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sexta-feira, 10 de outubro de 2025

SAUDADES DA MINHA LEMBRANÇA: Quando o Rock era a Estrela

Saudades da minha lembrança foi o titulo de um livro que reune, no começo do século algumas crônicas que escrevia para jornais. Adoro esse titulo que algum tempo depois o cantor Nervoso deu por um zeigeist absurdo para o seu primeiro disco solo (Alias tem uma entrevista que fiz com o cantor nesse link)

Hoje não usaria mais como titulo do livro para nao parecer que roubei o titulo,  mas sem pudor de usar aqui no blog nessa serie de artigos onde pretendo rever alguns  textos que hoje acho bem amadores mas de alguma forma as ideias permanecem. Pretendo reescreve-los, tentando deixar mais contemporâneo e ao mesmo tempo que mudo o ponto de vista sobre algumas coisas. No final acrescento o texto original

Rock, Sexo e Gel de Cabelo: o Brasil dos 80 em 33 rotações

Foi nos anos 80 que as gravadoras brasileiras, sempre atrasadas mas nunca bobas, perceberam que o rock — esse estranho bicho de jaqueta e rebeldia — podia, sim, ser domesticado, enlatado e vendido em suaves prestações.
De repente, o que antes era subversão virou vitrine. O RPM, com teclados supersônicos e libido de arena, mostrou que dava pra lotar estádios com poesia de fotonovela. Blitz, Lulu Santos e a já veterana Rita Lee cuidaram do resto: o rock virou produto, trilha sonora de comercial de jeans e abertura de novela das oito.

E então veio a febre. A segunda metade da década foi tomada por uma explosão de bandas de pop-rock que achavam que podiam salvar o mundo com três acordes e um refrão de rima pobre. Muita porcaria (a maioria) invadiu as rádios, mas entre uma boy band de mullets e uma cantora de ombreiras, sobraram faíscas de talento: IRA!, Titãs, Ultraje a Rigor, Engenheiros do Hawaii, Legião Urbana, Lobão, e outros nomes que a nostalgia insiste em canonizar. Havia também as preciosidades menores — Zero, Hojerizah, Replicantes, Cascavelletes, De Falla, Picassos Falsos — bandas que, ao menos, inconscientemente sabiam que nunca seriam grandes, e por isso mesmo foram melhores.

O cinema, claro, não deixaria o filão escapar.
Lael Rodrigues, espécie de Spielberg tropical do mainstream adolescente, dirigiu dois clássicos involuntários do gênero “rock de vitrine”. O primeiro, Bete Balanço (1984), é um delírio narrativo embalado a libido e penteado de mousse. O roteiro? Um fiapo: garota ingênua do interior vai ao Rio tentar a sorte como cantora.
Mas quem liga? Tinha sexo, coca-cola, Barão Vermelho com Cazuza e Débora Bloch transando com meio elenco. Tinha também Titãs, Lobão e até grupos com nomes que pareciam piada interna (Manhas e ManiasMetralhatxeka — sim, com “x”). Era o rock nacional em versão cinematográfica: desajeitado, histérico e irresistível.

Um ano depois, Lael voltava com Rock Estrela (1985), outra aula de como transformar um roteiro escolar em manifesto juvenil. Diogo Vilela repete o papel de cronista da cafonice e divide cena com Andréa Beltrão, Malu Mader, Vera Mossa (sim, a jogadora de vôlei), Guilherme Karam e Léo Jaime . A trama é uma reprise com outro figurino: rapaz do interior (de novo) vai ao Rio (de novo) e se divide entre o amor e a fama (adivinhe?).
Mas o elenco musical compensa: Metrô, RPM, Tokyo, Fito Páez (em versão proto-acústico MTV), Celso Blues Boy, La Torre, Vírus — e até “Os Melhores”, que ironicamente não eram.

Rever esses filmes hoje é um prazer culposo. Eles condensam tudo o que havia de patético e encantador naquela década: o entusiasmo sem noção, o romantismo pós-ditadura, a crença de que a juventude mudaria o mundo com calça de lycra e guitarras de acrílico.

Lael, ja mais maduro, ainda fecharia sua trilogia do rock brasileiro com Rádio Pirata — título que dispensa explicações para quem viveu os anos 80. O filme, de 1987, é talvez o mais ambicioso (e o mais ingênuo) do trio: tenta misturar rebeldia juvenil, conspiração corporativa e amor em tempos de paranoia tecnológica — uma ficção científica à brasileira, feita com walkie-talkie, topete e boas intenções. 

Na trama, depois de descobrir uma fraude em um centro de processamento de dados — expressão que já entrega o tempo e o lugar —, um casal é falsamente acusado de assassinato. Fugindo em uma van, eles montam uma rádio clandestina para tentar mobilizar a opinião pública. É o gesto heroico típico de uma década em que se acreditava que um transmissor improvisado poderia mudar o mundo. O Final acredito eu causaria muita controvérsia hoje, mas a moral passou batida à epoca, assim como o filme.

Curiosamente, ao contrário de Bete Balanço e Rock Estrela — que usavam músicas homônimas como tema principal, repetidas à exaustão entre uma cena e outra —, aqui a canção que batiza o título nem aparece. Rádio Pirata, a música, ficou de fora. O tema do filme é Brasil, de Cazuza, lançada antes de virar trilha de novela e ainda fresca, ferida, antes de ser domesticada pelo horário nobre.

O resultado é uma mistura curiosa de thriller e videoclipe, movida por um entusiasmo quase adolescente. O roteiro tropeça, a moral da história pesa, mas há ali algo autêntico — um lampejo de idealismo, aquele mesmo que fazia os jovens da época acharem que o rock ainda era uma forma de resistência. Rádio Pirata encerra a trilogia como uma espécie de epitáfio otimista: o último suspiro de uma geração que ainda sonhava com liberdade, mesmo que o som viesse com chiado.

Areias Escaldantes é aquele tipo de delírio cinematográfico que só poderia ter nascido nos anos 80 — e ainda assim, situado num “futuro distante”: 1990. No enredo, um grupo de jovens terroristas tenta derrubar um governo fascista que domina o Brasil. O plano? Roubar bancos. A execução? Um desastre glorioso.

O elenco é um espetáculo à parte — e não necessariamente pelos motivos certos. Lá estão Catarina Abdalla (quem não se lembra da eterna Ronalda Cristina de Armação Ilimitada?), Chris Couto, futura VJ da MTV, Luiz Fernando GuimarãesDiogo Vilela (sim, ele de novo — onipresente e incansável), Neville de Almeida (!) e, veja só, TitãsUltraje a RigorLobão e os RonaldosJards Macalé… todos eles provando, com dedicação comovente, que são ótimos cantores — e atores apenas nas horas vagas.

E, claro, Cristina Aché. Como esquecer? Uma das minhas crushes absolutas da pré-adolescência — dessas que a gente via na tela e achava que o mundo adulto seria uma mistura de Rock Estrela com Armação Ilimitada. Ingenuidade bonita, como quase tudo que veio dos anos 80: exagerado, confuso, mas cheio de coração.O filme mistura estética new wave, figurino de videoclipe da Manchete e uma trilha sonora que poderia estar em qualquer especial de fim de ano da Globo. A direção parece não saber se quer fazer ficção científica, drama político ou desfile de moda distópico — e no fim entrega um pouco de tudo, sem pé, cabeça ou vergonha.

É ruim, claro. Mas é um ruim fascinante. Um sci-fi tropical que acredita piamente na própria seriedade, com efeitos dignos de uma convenção de microcomputadores e diálogos que fariam corar até um roteirista de novela das sete. Só que, no meio desse caos, há algo irresistível: uma autenticidade que o cinema de hoje, tão polido e previsível, raramente ousa ter.

Porque Areias Escaldantes pode não funcionar como filme — mas como cápsula do tempo, é um documento precioso: o Brasil tentando ser futurista com o orçamento de um comercial de sandália Havaianas e o entusiasmo de quem achava que o amanhã chegaria em VHS

Lembro de rever, já no fim do século, uma fita do Rock in Rio II (1991) e perceber que os anos 80 ainda não tinham acabado. As roupas, os cabelos, a pose de “somos o futuro” — tudo permanecia ali, firme, teimoso. Só com a chegada do Nirvana é que a década, enfim, deu seu último suspiro. O grunge limpou o glitter, mas deixou o vazio.

Hoje, ironicamente, vivemos presos ao mesmo espelho retrovisor.
A cada nova onda de nostalgia, o passado ressurge como fetiche: bandas voltando, cortes de cabelo replicados, sintetizadores reabilitados. Os anos 80 viraram uma praga elegante — e nós, os sobreviventes, seguimos celebrando a febre, como se o exagero tivesse sido uma virtude estética.

Mas talvez haja nisso tudo uma sabedoria inconsciente: é mais fácil venerar um tempo em que o rock ainda acreditava em si mesmo do que encarar o presente, onde ele virou playlist corporativa.
Afinal, como diria qualquer refrão da época: somos felizes e não sabemos.

 


 



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A seguir o texto original, publicado na época em jornais locais

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F

oi na década de 80 que as gravadoras brasileiras finalmente perceberam que o Rock, este estranho objeto de rebeldia pode ser muito bem capitalizado e se desvincular com a imagem da Jovem Guarda e ter novamente um lugar ao sol. Depois do sucesso do RPM e das bem sucedidas vendas da Blitz, Lulu Santos e da já veterana Rita Lee a segunda metade da década foi tomada pelo pop-rock que já ensaiava sua revolução alguns anos antes. Muita porcaria (a maioria) invadiu as rádios , mas alguma coisa boa se salvaria no meio, como os até hoje conhecidos IRA! , Ultraje à Rigor, Titãs, Engenheiros do Hawaii, Legião Urbana, Lobão e até preciosidades menos conhecidas (e em alguns casos até melhores) como Zero, Hojerizah, Replicantes, Cascavelletes, De Falla, Picassos Falsos e muitos outros.

 

E o cinema também não podia deixar de capitalizar em cima dessa onda. Lael Rodrigues dirigiu dois “clássicos” desta época. O primeiro deles, o mais famoso é “Bete Balanço”  de 1984. Roteiro que é bom nada, mas o filme é um delírio para os saudosistas. A história é aquele clichê de sempre, digno dos melhores filmes da Xuxa e da Carla Perez: Garota ingênua do interior vem para o Rio tentar sua carreira como cantora. Como o filme foi feito para adolescentes dos anos 80 o que não falta é sexo. Débora Bloch, a personagem principal transa tanto com Lauro Corona (lembra ?) e com a Maria Zilda. O elenco trás ainda Diogo Vilela, Hugo Carvana, Duse Nacarati, Arthur Muhlenberg e a verdadeira razão de ser desse texto, o rock nacional, aqui representados por (claro) Barão Vermelho (Na época com Cazuza), Lobão e os Ronaldos, Titãs, Brylho, Manhas e Manias (!) , Metralhatxeka (!!). Quem viveu essa época tem motivo de sobra para cultuar esse filme e quem sabe pensar duas vezes quando falar mal de algumas produções mais recentes.

 

O outro grande momento de Lael Rodrigues nos anos 80 foi “Rock Estrela” de 1985, novamente com Diogo Vilela (que roubava a cena no filme anterior) e com , Andréa Beltrão, Adriana Riemer, Gulherme Karam , Vera Mossa (!!!)  e Leo Jaime e a estréia de Malu Mader nos cinemas. Conta a história de Rock , um rapaz do interior (já ouvi isso antes), estudante de música clássica que vai até o Rio morar com o primo, interpretado pelo roqueiro e orkuteiro Léo Jaime. Lá ele fica balançado entre a namoradinha de infância Malu Mader (incorporando vários esteriotípos da década) e a jogadora de Volei Vera. 

É mais um caso de curiosidade do que de qualidade. Mas o desfile de bandas como Metrô, RPM, Tokio, o próprio Leo Jaíme garante uma olhada. E prá quem só conheceu do roqueiro Argentino Fito Paez no acústico do Titãs aqui terá uma boa surpresa. E não é só isso , tem também Celso Blues Boy, Os Melhores, La Torre , Vírus e É o Tcham (não, não é).

Ainda no final do século passado revendo uma fita do Rock in Rio II, de 1991, me surpreendi com as roupas que o público usava. Não me lembrava que a década de 80 perdurou até o começo de 92 mais ou menos. É das coisa que só conseguimos enxergar dado um tempo. Só com a chegada do Nirvana é que parece que a década mudou. Só não consigo ainda enxergar onde começa o novo século, já que a onda do momento é uma crise nostálgica sem tamanho da década de 80 que a mídia não se cansa de explorar. Mas tudo bem, em 2020 vamos poder relembrar desse começo de século, já que na década de 10 com certeza serão os anos 90 que estarão em voga. 

Somos felizes e não sabemos.

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Mistérios, Mitos e Pseudoarqueologia: bem-vindo ao mundo de Martin Mystère


Martin Mystère é um personagem da editora italiana Bonelli, criado em 1982 por Alfredo Castelli, depois de anos de tentativas frustradas de lançar um herói sob outros nomes e formatos — inclusive como Allan Quatermain em 197. Paralelo a isso a versão em quadrinhos dos livros do Docteur Mystere pelo próprio Castelli na mesma época serviram de base para o personagem (a Mythos chegou a lançar 2 álbuns sobre a personagem, numa versão moderna mas não temos mais nada em Portugues), Docteur tambem foi incorporado na mítica do Personagem como um antepassado numa historia homônima lançada pela mesma Mythos na quase recente edição 23  da segunda serie.

Nesse intervalo, Hollywood já havia consagrado o arquétipo do arqueólogo aventureiro com Os Caçadores da Arca Perdida (1981), mas a “vibe” do quadrinho foi para outro caminho: pouca ação, muitas investigações e páginas repletas de diálogos — o que afastou parte do grande público. Não à toa, mesmo na Itália a revista nunca foi campeã de vendas, ficando atrás de vários outros personagens Bonelli, especialmente Dylan Dog, criado alguns anos depois e que, durante muito tempo, foi o verdadeiro best-seller da casa, chegando até a inspirar um festival próprio, o Dylan Dog Horror Fest

A comparação entre Mystère e Dylan Dog não é mero capricho: além das afinidades de tom e temática, os dois personagens já dividiram três crossovers e aparecem frequentemente citados nas aventuras um do outro.No Brasil, Mystère estreou em 1986 pela Editora Globo (que no primeiro número ainda se chamava RGE), em uma coleção de 13 edições que, na prática, publicou apenas as 12 primeiras aventuras italianas, já que algumas histórias começavam numa revista e terminavam em outra — exatamente como acontecia também na Itália mas com algumas mudanças que criaram essa edição "extra". 


Em 1990, o personagem ressurgiu pela Editora Record, que no primeiro volume republicou justamente as duas primeiras histórias de Mystère. Vale a curiosidade: a versão da primeira aventura lançada pela Record era ligeiramente diferente daquela publicada pela Globo, já que na Itália a história havia recebido alterações nas republicações. Assim, as duas edições brasileiras acabaram trazendo pequenas diferenças entre si, detalhe saboroso para quem gosta de comparar versões.

 A partir do segundo número, a Record seguiu a cronologia onde a Globo havia parado, publicando a edição 13 da série italiana. Só que a fidelidade durou pouco: a partir da quinta edição, a Record começou a pular números, republicar material da fase Globo e até inserir três volumes da série especial italiana. No total, foram 17 edições, e foi justamente através delas que conheci o personagem.

Formado em Antropologia e Arqueologia, Martin Mystère é descrito como um sujeito peculiar, dono de uma curiosidade insaciável e de um apartamento abarrotado de livros e bugigangas — algumas das quais bastante úteis, como sua arma de raios paralisantes. Seus parceiros de aventuras são tão singulares quanto ele: Java, um homem de Neandertal sobrevivente à extinção da própria espécie, e Diana Lombard, a companheira que, após muitos anos, conseguiu levar o “detetive do impossível” ao altar.


Em 2002, Martin Mystère voltou às bancas brasileiras, desta vez pela Mythos. A ordem de publicação não seguia grande lógica, mas ao menos permitiu resgatar várias histórias que a Record havia deixado de lado. Essa fase se estendeu até 2006 e somou 42 edições. Infelizmente não tenho essa série. É de uma epoca onde parei de ler quadrinhos, que durou algo entre 1997-2012, embora tenha esporadicamente comprado alguma coisa.

O personagem só retornaria em 2018, novamente pela Mythos. A série foi reiniciada do número 1 e, nas três primeiras edições, seguiu fielmente a cronologia italiana de onde havia parado na fase anterior. Mas a disciplina durou pouco: logo a editora voltou ao velho hábito de publicar histórias fora de ordem, incluindo números muito adiantados em relação ao que estava em aberto. 

Ainda assim, essa segunda fase chegou a 36 edições e avançou bastante a cronologia, trazendo aventuras já na altura do número 300 da série original italiana. No fim, parecia até um retrato em quadrinhos do próprio Brasil: quando tudo começa a seguir uma ordem, alguém resolve embaralhar as páginas. Ao menos aos poucos ha progresso, mesmo que infelizmente só nos quadrinhos.

A adaptação animada de Martin Mystère, lançada em 2003, é um daqueles casos curiosos em que uma boa ideia se perde na ânsia de ser “moderna”. Produzida pela Marathon Animation em parceria com a RAI e a Canal J, a série transformou o erudito e irônico “detetive do impossível” de Alfredo Castelli em um adolescente genérico de cabelo espetado, pronto para enfrentar monstros e enigmas semanais com a irmã Diana e o inseparável Java — agora um homem das cavernas domesticado que mais parece alívio cômico de sitcom. O resultado é uma versão que mantém o verniz do mistério, mas esvazia seu conteúdo.

Enquanto o Martin das HQs investigava o elo entre ciência e mito com o olhar de um cético fascinado, o da animação parece um caça-fantasmas teen moldado à estética pós-Scooby-Doo e Ben 10. A trama é episódica, previsível, e reduz o tom filosófico e histórico do original a um desfile de monstros, portais e relíquias mágicas. O que era reflexão vira fórmula: cada mistério é resolvido com uma explosão ou uma piada.

Ainda assim, há mérito em como a série preserva — ainda que diluída — a noção de que o mundo é um grande arquivo de segredos esperando ser decifrado. O problema é que o Martin Mystère animado parece ter medo de sua própria complexidade. É um produto da época: ágil, colorido, hiperativo e permanentemente em busca da próxima “missão”. Um desenho divertido, sem dúvida, mas que trocou a curiosidade adulta e iconoclasta de Castelli por uma aventura ligeira demais — onde o mistério virou entretenimento, e o impossível, apenas mais um episódio da semana.


Para os fãs mais fiéis — e, sobretudo, para aqueles que nunca se aventuraram em Mystère justamente por gostar de ordem cronológica — surgiu uma nova esperança: a Editora 85. O projeto, lançado em formato de encadernados, vem trazendo 5 edições italianas por volume, agora em ordem linear. A proposta é clara: publicar as histórias completas dentro de cada encadernado, sem aquela fragmentação que na Itália, durante muito tempo, fazia uma aventura começar numa edição e terminar na seguinte.

 Para efeito de comparação, o primeiro volume da 85 reune as edições italianas 1 a 5, totalizando cinco histórias. Já o segundo volume, apesar de ter número de páginas parecido e cobrir as edições 6 a 10, trouxe apenas três aventuras — maiores, densas, e ainda mais representativas da fase inicial de Mystère. Você pode comprar essa 2 edições nesse link , lembrando que durante a pre venda quem comprar as 2 edições ganha frete grátis.



LADO B DA VIDA - Sister Hazel & Blind Melon

Na seção Entre Fones e Destinos, onde costumo escrever sobre álbuns que me marcaram profundamente, às vezes tropeço em discos menores — aqueles que não mudaram minha vida, mas de alguma forma ficaram comigo por um tempo. São trabalhos que giraram no CD player, tocaram em repetições distraídas, me acompanharam em algum verão esquecido… e depois ficaram por ali, sem que eu corresse atrás de mais nada da banda na maioria dos casos (nem tudo é verdade absoluta).

A ideia aqui não é resgatar clássicos óbvios nem subestimar gigantes: é falar desses pequenos grandes discos, obras que vivem numa zona intermediária entre o apego e o acaso.

 SISTER HAZEL - ".... Somewhere more Familiar" (1997)

O Sister Hazel é uma banda de rock alternativo da Flórida, formada em 1993, que nunca quis reinventar a roda — e nem precisava. Seu som é uma mistura bem acabada de folk, southern rock e pop melódico, herdeiro direto de nomes como Crosby, Stills & NashCreedence Clearwater Revival e de tantas bandas americanas dos anos 90 que ainda acreditavam em refrões de estrada e harmonia vocal.

…Somewhere More Familiar, o segundo álbum do grupo, é o tipo de disco que não surpreende, mas acolhe. Um trabalho redondo, de melodias honestas e guitarras limpas, feito pra quem gosta de canções que soam familiares na primeira audição. O grande hit, “All for You”, colocou a banda no mapa e garantiu o disco de platina — mérito de um refrão simples e irresistível, daqueles que grudam sem pedir licença.

A origem do nome também tem algo de simbólico: Sister Hazel Williams era uma freira de Gainesville que administrava um abrigo para pessoas em situação de rua. O gesto de homenagem diz muito sobre o espírito da banda — generoso, comunitário e fiel ao público. Ao longo dos anos, o grupo manteve projetos beneficentes e um contato quase direto com os fãs, cultivando um público pequeno, mas leal.

No Brasil, o Sister Hazel não chegou a ter o mesmo alcance de um Kings of Leon (ou de seus vizinhos do Matchbox Twenty), mas ocupa um espaço curioso: fazem parte daquela linhagem de bandas que talvez nunca mudem o rumo da música, mas sempre tocam em alguma memória afetiva.

Somewhere More Familiar é um disco solar, de bons arranjos e nenhuma pretensão. O tipo de álbum que não promete revelações — apenas o conforto de um som bem tocado, bem cantado e com cheiro de final de tarde.

Não é um álbum que mudou minha vida.
Mas volta e meia, quando toca “All for You”, muda o meu humor — e talvez seja por isso que, tantos anos depois, ainda me pego cantarolando o refrão como se fosse 1997 outra vez.

BLIND MELON - 1992

Quem não conhece “No Rain”? O clipe da “abelhinha” atravessou gerações e virou ícone dos anos 90 — tanto que ganhou até paródia do Weird Al Yankovic na ótima “Bedrock Anthem”. Mas o disco de estreia do Blind Melon vai muito além desse sucesso solar e melancólico.

Lançado em 1992, o álbum chamou atenção primeiro por um detalhe curioso: o vocalista Shannon Hoon era amigo de Axl Rose e participou de Use Your Illusion em faixas como “Don’t Cry” e “November Rain” (inclusive no clipe). Essa ponte com o Guns N’ Roses deu à banda uma vitrine - mas o que sustentou o interesse foi o som em si.

No ano seguinte, veio o estouro: “No Rain” virou hino de uma geração que ainda equilibrava otimismo e apatia, luz e ressaca. A música catapultou o Blind Melon ao estrelato e, inevitavelmente, acabou engolindo o resto do repertório — o que é uma pena, porque esse primeiro disco é repleto de boas canções que respiram o mesmo ar psicodélico e folk do southern rock setentista.

Faixas como “Change”, com sua letra de autoaceitação e beleza despretensiosa, são pequenas pepitas perdidas em meio ao brilho de “No Rain”. E há outras que mereciam mais luz: “Sleepyhouse”, com sua vibração hippie noventista; “Tones of Home”, que abre o disco com groove e energia; Fugindo um pouco do album Procure tambem por “Soul One”“Toes Across the Floor”“Walk”“St. Andrew’s Fall” e “Mouthful of Cavities” e o belo cover de "Candy Says"  — onde todas revelam uma banda inspirada, mas tragicamente breve.

E, no meio disso tudo, eu caí — só para dar uma emoção.

Sim, o destino, aliás, foi cruel. Logo após o lançamento do segundo álbum, Soup (1995), Shannon Hoon foi encontrado morto no ônibus da turnê, vítima de overdose de cocaína. O Blind Melon lançou ainda o póstumo Nico (batizado com o nome da filha de Shannon) e, anos depois, tentou uma volta em 2008. Mas a magia daquele primeiro disco nunca se repetiu.

Na época, só esse álbum chegou à minha cidade — e talvez por isso tenha ficado mais forte na lembrança. Eu o ouvi muito, repetidas vezes, sem saber que estava testemunhando uma dessas obras únicas que condensam uma era.

Blind Melon de 1992 é exatamente isso: um disco que nasceu sem pressa, com alma de hippie tardio e melodia de estrada poeirenta.
Um disco que lembra que o rock dos anos 90 ainda podia soar esperançoso — antes que tudo virasse ironia, grunge e silêncio.

(Em tempo: esta matéria foi escrita ao som de “Version 2.0”, do Garbage, como você espertamente deve ter percebido — que não entra aqui, mas fica a dica.)


quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Entre Fones e Destino - Parte 4 - THE VELVET UNDERGROUND

Entre Fones e Destino é uma coluna onde analiso alguns discos que mudaram minha vida e fizeram parte dela. Às vezes o texto acaba levando para outros caminhos, mas o foco principal será sempre este álbum. Frank Jorge já dizia: “Fui lhe mostrar um disco de um cantor que sempre gostei, mas você não me deu atenção.” Essa frase me pega. Quantas vezes, cheio de empolgação, você tenta mostrar algo para alguém, e a pessoa simplesmente não presta atenção? Você começa a tocar a música, e antes mesmo do vocal entrar, ela já está conversando sobre outra coisa. É a vida.

Parte 1(Grandaddy) pode ser acessado aqui.

Parte 2 (David Bowie) pode ser acessado aqui

Parte 3 (Legião Urbana) pode ser acessado aqui



Sabe quando você é super fã de uma banda que nunca ouviu? Pois é.

Morar numa cidadezinha do interior nos anos 90 era aventura para quem gostava de música. Às vezes a gente lia numa revista ou jornal sobre um disco, mas não tocava nas rádios locais e tampouco chegava às lojas. Ao lado de Bariri tem Jaú e Bauru, onde aparecia mais coisa — mas nunca tudo. Em uma dessas idas, entre 1990 e 1991, meu amigo Duzão (descanse em paz) me pediu um disco do Lou Reed. Ele nunca tinha ouvido. Eu, menos ainda.

Depois de rodar várias lojas em Jaú, achei Songs for Drella em uma próximo a praça da matriz. Não fazia ideia de que era o lançamento da época. Foi o único que encontrei e, portanto, o escolhido. Cheguei em casa, coloquei no toca-discos… e não gostei. Acho que o Duzão também não, mas aí já não lembro. Não sabia quem era Lou Reed, muito menos que tinha feito parte de uma tal banda chamada The Velvet Underground. Descobri isso só depois, folheando uma edição da revista Bizz, na sessão “Discoteca Básica”. O subtítulo da seção era impagável: “Compre, empreste, roube. O importante é ter esse disco.” Numa daquelas edições, lá estava ele: o seminal The Velvet Underground & Nico, ou melhor, o “disco da banana”.

Mas uma coisa é ler, outra é ouvir. Entre a revista e a audição real, passaram-se alguns anos. Em 1995 ou 1996, já na faculdade, lembro de um sábado de manhã em que fui com meu amigo Bié a uma loja de discos na Avenida São Carlos. Tinha gasto quase todo o dinheiro na noite anterior (estudante, né). Na prateleira, um box branco com a indefectível banana de Warhol estampada. Trazia toda a discografia da banda. Custava o preço de um rim. Saí da loja sem ele, levei a coletânea Songs in the Key of X: Music from and Inspired by the X-Files bem, muito mais em conta

Mas, nos anos seguintes, já bem mais interessado na banda, me arrependi amargamente de não ter levado aquele box. Não naquele dia, claro — estudante sem dinheiro não tinha como (a não ser que eu levasse ao pé da letra a recomendação da Bizz). Mas eu poderia ao menos ter feito um esforço nos meses seguintes, apertar o bolso, abrir mão de uns gibis… qualquer coisa que me garantisse aquela caixa branca com a banana na capa. Mas, na época, nunca dei muita bola pro veganismo (se bem que muito menos hoje). Hoje talvez tivesse levado o box só para postar no Instagram com a hashtag #BananaOrgânica — e ainda posar de pioneiro.

Em 1998, gravei da MTV o clipe de “Sweet Jane”, registro da reunião de 1994. Foi a primeira vez que tenho consciência de ouvi o Velvet. Vai que ja tivesse ouvido em um filme, afinal “Perfect Day”, do Lou Reed, via Trainspotting, já fazia parte da minha vida. Mas confesso: Sweet Jane não me bateu à época. Ficou perdida entre os VHS gravados

Durante toda a década de 90, o Velvet era um fantasma pairando sobre a minha cabeça: todo mundo falava, mas eu mesmo não ouvia nada. Bandas como Luna, Belle & Sebastian, R.E.M. — que chegou a gravar covers de “There She Goes Again”“Femme Fatale” e “Pale Blue Eyes” (essa última também revisitada pela Marisa Monte, provando que até a MPB já tinha passado pelo labirinto do Velvet) — todos apontavam para eles como referência.

Curioso, porque nas críticas que lia, o Velvet aparecia como sujo, pesado, mergulhado em drogas e sadomasoquismo. Difícil conciliar isso com os escoceses fofinhos do Belle & Sebastian.Na virada para os 2000, a internet já fervia. O Napster tinha caído, mas Emule e Limewire davam conta do recado. Mesmo assim, nunca baixei o Velvet. Foi em Bauru, na mesma loja onde me apresentaram o Luna, que perguntei pelo disco. O vendedor não tinha para vender, mas ofereceu gravar da própria coleção. Depois de uma semana um primo meu me trouxe de Bauru essa gravação, junto com outra icônica, o Primeiro disco do Jupiter Maça e o  "Peloton" do The Delgados, que consegui com o mesmo cara.

Eis que cheguei em casa com um CD-R, capa e encarte em xerox colorido. Coloquei no player e, nos primeiros acordes de “Sunday Morning”, entendi a comparação com Belle & Sebastian. Nada da barulheira que imaginava: havia algo etéreo, delicado, que me pegou de surpresa. Claro, o barulho estava lá em outras faixas, mas não era só isso. Era muito mais.

Poucos discos soam tão inaugurais quanto The Velvet Underground & Nico. Não apenas abriram portas: eles pareciam nascer fora do tempo, como se o futuro tivesse sido prensado em vinil. A banana de Warhol é perfeita: doce por fora, rosa e venenosa por dentro. O choque está tanto nas letras — heroína, prostituição, alienação — quanto na forma: Lou Reed sussurra como quem pede café; Nico canta como uma sacerdotisa gélida perdida em Nova Iorque. Morrison e Cale estilhaçam as canções, Maureen Tucker marca a procissão sombria, e o ouvinte vai sendo puxado para dentro desse mundo sem dó nem piedade.

“Sunday Morning” é falsa inocência. “Heroin”, até hoje, continua uma das canções mais perturbadoras já gravadas. “I’ll Be Your Mirror” é um lampejo de ternura em meio ao caos. Não é um disco perfeito — e aí está sua perfeição. Dissonante, desigual, tosco até. Mas, por isso mesmo, seminal. Como disse Brian Eno: “Pouquíssimas pessoas compraram esse disco, mas todas que compraram formaram uma banda.”

No meu caso, não formei uma banda. Mas virei fã. Fã à distância durante uns dez anos, sem nunca ter ouvido uma nota. Quando finalmente ouvi, foi paixão imediata. E, para fechar o círculo, anos depois comprei o tal box do Velvet Underground — aquele mesmo que me escapou em São Carlos nos anos 90. Hoje tenho dois: um aberto e outro lacrado. Afinal, quem é fã de verdade sabe que nada mais coerente do que ser, ao mesmo tempo, o sujeito que ouve compulsivamente… e o que guarda o objeto intacto, como se ainda fosse aquele fã de uma banda que nunca tinha ouvido.

Anos depois, no Sesc Pinheiros, Lou Reed subiu ao palco para apresentar uma nova versão do lendário Metal Machine Music.O teatro, com sua acústica precisa, logo se transformou num campo de batalha sonora. Antes mesmo de ele aparecer, os ruídos já tomavam o ar — e quando se instalou, de guitarra em punho, a experiência virou algo entre o transe e o caos. Ao seu lado, Ulrich Krieger e Sarth Calhoun disparavam saxofones distorcidos, eletrônicas, drones, zumbidos. Nada lembrava o Lou Reed que os fãs esperavam. Nenhuma melodia, nenhum refrão. Só ruído, puro e denso, como um teste de resistência.

Metade da plateia foi embora. A outra metade, atônia foi diminuindo aos poucos.
Eu fiquei.

E lá estava eu, décadas depois do garoto que comprou Songs for Drella sem saber quem era Lou Reed, ouvindo-o esculpir o silêncio com barulho.
Era o mesmo homem — e, de certo modo, o mesmo menino.

Quando, já perto do fim, ele voltou sozinho e tocou “I’ll Be Your Mirror”, tudo se encaixou.
A canção que nasceu doce e melancólica soava agora como um eco distante, quase metálico.
Mas era um espelho perfeito: distorcido, sim — mas ainda um espelho que brindou os heróis que ficaram naquela noite barulhenta. Não era o Velvet que eu queria mas o que tinha.

E foi ali, naquele momento em que Lou Reed e o ruído se tornaram uma coisa só, que percebi: ser fã de uma banda que nunca ouvi é continuar tentando ouvir o que a gente nunca entende por completo — e é justamente isso que faz a música durar.



Discos que esquecemos


Ontem, num sebo, me vi de novo fazendo o que mais gosto: fuçando prateleiras, caçando CDs de bandas de rock que eu não conhecia — ou achava que não conhecia. Ia pelo instinto, pela capa, como se a estéticaainda dissesse mais que o algoritmo.

Já estava no fim da garimpagem. A pilha de achados crescia, e eu começava a deixar alguns de lado quando um nome simples me fisgou: Girls. O título era ainda mais despretensioso — Album.

Dei de ombros, mas senti aquele breve arrepio que precede uma lembrança. Um déjà vu musical. À primeira vista, o nome me levou à série Girls, mas algo ali soava mais antigo. Como se a banda já tivesse passado pela minha vida sem deixar bilhete.

O encarte não ajudava: só fotos de garotas, cada uma representando uma faixa. Nada de letras, nada de contexto. Na última imagem, dois rapazes — provavelmente a banda. Ou o duo. Fiquei indeciso se levava. O nome, confesso, não me seduzia, mas a capa tinha algo: um ar cool, minimalista, que me lembrou Behaviour, dos Pet Shop Boys — e não por acaso também um duo.

Levei.

E, por curiosidade ou destino, foi o primeiro que botei pra tocar assim que entrei no carro (sim, ainda tenho toca-CDs no carro). Bastaram os primeiros acordes de “Lust for Life” pra memória voltar como uma onda: eu não apenas já tinha ouvido falar do duo — eu já tinha ouvido o disco. E muito. Conseguia até cantarolar os versos, meio surpreso com a própria voz. A faixa seguinte, “Laura”, também me soava familiar. Foi quando percebi: eu não estava conhecendo uma banda nova — estava reencontrando uma antiga conhecida que minha memória tinha arquivado num canto esquecido.

O problema é que não lembro de onde. Talvez fosse um disco que baixei na época em que se baixava tudo — e que se perdia tudo também. Talvez tenha ouvido num filme, lido sobre em algum jornal, numa crítica de rodapé. Procurei no IMDb e não encontrei nada. Nenhuma trilha sonora que explicasse aquela familiaridade absurda. Falando em cinema, me veio à cabeça (500) Dias com Ela), de 2009 — curiosamente o mesmo ano do álbum. Antes de pesquisar, eu jurava que fosse de uns anos antes, coisa do início dos 2000. Mas não: é até mais recente do que eu pensava. O curioso é que 2009 ainda parece ontem — embora já tenha 16 anos.


O que começou como uma simples sensação virou uma redescoberta. Eu não só conhecia o disco, como o tinha ouvido bastante, mesmo que por um curto período — e o havia esquecido completamente. Desde então, tento entender de onde veio.

Pesquisei um pouco: o Girls era uma banda de indie rock de São Francisco, formada em 2007, com dois membros — Christopher Owens e JR White. Lançaram só dois discos — esse e Father, Son, Holy Ghost (2011), que, claro, já encomendei. Em 2012, Owens anunciou sua saída pra seguir carreira solo, encerrando o grupo. Encontrei também um LP solo dele num preço ótimo — e arrisquei.

Lendo sobre o compositor, descobri uma história que parece ficção: Owens cresceu na seita itinerante Children of God. O irmão mais novo morreu de pneumonia porque os fiéis recusavam atendimento médico. Não gosto de comparar religiões, mas há seitas que fazem as outras parecerem perfeitamente razoáveis.

Recentemente, um amigo me pediu desculpas por não ir à minha festa de 50 anos: disse que “não comemora aniversários”. Quase respondi que não precisava explicar — eu sabia o motivo, e qualquer explicação soaria ainda mais absurda. Nunca vou entender o que leva as pessoas a isso, embora elas creiam fielmente que sabem.

A família de Owens deixou os Estados Unidos pra seguir com o grupo, vivendo “por toda a Ásia” até ele completar dez anos. Depois, pela Europa. Aos 16, na Eslovênia, ele deixou a seita, voltou pros EUA, trabalhou em tudo quanto é canto — inclusive repondo CDs em supermercado — e, anos depois, formou o duo que eu reencontraria, sem querer, no fundo de uma prateleira empoeirada.

Ainda estou ouvindo o disco. Parei na segunda faixa, revivendo lembranças que eu nem sabia que existiam. Talvez, com sorte, outra música me devolva o resto do que perdi.

Por coincidência, agora em outubro a banda Oktober Beaver vai abrir o show do Weezer, em São Paulo. Outra que também vive num desses cantos apagados da memória. Lembro que, anos atrás, quando discos importados levavam meses pra chegar, recebi um LP japonês da banda — e não fazia ideia de por que o tinha comprado. Devia ter visto num filme, gostado, esquecido, e o disco ficou.

Até hoje não lembro o motivo do primeiro impulso. Comprei outros depois, mas sempre me intriga não lembrar como cheguei ao primeiro — mesmo há tão pouco tempo.

Mas a verdade é que a memória também se desgasta. A gente vive, ouve, lê, baixa, apaga. E um dia reencontra tudo isso — num sebo, numa música, num refrão esquecido — e percebe que o passado tem trilha sonora. Só que ela toca baixinho, como um vinil gasto, mas com chiado demais pra ser esquecida de vez.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

SAUDADES DA MINHA LEMBRANÇA - O ILUMINADO

Saudades da minha lembrança foi o titulo de um livro que reune, no começo do século algumas crônicas que escrevia para jornais. Adoro esse titulo que algum tempo depois o cantor Nervoso deu por um zeigeist absurdo para o seu primeiro disco solo (Alias tem uma entrevista que fiz com o cantor nesse link)

Hoje não usaria mais como titulo do livro para nao parecer que roubei o titulo,  mas sem pudor de usar aqui no blog nessa serie de artigos onde pretendo rever alguns  textos que hoje acho bem amadores mas de alguma forma as ideias permanecem. Pretendo reescreve-los, tentando deixar mais contemporâneo e ao mesmo tempo que mudo o ponto de vista sobre algumas coisas. No final acrescento o texto original

Indice

Saudades - uma introdução  

Saudades 1 - Homem Aranha

Stephen King odeia O Iluminado. Mas convenhamos: o sujeito que teve a pachorra de dirigir Comboio do Terror não tem exatamente o passe vitalício para sair distribuindo juízos estéticos. O que ele sente, no fundo, é ciúme. Ciúme daquele tipo rancoroso, que nasce quando alguém pega sua ideia, passa um verniz de gênio em cima, e de repente o mundo inteiro esquece que você foi o pai da criança. Kubrick não apenas assinou uma das melhores adaptação de um livro de King: ele fez algo ainda mais cruel — transformou um material apenas razoável em uma obra-prima. E isso não era novidade para ele: já tinha feito com Laranja Mecânica e 2001. (Tá, em Lolita escorregou, mas até Beethoven deve ter errado alguma nota).

Pior para King: O Iluminado não é um filme de Stephen King. É um filme de Stanley Kubrick. E King, que adora ver seu nome grudadinho em cada cartaz, deve ter se sentido como penetra em baile de gala — a festa era dele, mas a orquestra tocava outra música. (Aliás, se até O Passageiro do Futuro, que tinha mais a ver com um videogame ruim do que com King, estampava seu nome, imagina a bronca quando percebeu que Kubrick tinha sequestrado sua obra e não ia devolvê-la).

Kubrick ainda fez um favor imenso: deu dignidade literária a um livro de Stephen King. Antes disso, só De Palma tinha conseguido, com Carrie. Até prefiro o De Palma na comparação, embora seja vitória por pontos, não por nocaute.

Minha primeira experiência com O Iluminado foi aos 14 anos, na casa do Camilo. E aí, Camilo, lembra? Não passamos nem da subida da montanha — a fita parou por ali mesmo, como se o Overlook tivesse mandado um aviso. Uns dois anos depois, enfim, encarei o filme inteiro. Foi de madrugada, na casa de outro amigo, o Daniel (sem você Camilo, perdeu a chance). Estávamos em turma, e o medo foi coletivo. A imagem do pequeno Danny (o do filme, não o dono da casa) deslizando de triciclo pelos corredores ficou martelando na cabeça. E ainda tinha a mulher da banheira, uma Shelley Duvall em frangalhos e um Jack Nicholson em estado de graça — ou de loucura, vai saber.

Nessa época, o Edson, colega de colégio, tinha o livro. Peguei emprestado. Gostei até: tinha aqueles detalhes de passado amaldiçoado do Hotel que o filme ignora. Para um adolescente, não era dos piores. Até hoje, aliás, considero O Iluminado um dos melhores de King. Logo depois comprei Jogo Perigoso — e desisti nas primeiras páginas. Chato demais. King, para nós, era uma obsessão adolescente mais pelo cinema do que pelos livros. Só que os filmes, na maioria, eram ruins. Quando um grande diretor assumia o volante, aí sim: o material medíocre virava clássico.

Tenho para mim que grandes romances quase sempre rendem filmes medianos. Já livros medianos podem render grandes filmes. É o caso de Tubarão, que Spielberg transformou em um épico de suspense aquático, ou dos muitos de Hitchcock que saíram de fontes duvidosas. Até 2001, que nem era livro direito, virou monumento. Mas dificilmente veremos um filme que supere Guerra e Paz, Anna Karenina ou Dom Quixote. Já Stephen King, em geral, tem livros melhores do que os filmes. Mas nesse caso pela incompetência dos Diretores.

Fui conhecer melhor o King escritor mais tarde, na faculdade. Morava numa república com um boliviano, o Gelafito Gutierrez, fissurado em King — comprava tudo. Foi ali que li CarrieAs Quatro EstaçõesCujo… Bons livros mas fui me cansando. King escreve bem, mas nunca sabe parar: é prolixo até dizer chega. Prefiro hoje um filme ruim baseado nele a gastar tempo em um calhamaço. Tentei ler Mr. Mercedes: larguei no primeiro da trilogia. Muito ruim. Aqui acompanhamos o sociopata de frente, o que dá a impressão de um grande vilão, mas é mais um da galeria de King . Acho engraçado como em todos os seus livros que li sempre existe um psicopata. Mesmo um simples estudante do Maine num filme como Conta Comigo tem sua psicopatia elevada a níveis alarmantes. Novembro de 63 é mais palatável, mas tambem abandonei na metade. O homem não tem dó do leitor. Muitos personagens clichês e a ja citada prolixidade de sempre. 

Voltamos para o Iluminado. Em 1997, King resolveu se vingar. Produziu uma refilmagem para a TV onde assumiu o roteiro. O resultado? Uma catástrofe. Não daquela categoria divertida, que envelhece bem e ganha charme trash. Não. Foi ruim no pior sentido possível: burocrático, insosso, sem alma. Se provou alguma coisa, foi apenas que Kubrick era imbatível — e que certas histórias, depois de erguidas ao patamar de obra-prima, não toleram ser rebaixadas sem cobrar um preço constrangedor.

Dizem que há um livro e até uma continuação para o cinema. Mas, honestamente, é melhor deixar os mortos descansarem em paz no Overlook. Até porque, se levantarem de novo, corremos o risco de descobrir que Comboio do Terror foi só um aquecimento.

 



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A seguir o texto original, publicado na época em jornais locais 

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S

tephen King odeia, mas o sujeito que ousou dirigir “Comboio do Terror” não tem moral para falar desta que é sem dúvida nenhuma a melhor adaptação de um livro seu. Na verdade deve ser ciúmes porque ficou muito, mas muito melhor que o livro em que foi baseado, algo não raro na obra de Kubrick que já havia feito o mesmo com “Laranja Mecânica” e “2001” (“Lolita” infelizmente fica fora dessa). Também pesa o fato do filme ser mais relacionado com o Kubrick do que com ele que sempre leva seu nome ao título, até mesmo aqueles que pouco tem a ver com sua obra (Vide o “Passageiro do Futuro”).

 

Kubrick conseguiu ainda uma proeza. Deu dignidade a um livro de Stephen King. Claro que já existia outra boa adaptação, Carrie, e até hoje considero duas das maiores adaptações de King, com uma pequena vantagem de Carrie (De Palma já diz tudo)

 

A primeira vez que tive contato com o  filme eu tinha uns 14 anos, na casa de um amigo meu (e aí , Camilo ?). Não passamos da subida na montanha. Uns dois anos depois finalmente consegui assistir. Estávamos em uma boa turma , de madrugada na casa de outro amigo, o Daniel (O Camilo não estava). E o filme meteu medo, mesmo em grupo. Aquelas imagens do Danny (o do filme, não o dono da casa) andando de triciclo pelos corredores do Overlock não me saia da cabeça. E ainda por cima tinha a cena da banheira, uma Shelley Duvall desesperada e um Jack Nicholson irrepreensível. 

 

Em 1997 Stephen King concebeu o roteiro para um refilmagem televisiva. Não é das piores mas pelo menos ele provou algo que todos já sabiam. O de Stanley Kubrick é imbatível.

 

 

MONSTROS


O “cancelador” é a versão progressista do “cidadão de bem”. Ambos acreditam na sua própria régua moral e não hesitam em usá-la para medir o mundo.

Uns anos atrás, por exemplo, fui convidado pelo jornal O Globo para uma entrevista sobre cancelamentos. O tema: a banda Apanhador Só. Até então eu nem sabia que a banda tinha sido “cancelada”. Chegaram até mim porque eu havia escrito algumas coisas sobre eles. Falei, claro, contra os cancelamentos — e também contra o linchamento constante de Woody Allen. Quando a matéria saiu, nada do que eu disse apareceu. Pior: o texto era tendencioso e só acusava a banda e outros artistas. Guardadas as devidas proporções, ficou um sentimento de cancelamento aqui.

Em outra ocasião, participei de uma entrevista para um trabalho acadêmico sobre cinema nacional. Defendi os tempos da Embrafilme, quando o cinema brasileiro ainda conversava com seu público, mesmo entre tropeços. Hoje, a falta de pressão por público transformou parte da produção em filmes voltados apenas para a própria bolha, sem nenhum esforço em falar com quem está de fora. Não sei se minhas falas entraram no trabalho, até porque nunca teve um retorno — e, sinceramente, não me surpreenderia se tivessem sido cortadas.

Charlie Gordon, personagem de Flores para Algernon, dizia que “as pessoas se ressentem quando alguém lhes mostra que conhecem apenas a superfície de problemas complexos”. Não vou me comparar a Gordon, não chego a tanto, mas há algo nessa frase que explica muito do jogo de versões em que me vi.

A formação de um cinéfilo

Meu mergulho no cinema começou ainda no cursinho, antes da faculdade. Não havia internet — era preciso garimpar VHS em locadoras da cidade. O acervo era limitado, mas o que havia já bastava para descobertas. Nas viagens a Bauru, onde moravam tios e avós, aproveitava para vasculhar locadoras maiores. Foi lá, por exemplo, que encontrei Serpico, que minha cidade não tinha, mas que já estava no meu radar.

O lado ruim de conhecer tantos clássicos aos 20 anos era o contraste: quase tudo o que estava sendo lançado parecia menor. Pulp Fiction, quando estreou, me empolgou. Mas em retrospecto percebo que subestimei muito do cinema comercial daquela época, sem entender que um filme não precisa ser perfeito para ter valor. A maturidade, afinal, ensina a gostar das imperfeições.

Boa parte da sanha “canceladora” vem das novas gerações — gente inteligente, geralmente em idade escolar ou universitária, mas ainda sem bagagem cultural mais ampla. Isso faz diferença: sem repertório, a análise se resume a julgamentos apressados. É natural ver jovens cinéfilos fascinados por Christopher Nolan. E faz sentido: Nolan é competente, técnico, atento a detalhes no blockbuster americano. Complica um pouco as coisas, o que dá um certo ar de mistério — perfeito para essa idade. Mesmo que, às vezes, essa complexidade seja mais perfume que essência.

Quando criança e adolescente, diretores não eram a minha preocupação. O interesse era pelo filme em si, sobretudo os blockbusters. Diretores eram Spielberg e, vá lá, Hitchcock. Eu gostava dos thrillers de Brian De Palma, mas nem sabia que Vestida para MatarDublê de Corpo e Os Intocáveis eram do mesmo diretor. Só fui ligar os pontos já perto da faculdade.

Woody Allen, Polanski e a régua moral

Entre os primeiros diretores que me marcaram estavam Scorsese, Coppola, Kubrick e, claro, Woody Allen. Minha primeira lembrança dele vem da infância: nas chamadas de fim de ano da Globo, aparecia Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo. Aos 12 ou 13 anos, o título bastava para chamar a atenção. Vi no sábado em que passou, sem saber ainda quem era o diretor. Outras chamadas chamavam atenção pelo nome: Noivo Neurótico, Noiva Nervosa ou Taxi Driver – Motorista de Táxi. Alguns eu só fui assistir depois.

Na adolescência e depois na faculdade, mergulhei em Allen: A Rosa Púrpura do CairoA Era do RádioTiros na BroadwayPoderosa AfroditeTodos Dizem Eu Te Amo, estes três últimos eram os que estavam em evidencia no momento. Lembro de conversas no ônibus para São Carlos, onde um colega criticava moralisticamente Allen por namorar a enteada. Curiosamente, esse mesmo colega hoje é casado com uma mulher trinta anos mais jovem que ele. São ironias que só a vida escreve.

Sobre Allen, minha posição é clara: acho falsas as acusações contra ele no caso da filha adotiva. Não que seja santo — traiu a esposa com Soon-Yi, que na época era menor de idade segundo a lei, mas não uma criança. Desde então estão juntos. Quanto à filha do casal, as acusações sempre me pareceram forçadas, fruto de uma disputa marcada pelo descontrole de Mia Farrow. Não esqueçamos: dois filhos dela se suicidaram.

De qualquer forma, a carreira de Allen seguiu forte durante décadas. Atores e atrizes disputavam papéis em seus filmes. Mia Farrow, vale dizer, não era coadjuvante nessa disputa: tinha prestígio e carreira própria. Até 2016, Allen manteve a média de um filme por ano. Só com o movimento #MeToo os ataques ficaram mais sistemáticos, a ponto de comprometer sua produção. Mesmo assim, sua filmografia já estava recheada de títulos icônicos.

Roman Polanski é outro caso. Ao contrário de Allen, aqui não há nebulosa: há crime. Condenado por estupro de menor, vive foragido dos Estados Unidos desde os anos 1970. Ainda assim, seguiu carreira consagrada, com direito à Palma de Ouro em Cannes e Oscar de melhor diretor. Vale a leitura do livro da vítima, Samantha Geimer: A Menina – Uma Vida à Sombra de Roman Polanski. É impactante e nada panfletário.

O dilema do fã

Como cancelar diretores com obras desse porte? ManhattanNoivo Neurótico, Noiva NervosaA Era do RádioCrimes e PecadosMatch Point — todos de Allen. Faca na ÁguaChinatownO Bebê de RosemaryRepulsa ao SexoO Pianista— de Polanski. Não se trata de dizer que filmes ou livros são “obrigatórios”, mas de reconhecer que quem se interessa de verdade por cinema não pode simplesmente ignorar essas obras.

Esse dilema é justamente o tema de Monstros – O Dilema do Fã, da jornalista Claire Dederer. O livro é delicioso: levanta perguntas difíceis, joga com a ironia, leva o leitor a uma conclusão para depois puxar o tapete. É leitura recomendada sobretudo para quem acha que já tem opinião formada — seja por excesso de certezas, seja por pura falta de repertório.

No fim, tudo volta ao começo: o “cidadão de bem” e o “cancelador” são faces opostas do mesmo impulso — a certeza de que sua régua moral deve ser aplicada ao mundo. Um, com a Bíblia debaixo do braço; outro, com hashtags na ponta dos dedos. Ambos se arrogam o direito de decidir quem merece existir em praça pública e quem deve ser jogado ao ostracismo. Mas a arte, por sorte, insiste em sobreviver a esses tribunais improvisados. Filmes, livros e músicas continuam ali, esperando quem queira se arriscar a encarar suas ambiguidades. O resto é barulho de época — tão passageiro quanto qualquer moda moral.

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

O Iluminado: as duas versões de um mesmo labirinto


Este artigo é uma versão reformulada de um texto publicado alguns anos atrás. O original, mais fragmentado e acompanhado de fotos quadro a quadro, comentava cena por cena as diferenças entre as duas versões de O Iluminado. Para quem quiser mergulhar nessa leitura mais visual — com imagens que ajudam a comparar cada acréscimo e supressão —, ele continua disponível neste [link].


 Poucos sabem que O Iluminado tem diferenças substanciais entre a versão lançada nos Estados Unidos e a exibida no resto do mundo. A cópia internacional — aquela a que estamos acostumados — dura 119 minutos. Já a americana, aprovada por Stanley Kubrick, estende-se por cerca de 144 minutos, com acréscimo de aproximadamente 25 minutos de material. Não se trata de uma “versão do diretor” — ambas receberam seu aval —, mas de duas estratégias distintas para calibrar o olhar do público: a americana, mais longa e explicativa; a internacional, mais seca e enigmática.

Os acréscimos

Logo no início, após a apresentação de Wendy e Danny, a mãe conforta o filho dizendo que a temporada no Hotel Overlook será divertida e que ele não deve ter medo. Paralelamente, vemos Jack sendo apresentado a Bill Watson pelo gerente Ullman. Em seguida, numa conversa estendida, Jack menciona que foi professor, que agora escreve um livro e que a temporada isolada seria propícia ao trabalho. Ullman também explica o fechamento do hotel no inverno — informação que, na versão curta, o espectador só descobre depois.

Após a primeira visão de Danny no banheiro, surge uma cena inédita: uma médica examina o garoto, pergunta sobre o desmaio e ouve dele a primeira menção ao amigo imaginário Tony, ainda envolta em silêncio. Na sequência, a médica conforta Wendy e extrai a confissão de que Jack, bêbado, já deslocara o braço de Danny. A revelação sela o trauma familiar e introduz o alcoolismo de Jack muito antes do que conhecemos.

Outros momentos se alongam: Ullman mostra o salão Colorado e Wendy comenta os desenhos indígenas, lembrando o passado glorioso do hotel que já recebeu presidentes e estrelas de cinema. Ao apresentar o quarto, Jack apalpa a cama e inspeciona o banheiro. Do lado de fora, Ullman alerta que o labirinto exige cautela. Mais adiante, ao mostrar o salão de festas, explica que cabem 300 pessoas e que o estoque de bebidas fora retirado no inverno. Jack, em resposta, diz que não há problema, afinal “eles não bebem”. É também nesse ponto que conhecemos Suzie trazendo Danny da sala de jogos — enquanto na versão curta, Hallorann simplesmente aparece direto na cozinha.

A relação entre Hallorann e a família também ganha mais detalhes. Ele faz um comentário curioso sobre o nome Winnifred, apelido de Wendy. E, durante a conversa com Danny, acrescenta: assim como pessoas, lugares também podem ser iluminados — referência direta ao próprio hotel.

A partir daí, pequenas inserções dão outra cadência: Wendy empurrando um carrinho de café (cena de 20 segundos intercalada com Danny no triciclo), uma conversa no café da manhã em que Jack confessa sentir que já esteve no Overlook, quase um déjà-vu. É um raro instante de intimidade conjugal, pontuado pelo deboche de Wendy, que imita sons fantasmagóricos. Mais adiante, quando Jack joga a bolinha contra a parede, a versão longa inclui apenas um novo plano de costas — detalhe de oito segundos.

Outros acréscimos surgem em momentos cruciais: Wendy assiste à TV na cozinha enquanto o noticiário fala do desaparecimento de Susan Roberts e da tempestade que se aproxima. Uma cena mostra Hallorann dentro do avião conversando com uma aeromoça, depois o pouso, a garagem Durkin e a ligação para o amigo Larry pedindo o carro de neve — todo um bloco de mais de dois minutos eliminado da versão curta, que resume tudo em dois cortes.

O arco de Danny/Tony também ganha sublinhados: antes de entrar no quarto onde encontra Jack, ele pede à mãe para buscar seu carro de bombeiros; Wendy o alerta para não incomodar o pai. Quando Wendy assiste Papa-Léguas com Danny já tomado por Tony, pega um taco de beisebol antes de sair — detalhe que prepara a sequência seguinte. Há também a cena em que Wendy caminha aflita pelo quarto, falando sozinha sobre fugir com o carro de neve, até ser interrompida por Danny/“Tony” repetindo o “Redrum”. Na continuação, Danny aparece catatônico, afirmando que “Danny não está mais ali”.

Pequenas alterações prosseguem: Jack retira mais peças do rádio, vemos uma cartela de horário “8am”, e Hallorann tentando contato novamente. E, antes do clímax, uma sequência de Wendy perambulando pelo hotel, onde encontra o salão coberto de teias de aranha e cheio de esqueletos — uma visão fantasmagórica e literal, jamais presente na versão internacional.

O epílogo perdido

Um dado curioso: após as exibições-teste, Kubrick ainda removeu uma cena de cerca de dois minutos que aparecia logo após a imagem de Jack congelado na neve. Nela, Wendy e Danny eram mostrados em segurança, num epílogo quase conciliador. Essa cena foi definitivamente suprimida e permanece perdida — talvez um fantasma condenado a nunca mais assombrar a película.

O paradoxo das duas versões

Essas diferenças não são mero detalhe de colecionador: elas escancaram uma contradição. Como conciliar o rigor minimalista de Kubrick, que perseguia cada corte com a obsessão de um cirurgião, com a existência de uma versão mais redundante, quase didática? A resposta talvez esteja no choque entre arte e mercado, entre o gesto autoral e a necessidade de dialogar com públicos diferentes.

Outros diretores também revisitaram suas próprias obras, às vezes por ego, outras para buscar novos caminhos. Sergio Leone sofreu com Era uma Vez na América: nos Estados Unidos, o filme foi lançado em uma versão de 139 minutos, mutilada e remontada em ordem cronológica, que arruinou sua recepção. Só anos depois os americanos puderam ver a montagem original de 229 minutos, já cultuada na Europa, e reconhecer o épico de Leone em sua forma concebida. Coppola encurtou Apocalypse Now sob pressão e, décadas depois, devolveu-lhe a exuberância com o Redux. Ridley Scott, com Blade Runner, já cultuado, reafirmou seu status quando lançou a versão sem narração, mais ambígua e próxima do que imaginava. Kubrick, em O Iluminado, foi além: já na época da estreia permitiu duas versões distintas, ajustando o filme conforme o público a que se destinava. Richard Donner só viu seu Superman IIganhar forma real em 2006, quando o chamado Donner Cut veio à tona. E David Fincher, em contraste, recusou-se a endossar a versão estendida de Alien 3, preferindo manter distância de um projeto que considerava irremediavelmente comprometido.

Mas Kubrick é um caso singular. Ele não foi vítima de estúdio, como Leone ou Scott: aprovou pessoalmente ambas as versões. O que se revela é sua ambiguidade estratégica. Para o público internacional, ofereceu a concisão e o mistério. Para o público americano, a narrativa “mastigada”, com explicações adicionais e diálogos redundantes. Uma concessão calculada, talvez.

No fundo, O Iluminado confirma que mesmo Kubrick, arauto da perfeição formal, sabia jogar o jogo da indústria. Seu cinema continua sendo um labirinto — não apenas no espaço, mas também no tempo. Um filme que existe em duas durações, dois ritmos, dois modos de encarar o espectador. E é justamente aí que reside sua força: O Iluminado não é apenas sobre um hotel assombrado, mas sobre o próprio cinema como construção instável, sempre à beira de se perder em corredores demais.

Kubrick, ao contrário de tantos, nos deixa um paradoxo: o mesmo diretor que acreditava que o excesso de explicação matava a atmosfera, também legou uma versão que insiste em explicar. Talvez a lição seja essa: nenhum corte, por mais rigoroso, consegue domesticar o enigma. O Overlook continuará nos encarando, ambíguo e inacabado, como se fosse a própria metáfora do cinema moderno — uma arte que, entre silêncio e redundância, nunca para de assombrar.