emprestar ou gravar.

Só que, verdade seja dita, o disco não me pegou de cara. Era seco, cru, meio desajeitado. “Será” e “Por Enquanto” brilhavam. O resto parecia inacabado. “Soldados” e “Ainda É Cedo” até se destacavam, mas eu não as colocaria na prateleira das favoritas. Ainda não.

Lembro de estar numa praça, em frente a uma escola no centro da cidade, quando um amigo me disse: “Tocou música nova da Legião na rádio, chama ‘O Teatro dos Vampiros’.” Não lembro de tê-la ouvido naquele momento, mas lembro de ter ouvido sobre ela. Às vezes, é assim: a memória não grava a canção, mas grava a conversa.

A essa altura, já acompanhava a chegada de novos discos. Comprei V assim que saiu. Em outro epoca, antes do lançamento do "Musica para Acampamentos"  lembro de ouvir “A Canção do Senhor da Guerra” no caminho entre o Morro dos Conventos e a Praia do Rincão, em Criciúma. Por que lembro disso? Boa pergunta. Algumas memórias grudam em nós como areia molhada — ninguém sabe direito por quê, mas não dá pra tirar. Por que não dão lugar no Cérebro pra coisas realmente uteis ?  Ou talvez tenham uma importância que a racional não é capaz de captar.


Durante anos, o primeiro disco foi o que menos gostei. Cheguei a preferir até O Descobrimento do Brasil, que hoje ocupa esse lugar. Não sei como isso mudou, mas mudou, naturalmente

Com o tempo, aprendi a gostar das arestas. Os ecos de Gang of Four, The Cure, U2 — antes distantes — agora pareciam naturais. Canções como “O Reggae”, “A Dança” e “Petróleo do Futuro” começaram a me dizer algo. “A Dança”, aliás, virou favorita. “Petróleo” também. E “Será” ? Essa foi perdendo o brilho. Amarelou no sol do tempo.

Hoje, vejo o primeiro disco da Legião Urbana como o mais acabado de todos — a crueza do som emociona muito mais do que a produção polida dos álbuns seguintes. A banda ainda soa sem pose, sem verniz, sem mapa, com uma urgência intensa e brutal, uma Legião em seu estado mais bruto e talvez o mais puro.

"Sera" foi a faixa que mais recebeu tratamento em estúdio, com ecos na voz de Renato Russo, que resistia a esses artifícios (e seria um album bem diferente se ele cedesse em mais faixas); é a canção mais comercial do disco. Começa com uma apropriação explícita de “Say Hello, Wave Goodbye”, do Soft Cell — um recurso que Renato revisitava frequentemente em sua carreira.

"A Dança" fala dos mauricinhos de Brasília, amantes de discoteca e cruéis com as mulheres, embalada por duas baterias eletrônicas que conferem um balanço único. “Petróleo do Futuro” é o ponto punk do álbum, com uma letra enigmática que instiga interpretações.

“Perdidos no Espaço” traz na introdução referências à série homônima e ao jogo Space Invaders, febre dos videogames da época. Já “Geração Coca-Cola” é punk rock com violões e batidas dobradas que o tornaram mais acessível, um punk para as massas.

“Ainda é Cedo” tem um piano fraseado que lembra os acordes delicados do U2, enquanto “O Reggae” exala a influência do The Clash.

“Baader-Meinhof Blues” é uma das joias do disco, com um final em violão que conduz perfeitamente à próxima faixa, “Soldados”, que ganha um toque de U2 com piano e a guitarra marcante de Dado.

“Teorema” apresenta baixo, guitarra e bateria em sintonia perfeita, com a frase “Não vá embora, fique um pouco mais” preparando o terreno para o encerramento em “Por Enquanto”. Os sintetizadores melancólicos dessa última faixa já anunciam a virada que a Legião começaria a ensaiar — um tom mais introspectivo e contemplativo. Curiosamente, o início do disco Dois, logo antes de “Daniel na Cova dos Leões”, parece olhar para trás, retomando o fôlego e a intensidade deixados pelo primeiro álbum.

Acho que só com o tempo a gente entende que algumas coisas só se revelam depois que a poeira assenta. Como aquele disco que, por acaso ou necessidade, acabou sendo o primeiro. E ficou.






 

O CÉU


          

Ainda não decidi qual é a minha ideia de Céu — e talvez nunca decida. Mas se me fosse dado sonhar, por ora, ele viria em preto e branco. Não por nostalgia, mas por estética: aquele contraste absoluto entre luz e sombra que só existe nos filmes antigos. Um mundo onde a verdade é dita com olhares, e não com frases longas demais.

Imagino-me chegando ali, um tanto perdido, talvez tropeçando na minha própria reverência. Quem me receberia? Ainda não sei — talvez Anita Ekberg, descalça na Fontana di Trevi, estendendo a mão molhada e sussurrando algo dublado em italiano. Ou Gene Tierney, com seus olhos que parecem guardar um segredo triste, mas não urgente.

No fundo do salão — um clube esfumaçado que existe entre as décadas de 40 e 50 — Humphrey Bogart segura um copo de bourbon como se segurasse o próprio tempo. Dashiell Hammett acena, meio irônico, como quem diz “demorou, mas chegou”. Eu sorrio. Fred MacMurray se junta a nós com aquele ar casual de quem já vendeu apólices demais para confiar em finais felizes. As luzes se apagam, não como prelúdio ao mistério, mas porque até o paraíso sabe a hora certa de criar um bom clima.

O ambiente vai se transformando, como num raccord bem feito: o glamour se derrama aos poucos, feito champanhe em taça larga. Lana Turner encosta no balcão. Rita Hayworth desliza as mãos enluvadas com uma confiança contida, como quem sabe que o mistério está nos detalhes que quase não se mostram. Mary Pickford conversa com Ingrid Bergman num idioma que não é deste mundo — talvez sueco, talvez celestial.

Brando está lá também, encostado no piano, de camisa branca amarrotada. Mas não é a sua presença que me desequilibra. São os olhos dela: Audrey Hepburn, num vestido preto que desafia a gravidade e a lógica. Ela me olha como se esperasse por mim desde Bonequinha de Luxo. E aceita a dança. A música muda o ritmo — clichê dos bons — e de repente só existimos nós, como Richard Beymer e Natalie Wood na beira do ginásio.  

Mas quem sabe o Céu também pode ser colorido. Um technicolor saturado como num musical de verão. Franja na testa, lápis nos olhos, a revolução estampada em minissaias. Uma Swinging London feita de vozes finas e passos firmes: Vanessa Redgrave, Sarah Miles, Jane Birkin, Brigitte Bardot. Talvez, quem sabe... mas não me convence ainda. O preto e branco soa mais seguro, mais imortal.

No fim, o Céu talvez não seja lugar algum. Talvez seja projeção. Um rolo de filme que nunca se rebobina, um salão onde ninguém envelhece, uma trilha sonora que não cansa. Um lugar mutável como o cinema — que muda a cada nova sessão, mas continua sendo, acima de tudo, o mesmo refúgio escuro onde sentamos em silêncio esperando que alguma coisa nos salve.

De qualquer forma, seria o Céu.

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Notas Cinéfilas #4

 Notas Cinéfilas são como o nome diz, Notas. São pequenos pensamentos que me passaram rapidamente e que pretendo depois reescrever de outra forma. Aqui abordar coisas no estilo "Tudo ao mesmo tempo agora", sem me preocupar em fugir do tema e passar para outro. Pequenos fragmentos de ideias que não pensei muito ao escrever e possivelmente vou achar bobagem quando reler mais para frente mas que podem servir como base para futuros textos

Notas #1

Notas #2

Notas #3

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É quase um bordão: "melhora na terceira temporada". Ou então: “depois do terceiro disco é que a banda se encontra”. Seja em séries, álbuns ou histórias em quadrinhos, essa ideia se repete como um mantra crítico, uma sabedoria popular entre os fãs que, muitas vezes, se transforma em verdade incontestável. E, de fato, há lógica nisso. O tempo de maturação artística é real. A narrativa se acomoda, os personagens ganham camadas, os músicos encontram a química, os roteiristas aprendem o que funciona. Mas o risco dessa lógica é outro: ao celebrar demais o "auge", esquecemos de onde tudo começou.

No caso das bandas, o roteiro é quase padrão. O primeiro disco, por mais cru que soe, geralmente nasce de um repertório lapidado ao longo dos anos. Músicas que sobreviveram a ensaios em garagens abafadas, shows em bares vazios, fitas demo descartadas e mudanças de formação. Quando finalmente entra em estúdio, o grupo escolhe o melhor que tem — e, com sorte, também o mais sincero. É ali que a faísca aparece, mesmo que o fogo ainda não seja pleno. O segundo álbum, por outro lado, costuma ser o verdadeiro teste. Agora com expectativa nas costas, o grupo precisa criar sob pressão e, muitas vezes, deixa de lado canções antigas em nome do “novo”. E é só depois disso, lá pelo terceiro trabalho, com os holofotes já menos hostis, que costuma vir o disco “maduro”, “conceitual”, “definitivo”.

Mas essa curva de crescimento também acontece fora do estúdio. Nos quadrinhos, por exemplo, é comum ouvir que só se deve levar a sério uma série a partir de certa edição. No caso de Ken Parker, clássico do faroeste italiano, costuma-se dizer que a genialidade só se revela lá pela edição 12. Pode até ser verdade em parte — ali a complexidade narrativa e a ousadia estética se tornam mais evidentes. Mas é um erro assumir que as edições anteriores não valem tanto. Como se a semente não tivesse, desde o início, o DNA da grande árvore.

A questão talvez seja de olhar. Muita gente não enxerga além da superfície e prefere rotular o começo como “supervalorizado” — palavra favorita dos impacientes. Não percebem que os primeiros capítulos, músicas ou episódios são os alicerces que sustentam o que vem depois. Que sem a crueza inicial, não haveria lapidação futura.

A cultura do “melhora depois” tem seu valor, mas precisa ser usada com cuidado. Porque ela pode ensinar a paciência, sim — mas também pode fomentar o desprezo por aquilo que não se apresenta imediatamente como grandioso. E muitas vezes é justamente nesse “nada demais” que mora o germe da genialidade.

A beleza das origens é que, mesmo imperfeitas, já trazem o futuro nas entrelinhas. Basta saber ouvir, ler, assistir — com atenção e curiosidade. Porque os grandes artistas não surgem do nada. Eles se anunciam. E quase sempre já estão lá, bem diante de nossos olhos, enquanto ainda aprendemos a enxergar.

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Será - Os Bastidores do Primeiro Disco da Legião Urbana




"Eu era mais animador de torcida do que produtor." A frase de José Emílio Rondeau, autor do livro "Será: Os bastidores do primeiro disco da Legião Urbana", diz muito sobre a gênese de um dos álbuns mais importantes da história do rock brasileiro. Porque aquele disco de estreia não nasceu como projeto de marketing nem sob a batuta de um gênio técnico. Nasceu no grito. Na pressa. No improviso. E, sobretudo, na fé.

Rondeau era jornalista, roteirista, produtor de videoclipes e entusiasta confesso da Legião — mas não um produtor musical no sentido clássico. Ainda assim, foi ele quem assumiu a missão de traduzir para fita magnética a pulsação de uma banda que ainda aprendia a ser banda depois de duas tentativas frustradas com outros produtores experientes que não deram certo e quase puseram fim ao primeiro dia. Um trabalho que exigia mais escuta do que comando. Mais sensibilidade do que método. E um bom bocado de nervos de aço. Um trabalho que só prosseguiu porque Jorge Davidson, executivo da gravadora acreditava muito no potencial de Renato Russo e ja intervenção de Mayrton Bahia que conversou com a Banda nas vésperas de ela voltar pra Brasilia e desistir de tudo.


Antes disso, Rondeau havia se aventurado na produção do disco de estreia do Camisa de Vênus. Amizade com Marcelo Nova, papo de ônibus indo para um show do Queen no Morumbi e, pouco depois, gravação desgovernada num estúdio da RCA, com liberdade total e controle zero. “Com o Camisa, eu era amador. Com a Legião, semi-amador”, ele brinca. Mas entre os dois trabalhos havia uma diferença fundamental: a Legião não era só uma banda — era uma revolta ambulante.

A primeira demo da Legião chegou as mãos do Rendeu, que a tem até hoje e ele empolgado pediu para o amigo Jorge Davidson produzir a banda, assim que soube do contrato com a Gravadora. Mal sabia ele que as gravações já tinham se iniciados e após atritos com dois produtores o clima estava tenso com a banda botando tudo a perder. Davidson disse sim e empolgado Rondeau mal sabia onde estava se metendo.

Em Será, Rondeau reconstrói o clima de tensão, descoberta e ruído criativo que definiu as sessões do disco. Um dos pontos centrais é o papel do baixista Negrete, que entrou na banda após Renato Russo cortar os Pulsos e precisarem de alguém para assumir o Baixo, antes tocado por ele. Bonfá, acostumado a linhas secas e diretas do punk, estranhava os grooves sincopados e cheios de notas que Negrete propunha. Aliás, o baterista já revelava uma personalidade difícil e cheia de nuances — especialmente naqueles momentos em que, apesar dos 20 anos, a adolescência ainda se recusava a ir embora.

O livro mostra como esse contraste acabou moldando o som do álbum. “Negrete trouxe um swing que ainda não existia na Legião”, diz Rondeau. Ele contribuiu muito, como os improvisos no final de "A Dança" que fizeram toda a diferença na música, deixando-a mais viajante, bem doida.

A função de Rondeau no estúdio era múltipla: “um palpiteiro, um animador de torcida, um psicólogo, um pai, uma mãe… tudo isso ao mesmo tempo”. Sem formação musical formal, ele confiava no ouvido treinado por anos de jornalismo cultural. Buscava, na escuta, o som que ainda não sabia nomear tecnicamente — mas que reconheceria assim que surgisse no monitor da mesa de som.

O livro também recupera a atmosfera dos bastidores com franqueza rara: o nervosismo, as decisões meio às cegas, os desentendimentos com o baterista Marcelo Bonfá. E mostra como, ainda que imperfeito, o disco captou algo puro: a urgência de um país jovem, ferido e faminto por voz. A Legião soava como uma carta escrita com sangue e assinada com esperança.

Será não é apenas um livro sobre um disco. É um relato sobre um momento em que era possível acreditar que uma guitarra, uma caneta e um microfone podiam mudar tudo. Um tempo em que se fazia história tropeçando — mas sem jamais calar.


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A seguir trechos da entrevista que fiz com Jose Emilio Rondeau e que usei como base para a materia


Bom dia, Jorge, é um prazer poder conversar com você.

No início da sua trajetória musical, você já trabalhava como jornalista e produzia clipes para o Fantástico. Depois, como produtor executivo da Legião, você diz no livro que “era mais um animador de torcida, palpiteiro e testemunha ocular da história do rock'n'roll brasileiro, assistindo de camarote à conjuração de tantos milagres sonoros, artísticos e musicais no decorrer de tantos milagres sonoros". Mas antes de tudo isso, você já havia produzido o primeiro disco do Camisa de Vênus.

Queria começar te perguntando justamente sobre essa experiência inicial com o Camisa: como foi trabalhar com a banda naquele momento? O seu papel foi diferente do que viria a ser com a Legião Urbana, por exemplo?

Jorge:
O que aconteceu foi o seguinte: há uma diferença crucial entre o que foi o trabalho com o Camisa de Vênus e o trabalho com a Legião. Se com o Camisa de Vênus eu era amador, com a Legião eu era semi-amador. Com o Camisa foi a primeira vez que meti a cara nesse tipo de trabalho.

E havia também uma diferença muito grande. Ao contrário da Legião — que eu só conheci pessoalmente no primeiro dia de estúdio, quando falei "bom dia" e "boa tarde" — no caso do Camisa, eu já era amigo do Marcelo Nova há um ano ou dois. A gente se conheceu num ônibus que levava jornalistas e radialistas para o show do Queen no Morumbi. Conversamos e ali ele falou: “Tenho uma banda que estou pensando em chamar de Camisa de Vênus.” E eu disse: “Nossa, que bacana! Vou querer conhecer e produzir isso depois.”

Foi um papo de ônibus, sem grandes pretensões, até que um dia encontrei com ele, e ele disse: “Olha, vai acontecer, hein! Tenho a banda, vamos gravar. Você quer produzir?” E eu disse: “Eu topo, vamos lá.”

Fui pra São Paulo com eles para gravar num estúdio da RCA, com absolutamente total liberdade — como foi o caso da Legião, mas nesse caso ainda mais, porque era totalmente descontrolado. Nem foi a gravadora que bancou, foi o empresário que eles tinham na época, o Toninho — não vou lembrar o sobrenome — que conseguiu o estúdio da RCA. Um excelente estúdio onde, pouco antes, a Gang 90 tinha gravado.

Era para a RGE, um selo que depois foi absorvido pela Som Livre. Então foi uma ultra farra. Ninguém sabia exatamente o que estava fazendo, ou como ia conseguir o som que queria. Os técnicos do estúdio eram super bacanas e ficavam digerindo e traduzindo tudo o que a gente falava com eles.

No caso da Legião já era bem diferente. Eu já tinha essa pequena experiência com o Camisa, já tinha adquirido um pouco mais de conhecimento, e sabia um pouco mais do que era requerido de um produtor. Eu era, como escrevi no livro, um palpiteiro, animador de torcida, psicólogo, pai, mãe — tudo isso ao mesmo tempo. Porque eu não tinha a formação musical de pegar um instrumento e dizer “faz isso” ou “faz aquilo”. Eu não tinha o conhecimento técnico de dizer: “Agora bota isso virado pra cá”

Eu ouvia e tentava buscar o som que queria encontrar. Então, a minha formação, meu ouvido e a minha estrada de ficar ouvindo coisas por anos, foi o que me propiciou fazer o disco da Legião com mais segurança do que no caso do Camisa de Vênus.

E, olhando em retrospecto, o que essas duas experiências te ensinaram? O que mudou na sua forma de atuar na produção musical depois delas?

Depois eu fiz só mais outros dois: o primeiro disco dos Picassos Falsos e o primeiro disco solo da May East, que era do Gang 90 — por coincidência. Depois eu me mudei para os Estados Unidos e não trabalhei mais com produção de discos. Fiquei mais concentrado na área jornalística.

Você comentou muito sobre as tensões na relação com o Marcelo Bonfá, especialmente nos bastidores da Legião.
O próprio Bonfá já mencionou que ele e o baixista Negrete eram amigos, mas não exatamente entrosados musicalmente — segundo ele, os grooves e andamentos do Negrete não se alinhavam à sua escola rítmica, com uso mais intenso de notas, o que dificultava uma 'cozinha' mais coesa.
Queria te ouvir mais sobre isso: qual era sua visão sobre o papel do Negrete naquela formação inicial?

Como você sabe, quando eu cheguei, o Negrete já estava lá. Quando conheci a Legião, era um trio — e quando cheguei, já era um quarteto. A contribuição dele para aquele disco da Legião foi primorosa, foi um trabalho muito melódico.

Ele era um cara que trazia referências muito diferentes das da Legião como um todo. Referências adicionais ao que eles já ouviam. Mas, ao mesmo tempo, um cara como o Dado adorava Chic, o Nile Rodgers. E o Negrete acrescentou um groove que não existia ainda na Legião, um sincopado que não estava lá.

O desentendimento com o Bonfá foi algo que eu não vi acontecer. Foi algo que o Bonfá me contou depois, quando conversei com ele para fazer o livro. Então eu não vi esse embate entre eles.

A própria Fernanda diz no livro que ela acreditava que a entrada do Negrete foi importantíssima para transformar a Legião numa banda maior do que já era. Ele trouxe ingredientes rítmicos, um swing que ainda não existia — e aquilo fez a maior diferença, especialmente naquele momento no estúdio onde eles passaram a gravar. Eles aprenderam a ser uma Legião que antes não eram.

Aproveitando para tirar uma dúvida de bastidor: em “Ainda É Cedo”, sabemos que foi o Renato quem gravou o baixo por não conseguir extrair o clima que queria com o Negrete. Mas na versão reggae da mesma faixa, quem toca o baixo é o próprio Negrete? Acredito que sim, até porque não foi falando mas pergunto porque a sonoridade ali parece destoar bastante do estilo dele no restante do disco, mais contida.

Foi o Negrete tocando, sim. Inclusive o Negrete foi um cara que ajudou a “entortar” um pouco algumas músicas como “A Dança”. Ele começou a fazer improvisos no final da música, e a gente ficava mexendo no Ecoflex para dar intervalos diferentes de ecos e efeitos. Esses improvisos fizeram toda a diferença na música, deixando-a mais viajante, bem doida.

Após sua experiência dirigindo o longa “1972”, que marcou sua estreia na direção de ficção no cinema, gostaria de saber: você tem planos de voltar a dirigir filmes?
Como foi, para você, a transição da linguagem dos videoclipes para o formato de um longa-metragem?

Foi a coisa mais difícil que eu já fiz na vida, disparado: fazer um filme. Porque, se você usar videoclipe como ponto de partida, é como fazer uma corrida de 100 metros; já fazer um longa-metragem é como uma ultramaratona. É algo que exige de você uma concentração, uma força de vontade, uma energia — um nível de energia muito constante. Realmente, é algo muito difícil de fazer.

Naturalmente tive planos e desejos de fazer outros filmes — e por pouco não aconteceu um outro, que era um filme policial, totalmente diferente da comédia romântica que foi “1972”. Mas a vida foi seguindo, outras oportunidades não surgiram. E, ironicamente, hoje em dia sou sócio de um estúdio de animação e computação gráfica. Um de nossos trabalhos é desenvolver um longa de animação — ou seja, aquilo que aconteceu lá atrás, em 2001 ou 2002, quando o filme ficou pronto... agora, quase 30 anos depois, a coisa pode acontecer de novo.





sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Entre Fones e Destino - Parte 2 - The Best of Bowie 1969/1974

 Entre Fones e Destino é uma coluna onde vou analisar alguns discos que mudaram minha vida e fizeram parte dela. Às vezes o texto acaba levando para outros caminhos, mas o foco principal será sempre este álbum. Frank Jorge já dizia: “Fui lhe mostrar um disco de um cantor que sempre gostei, mas você não me deu atenção.” Essa frase me pega. Quantas vezes, cheio de empolgação, você tenta mostrar algo para alguém, e a pessoa simplesmente não presta atenção? Você começa a tocar a música, e antes mesmo do vocal entrar, ela já está conversando sobre outra coisa. É a vida.

Parte 1(Grandaddy) pode ser acessado aqui.

Parte 3 (Legião Urbana) pode ser acessado aqui.

Eu confesso que cheguei a duvidar se colocaria uma coletânea nesta série de crônicas. Mas foi por ela que conheci de verdade o Bowie — e aí tudo mudou. Mesmo centrado em sua fase inicial, o disco já traz o Bowie em metamorfose. É impressionante a variedade que ele oferece, mesmo dentro de uma moldura aparentemente coesa. Um artista que já parecia vários.

Nunca gostei muito de coletâneas. Sempre fui do álbum. Gosto de ouvir a ideia inteira, da primeira à última faixa. Coletâneas me soam como vitrines — e eu prefiro entrar na loja, andar pelos corredores, pegar os objetos com as mãos. Mas às vezes é por uma vitrine que a gente se apaixona pela primeira vez.

A minha relação com o Bowie começa com uma lembrança falsa. Ou, melhor dizendo, uma lembrança implantada, como aquelas de filme de ficção científica. Quando criança, eu não era muito ligado em música. Morava na zona rural, e por mais que música estivesse por todo lado — no rádio da cozinha, nos programas de TV, nas casas ao lado — ela não tinha ainda um lugar afetivo na minha vida. Era pano de fundo, não trilha sonora.

Não havia, naquela primeira fase, ninguém ao redor que servisse como guia musical. Minha mãe ouvia rádio AM, e eu ouvia por tabela. Meu pai gostava de boleros antigos, moda de viola e música caipira, mas não era um cara da música. Minhas tias tinham alguns discos de MPB — uma Elis aqui, um Caetano ali — nada muito além. Um vizinho teve discos dos Beatles. Outro, nem sei o que ouvia. Só mais tarde percebi que essas ausências também formaram o que eu viria a procurar.

Um tio de Bauru, um pouco mais velho, foi talvez a primeira figura com algum papel musical na minha formação. Lembro de ele me levar para shows quando eu era bem pequeno — shows que só mais tarde ganhariam importância pra mim, como Cazuza, RPM e Legião Urbana. Raul Seixas e o Mussum do Originais do Samba, por exemplo, tocaram num comício na cidade. Eu devia ter uns três anos. Claro que não me lembro. Mas como meu pai nunca perdia um comício e minha mãe sempre o acompanhava, é quase certo que eu estava lá. Gosto de pensar que sim. Às vezes a memória não está na lembrança, mas na cena que a gente constrói com os dados disponíveis. E aquilo faz parte.

Quando se tem 10 anos, qualquer adulto parece muito mais velho do que realmente é. E esse mesmo tio, que era algo como dez ou doze anos mais velho do que eu, parecia um senhor. Mas foi ele quem, sem saber, me levou para perto da música — mesmo que só anos depois eu fosse notar.


Na infância, música vinha pela televisão. Minha mãe assistia muito Silvio Santos. Era o pop da época que me alcançava, misturado aos desenhos e programas infantis. E foi num desses programas que ouvi, pela primeira vez, “O Astronauta de Mármore”, do Nenhum de Nós. Eu não fazia ideia de que era uma adaptação de David Bowie. Só sabia que gostava muito daquilo. Era diferente de tudo o que eu conhecia.

Na adolescência, as coisas mudaram. Conheci pessoas que viviam música. Foi quando comecei a comprar revistas como a Bizz, a Rock Brigade, a ler a Ilustrada, o Folhateen, o Caderno 2 . Era o mundo se abrindo — e junto dele, a crítica. Lembro que “O Astronauta” era malhado pelos críticos como uma sombra da original Starman. Não me lembro exatamente quando descobri que era uma versão, mas provavelmente foi lendo num desses veículos.

O problema era o acesso. Na primeira metade dos anos 90, sem internet e morando no interior, conhecer uma música exigia esforço. Nenhum dos meus amigos tinha disco do Bowie. Eles ouviam Metallica, U2, R.E.M., Faith No More, Iron Maiden, Slayer, Megadeth. O nome “David Bowie” era uma lenda distante. Sabíamos que era importante, mas não sabíamos como ele soava.

Talvez eu tenha ouvido algo dele na MTV. Quando ela chegou por UHF, ainda era instável na minha cidade. Só na época da faculdade, em São Carlos, com TV a cabo, é que pude ver mais. Lembro de “I’m Afraid of Americans” — mas, sinceramente, não me chamou atenção. Provavelmente ouvi muito Bowie em filmes sem saber que era ele. “I’m Deranged”, por exemplo, fecha A Estrada Perdida de David Lynch — e aquilo me impactou. A música tinha o mesmo peso desconcertante do filme. Mas eu não sabia que era ele. A conexão só veio depois.

Tudo mudou quando, no fim dos anos 90, entrei na Gê Som — a loja de discos da minha cidade que frequentava quase diariamente. Ela era, junto com a locadora, meu templo. Ali encontrei a coletânea do Bowie que cobria sua fase inicial. Comprei mais por curiosidade, por querer entender afinal quem era esse tal de Bowie de quem tanto falavam.

Fui ouvir o CD no rádio do carro, parado no estacionamento do Gelaguela — a lanchonete de um amigo querido que, nas tardes, era nosso ponto de chegada e, nas madrugadas, nosso ponto de fuga. Foi ali, no fim de tarde, que ouvi Space Oddity pela primeira vez. E logo em seguida, finalmente, Starman. A música que eu tanto queria conhecer na sua forma original.

Foi paixão imediata.

Na arrogância da juventude, cheguei a desprezar “O Astronauta de Mármore” por um tempo, como os críticos faziam. Mas hoje enxergo o valor da versão. Gosto da entrega, da adaptação poética. Quando o vocalista canta “Quero um machado pra quebrar o gelo”, e eu entendi que vinha direto de Ashes to Ashes, senti como se o próprio Renato Russo (expert na apropriação de frases inteiras) tivesse baixado no Teddy Correa.

Mais tarde comprei o volume 2 da coletânea, que cobria a fase entre 1974 e 1979, mas levei mais tempo para digerir. A única que me pegou logo foi Heroes — que, aliás, eu já conhecia na versão do Wallflowers, da trilha do filme Godzilla.

 Heroes também me fez lembrar de outra coisa — ou melhor, de mais uma coisa — que só me veio agora, enquanto escrevo. É curioso como certas conexões ficam adormecidas na memória até que algo as puxe de volta. Durante a adolescência, o livro Christiane F. me marcou profundamente. Li numa fase em que tudo parecia urgente e intenso, e aquele retrato cru de juventude quebrada grudou em mim. Sabia que ela era fã do Bowie, claro, mas só agora, colocando tudo em perspectiva, percebo que foi provavelmente naquele filme baseado no livro que vi o David Bowie pela primeira vez. Tem uma sequência marcante em que ele canta Heroes ao vivo — em alemão, Helden. A cena é poderosa, mas na época o que me impactava era o drama dela. Era a Christiane quem era fã. Eu, não. Ainda não.

Ainda bem que disse “provavelmente” porque, pensando melhor, talvez meu primeiro contato com Bowie tenha sido ainda mais cedo, com o filme Labirinto. Não foi um daqueles filmes essenciais da minha infância, mas lembro de tê-lo visto passando na TV quando era pequeno — e muito provavelmente parei para assistir, ainda que sem grande envolvimento. Curiosamente, tenho a trilha sonora em LP hoje, talvez mais por valor de coleção do que por afeto. Não é um disco que me emociona como outros do Bowie. Tem quem ame, eu sei, principalmente pelo fator nostalgia. Mas pessoalmente, sempre achei que essa fase anos 80 do Bowie não conversa muito com os outros artistas oitentistas que eu gosto. E é estranho isso, porque adoro os anos 80. Só que o Bowie, nessa época, parece descolado — como se estivesse ali, mas ao mesmo tempo não pertencesse. Poderia ter editado o texto pra colocar essa informação de cara mas gosto dessa ideia de idas e vindas da mente. Lembrei até de outro fato mas vou guardar quando falar de um disco especifico no futuro. Se é que me lembrar na hora.

Mesmo assim, a presença dele foi se acumulando aos poucos na minha vida, silenciosamente — uma figura que aparecia nos cantos, nos filmes, nas capas, nos nomes citados — até que, um dia, finalmente parei para ouvi-lo de verdade.

Um amigo que conheci depois, ja nos anos 2000, era apaixonado pelo disco Let’s Dance, mas eu torci o nariz. Hoje, gosto da faixa-título e de mais uma ou outra, mas é uma fase dele, essa dos anos 80 que acho muito fraca. Curiosamente, uma das minhas top 3 do Bowie — Absolute Beginners — é dessa fase que em geral não me pega tanto. Também por causa do filme homônimo, um dos meus cults de cabeceira.

Meu primeiro disco de verdade do Bowie foi o Heathen, de 2002. Não foi o primeiro lançado após eu tê-lo descoberto de vez, mas foi o primeiro que chegou na Gê Som com algum destaque, acompanhado de ótimas críticas. E realmente marcou — foi a grande volta do Bowie, embora os anos 90 já escondessem trabalhos excelentes, mesmo que mais difíceis.

David Bowie não interpretou um alienígena — ele era um. E isso, longe de assustar, confortava. Sua presença era um aviso sutil de que talvez, só talvez, aquilo que sentíamos — esse desencaixe miúdo, essa sensação de não pertencer à ordem natural das coisas — não fosse loucura, mas sintoma. Um dia, a vida nos empurra para os cantos da festa, para os corredores silenciosos da escola, para os espelhos que nos olham de volta com uma dúvida. É quando Bowie aparecia, feito farol em forma de gente, e tornava essa estranheza uma linguagem possível. Se ele podia existir, então havia espaço no mundo também para aquilo que não se encaixa.

A existência de Bowie é a prova de que os alienígenas andaram entre nós — só para que, quando nos sentíssemos um deles, pudéssemos acreditar que não estamos sozinhos.

Ainda pretendo escrever sobre algum outro disco do artista. Já tenho em mente quais. Embora a proposta dessa série de crônicas seja falar de apenas um álbum por artista, Bowie não é o Camaleão à toa. A cada fase, redescubro um novo Bowie. E por isso, ele escapa — como sempre fez — a qualquer estrutura rígida. Com ele, toda regra parece merecer uma exceção.