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segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Os Naufragos no Wager

 


Em 1738, o capitão mercante britânico Robert Jenkins apresentou-se ao Parlamento com um espetáculo mórbido: dentro de um frasco, exibia a própria orelha esquerda, decepada, segundo ele, por um oficial espanhol que o acusara de contrabandear açúcar das colônias. O gesto inflamou a opinião pública e forneceu munição política para um novo conflito entre Inglaterra e Espanha, que ficaria conhecido como a Guerra da Orelha de Jenkins.

As autoridades britânicas logo elaboraram um plano grandioso. O alvo era Cartagena, centro vital do império espanhol no Caribe, de onde partiam navios carregados de prata peruana rumo à Europa. Reuniram uma frota de 196 embarcações, o maior ataque anfíbio da história até então. Mas, paralelamente, uma missão menor e mais secreta foi traçada: cinco navios de guerra, com cerca de dois mil homens, cruzariam o Atlântico, contornariam o Cabo Horn e atacariam as possessões espanholas no Pacífico, da América do Sul às Filipinas.

A operação tinha uma fachada patriótica, mas no fundo escondia um propósito quase pirata: capturar o galeão da prata, que duas vezes por ano partia do México para as Filipinas carregado de metais preciosos, trocados por seda e especiarias asiáticas revendidas depois na Europa. Oficialmente, Londres negava patrocinar saques; na prática, tratava-se de um ato de pura ladroagem sob a bandeira da Coroa.

O desafio, porém, não era apenas a marinha inimiga. Os maiores obstáculos estavam nos mares selvagens do Cabo Horn, território de ventos cortantes, ondas de até trinta metros e icebergs traiçoeiros. Poucos marinheiros britânicos tinham conseguido cruzá-lo. A esperança recaía sobre o verão austral, entre dezembro e fevereiro, quando o mar prometia ser menos hostil — promessa que logo se revelou ilusória, pois foi justamente o contrário que se mostrou.

Mesmo os navios de guerra mais sofisticados eram frágeis diante do oceano. Construídos em carvalho e cânhamo, com mastros e conveses vulneráveis a cupins, fungos e ao famigerado Teredo navalis — molusco capaz de devorar cascos inteiros —, já partiam em desvantagem. Colombo, em sua quarta viagem às Índias Ocidentais, perdera duas embarcações para esses inimigos invisíveis. Muitas vezes, um navio estava condenado antes mesmo de deixar o estaleiro.

Foi nesse contexto que surgiu o Wager. Originalmente mercante, desajeitado e atarracado, fora comprado pela Marinha para reforçar a frota. Conhecido como “excêntrico”, adernava de maneira perigosa. Para corrigir o defeito, o porão foi entulhado com mais de quatrocentas toneladas de ferro-gusa e pedras, numa tentativa desesperada de dar lastro. Em vez dos habituais 120 homens, levou cerca de 250, praticamente o dobro da tripulação para a qual fora projetado.

O excesso de gente, somado às más condições de higiene, favoreceu a explosão da “febre do navio”, hoje identificada como tifo. A bordo do Centurion, embarcação da mesma frota, contavam-se mais de 200 enfermos e pelo menos 25 mortos. Febres altíssimas, delírios e hemorragias ceifavam vidas diariamente. Sem saber que piolhos transmitiam a bactéria, os médicos relatavam homens tentando “pegar objetos no ar” em pleno delírio.

A Marinha ainda enfrentava outra crise: a escassez de marinheiros. As tentativas de recrutamento pacífico falharam, e as autoridades passaram a recorrer a métodos violentos. Gangues armadas percorriam cidades e vilas sequestrando qualquer um que tivesse aparência de marinheiro: camisas xadrez, chapéus redondos, calças largas, dedos manchados de alcatrão. Até mercadores recém-chegados, ansiosos por rever a família, eram arrastados para a frota.

O resultado era uma tripulação caótica. Voluntários traziam consigo varíola e outras doenças; muitos eram ladrões e criminosos recém-saídos da prisão de Newgate. Para completar, o governo enviou recrutas inexperientes e até veteranos inválidos do Royal Hospital de Chelsea — homens velhos, coxos, surdos, cegos, alguns com pernas de pau, levados em macas ao embarque. Seus rostos apavorados revelavam o que todos sabiam: estavam sendo enviados para morrer.

Esse caldo humano, misto de forçados, doentes e desesperados, formou a tripulação do Wager. Quando o naufrágio aconteceu, no século XVIII, a tragédia já estava anunciada. O desastre não apenas os confrontou com a fúria da natureza, mas desencadeou uma luta brutal entre os próprios sobreviventes, culminando em um tribunal militar que buscou separar heróis de traidores, disciplina de motim.

É essa odisseia brutal que David Grann recompõe em Os Náufragos do Wager – Uma História de Motim e Assassinato. A partir de diários de bordo, cartas desesperadas, registros de corte marcial e papéis esquecidos no Almirantado, ele constrói uma narrativa que pulsa como romance e fere como testemunho histórico. É mais do que uma crônica de naufrágio: é um estudo sobre até onde a sobrevivência pode corroer valores, sobre como a verdade se fragmenta quando cada voz tenta impor sua versão. Autor de Z – A Cidade Perdida e Assassinos da Lua das Flores, Grann prova novamente ser um mestre em transformar pesquisa meticulosa em literatura irresistível.

Entre os sobreviventes estava o jovem John Byron, aspirante que escapou do motim apenas para, décadas depois, entrar para a história como avô do poeta Lord Byron. Um detalhe biográfico tão improvável que parece invenção — e no entanto é realidade.

A leitura de Os Náufragos do Wager inevitavelmente evoca O Senhor das Moscas, de William Golding: homens isolados, confrontados pela escassez e pelo medo, que abandonam qualquer verniz de civilização e se entregam ao instinto mais brutal. No caso do Wager, não eram crianças em uma ilha, mas marinheiros endurecidos que, ainda assim, sucumbiram à mesma lógica de facções, intrigas e traições. A diferença é que aqui a disputa não se limitava à sobrevivência física, mas também à narrativa: cada sobrevivente inventava sua versão, espalhava boatos, distorcia fatos para salvar a própria pele. Um espelho desconfortável do nosso presente, em que a desinformação viaja mais rápido que qualquer navio, e a verdade, fragmentada, torna-se apenas mais uma arma na luta pelo poder

“Um motim completo era diferente de outras revoltas; ele ocorria dentro das próprias forças estabelecidas pelo Estado para impor a ordem — as forças armadas — e por isso representava uma ameaça tão grande às autoridades governantes, sendo frequentemente reprimido de maneira brutal. Era também por isso que os motins ocupavam a imaginação do público. O que levava os executores da ordem a cair na desordem? Seriam eles grandes bandidos? Ou havia algo de podre no cerne do próprio sistema, algo que impregnava a rebelião de uma causa nobre?”

Essa reflexão acerca de uma situação ocorrida do século XVIII, não soa distante de nós. Ainda hoje, quando instituições criadas para preservar a estabilidade se voltam contra ela, a sociedade se vê diante da mesma perplexidade: quem deveria conter o caos acaba encarnando-o. Nesses momentos, as linhas entre disciplina e rebelião se borram, boatos ganham força de fato e versões conflitantes disputam espaço com a própria realidade. E o que poderia ser apenas desordem revela-se como sintoma de algo mais profundo — rachaduras no sistema que, em vez de sustentar a ordem, acabam por alimentar a dúvida coletiva.

No fim, é sempre o mesmo mecanismo: o medo como instrumento de controle, a paranoia como combustível para as massas. Faz-se acreditar em forças invisíveis, ainda que improváveis, porque nada subjuga mais do que a sensação de um inimigo sempre à espreita — mesmo que ele exista apenas na imaginação.

Não surpreende que Hollywood tenha farejado o potencial dessa história. Martin Scorsese, nome constantemente associado a inúmeros projetos — muitos deles que jamais sairão do papel —, adquiriu os direitos do livro logo após concluir Assassinos da Lua das Flores. Mas este caso parece diferente: a adaptação de Os Náufragos do Wager já tem Leonardo DiCaprio confirmado no elenco, em papel ainda não revelado, e tudo indica que será um dos projetos que de fato ganharão o mar aberto das telas.

Um épico marítimo, uma meditação sobre poder e fraqueza, uma narrativa de aventura histórica que agora cruza o Atlântico rumo ao cinema. Os Náufragos do Wager não é apenas leitura: é experiência. E quem se deixar levar por essa viagem descobrirá que o maior perigo não se escondia nas ondas gigantes ou nos ventos do Cabo Horn — mas no íntimo de cada homem que sobreviveu para contar a própria versão.

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