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domingo, 7 de setembro de 2025

Gibi e Infância – lembranças em pequenos quadros sequencias gravados na mente


Eu não me lembro do primeiro gibi que li. Cresci cercado de livros e revistas em quadrinhos, tanto na casa da minha avó — onde as estantes transbordavam — quanto graças a um primo mais velho, dono de pilhas e pilhas de gibis. O primeiro contato se perdeu em algum ponto da infância, apagado pela sobreposição de novas experiências. Mas a memória, traiçoeira, funciona como tatuagem: não guarda a história inteira, mas imprime imagens fixas, estáticas, que permanecem para sempre.

Foi com gibis que aprendi a ler. Eu passava as tardes folheando, acompanhando os desenhos e tentando adivinhar as histórias sem entender direito as palavras. Às vezes conseguia, mas sempre faltava algo. Minhas tias eram professoras, e uma delas, que trabalhava em casa, me ajudou a juntar as primeiras sílabas. Os quadrinhos viraram meu alfabeto paralelo. Quando cheguei ao pré, aos seis anos — bem mais tarde do que hoje —, eu já lia. Por isso, achava maçante ter que ficar repetindo o bê-á-bá.

Uma das imagens que não me abandonam é a de um ônibus de plástico branco. Eu recortava personagens dos gibis e colava nos vidros como se fossem passageiros. Lembro especialmente do Mickey ali dentro. Hoje me incomoda pensar no gibi que destruí — não sei qual era, certamente acabou no lixo em algum ponto entre 1980 e 1981. A data é precisa porque foram os anos em que morei naquela casa.

De 1982 guardo duas memórias vivas. Não foram os primeiros gibis que tive, mas os primeiros que me marcaram, e que ainda conservo. Desde que nasci morei na zona rural, na fazenda do meu avô. Em 1980, mudamos para a cidade, mas Bariri, naquele tempo, abrigava a indústria de óleos Resegue — que poluía bastante. Minha bronquite piorou, e por orientação médica voltamos para o campo, onde o ar era mais limpo. Nesse meio-tempo, um tio recém-casado ocupava a casa onde cresci, e minha família foi parar num rancho à beira do Tietê. Devem ter sido só alguns meses, mas aos sete anos o tempo corre devagar — e parecia uma eternidade.

Foi nesse período que meu pai chegou da cidade trazendo um gibi da Pantera Cor-de-Rosa. Lembro de estar sentado em cima da mesa da cozinha, encostado na parede, e de como aquele gibi foi o início da minha mania de guardar tudo. Ele está até hoje na coleção, já bem surrado. 

Dessa mesma época, lembro de um gibi de tiras em formato horizontal chamado Mônica e sua Turma. No rancho onde morei havia apenas um quarto forrado de laje e cimento; o resto da casa era cru, sem forro. Tenho guardada a imagem estática de estar nesse quarto, ao lado de um beliche, que servia como escada improvisada para alcançar o espaço entre o forro e o telhado. Ali, deitado, eu lia o gibi e o coloria com lápis de cor, já que era em preto e branco.

Na verdade, não tenho certeza se foi exatamente ali que o colori. A lembrança de estar naquele espaço é nítida, mas a parte do colorir pode ser apenas um truque da memória — afinal, as primeiras páginas do gibi estão hoje todas pintadas. E, por honestidade, é preciso dizer: não havia nenhum Michelangelo em mim. Os rabiscos eram grosseiros, sem respeitar margens ou bordas, e com pouquíssima noção de cor.

Outro marco foi Disney Especial – Os Fantasmas. Nele, Donald se hospedava num hotel mal-assombrado e descobria que os “fantasmas” eram, na verdade, pássaros em gaiolas cobertos com lençóis. Descrevendo assim não faz sentido nenhum, mas quando lia, fazia todo. É o poder das narrativas: nos convencer de sua lógica interna. Só mais tarde percebi que havia adultos que não conseguiam se divertir porque gastavam energia sendo “senhores coerência” — gente que empaca nos detalhes irrelevantes.

Minha infância foi feita de Turma da Mônica, gibis Disney, revistas infantis que ainda guardo. Super-heróis, só na TV. Em 1980 e 1981, na cidade, eu via o Batman todas as manhãs, o desenho do Homem-Aranha e seus amigos, produções animadas da Marvel dos anos 60 pela Hanna-Barbera, e até a série do Quarteto Fantástico. Mas os gibis de heróis eu achava difíceis. Mesmo assim, às vezes um ou outro caía nas mãos.

Foi na casa do mesmo primo que li a primeira HQ do Homem-Aranha: a capa trazia vários rostos e a frase “Uma dessas pessoas vai morrer. Qual?”. Sem querer, li a morte de Gwen Stacy. Eu não sabia quem ela era, só conhecia os personagens dos desenhos. O choque veio do simples fato de alguém morrer num gibi. Depois, colecionando A Teia do Aranha, da Abril, descobri quem era Gwen e passei a esperar pela sua morte com uma estranha ansiedade, já sabendo do destino que a aguardava. Hoje acho engraçado ver tanta gente fazendo “piti” por spoiler de filme.

Naquela fase, só uma coleção de heróis me fisgou: Guerras Secretas. A capa da primeira edição, lotada de personagens, me chamou atenção e comprei. O texto era simples e a história envolvente. Comprei todas. Da edição 4 guardo a lembrança exata: minha mãe empurrava o carrinho no Jau Serve enquanto eu lia a cena em que o Hulk sustenta uma montanha inteira para salvar os outros heróis. Mais uma foto mental guardada.

Foi também na banca que comprei a adaptação de Gremlins, muito antes de ver o filme. Gostava desses quadrinhos que traziam o que eu via na TV: ThundercatsHe-ManShe-RaComandos em AçãoFalcon. Mas meu coração estava na Disney, na Turma da Mônica, na Turma do Arrepio, no Gordo de Ely Barbosa (que quase ninguém lembra hoje), no palhaço Sacarrolha, no Gran Circo Kabum. Lia também Diversões Juvenis, que reunia Hanna-Barbera, O Gordo e o Magro, Faísca e Fumaça. Qualquer hora faço crônicas  individuais sobre algumas dessas publicações.

Outra cena que volta é a do Capitão América com um Aranha gigante na capa. Eu estava no Clube Municipal de Bariri, durante a OEBA — Olimpíadas Escolares de Bariri. O jogo em quadra nem sei de qual esporte era; eu só queria ler. Esporte, aliás, não fazia parte da infância. Até futebol eu odiava — gosto que só fui adquirir no colegial, incentivado por um professor que torcia para o mesmo time que eu.

A memória, como disse no início, funciona como um álbum de fotos truncado. Não traz a narrativa inteira, mas flashes. Vejo-me comprando um Almanaque do Professor Pardal e lendo escondido na classe da quarta série do SESI, até que a professora — a mais severa que tive — o tomou de mim. Com dinheiro do lanche, comprei outro igual. No fim do ano, ao esvaziarem os armários da sala, o gibi apareceu. Voltei para casa com ele, como se a memória tivesse dado uma piscadela cúmplice.

São essas imagens estáticas, fragmentadas, que compõem a infância. Não lembranças inteiras, mas recortes — como páginas soltas de um gibi, espalhadas sobre a mesa. A vida não nos devolve a sequência completa, apenas os quadros que ficaram mais fortes: o ônibus de plástico com o Mickey colado na janela, o Hulk segurando a montanha no supermercado, o Donald cercado de fantasmas-pássaros.

Talvez seja assim que a memória trabalha: como um desenhista distraído, que esquece de ligar uma cena à outra, mas capricha em certos quadros. Não precisamos do enredo completo; bastam os painéis que resistem, impressos em nós como vinhetas. E, de algum modo, é esse mosaico imperfeito que forma a história — nossa história.






 

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