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quinta-feira, 11 de setembro de 2025

A HORA DO MAL (Critica)

 

Outro Texto, agora uma critica reduzida ao filme A Hora do Mal, que já teve uma analise anterior sem falar muito sobre a trama (para aqueles que não assistiram ao filme) e que pode ser acessada nesse link.

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Todo filme escorrega para além das intenções do diretor. Mesmo a comédia mais banal pode, sem querer, se tornar documento de uma época, revelando contradições que ninguém planejou filmar. A Hora do Mal parece saber disso e abraçar o risco. Assisti a ele com a sensação incômoda de que a qualquer momento a tela se inclinaria para me sussurrar uma verdade já conhecida, mas sempre empurrada para debaixo do tapete — como em Beware of Darkness, de George Harrison, onde a suavidade melódica encobre versos sobre falsidade e manipulação. Aqui, a máscara é o terror: uma fábula de ilusões coletivas, de medos que crescem quando ninguém ousa nomeá-los.

Tudo começa às 2h17 da madrugada, quando 17 crianças desaparecem sem deixar vestígio. Nem um vidro quebrado, nem um ruído — apenas o vazio, como a “escuridão” de que fala Harrison, aquela que se instala justamente quando tudo parece em ordem. A cidade de Maybrook, com seus gramados impecáveis e sua fachada de normalidade, começa a rachar. O mal não se anuncia com clarins nem com chifres; infiltra-se pelos gestos, pelas insinuações, pelos olhares que preferem acusar a compreender. O verso de Harrison ecoa: beware of greedy leaders, they take you where you should not go. E Maybrook vai exatamente para lá — guiada não por líderes carismáticos, mas pela própria fome de certezas fáceis.

O filme é construído como um mosaico quebrado: pais à beira do colapso, professores acuados, autoridades agarradas à liturgia do controle como quem segura fumaça. Cada pedaço da narrativa funciona como uma estrofe sombria, revelando que o medo, uma vez instalado, exige culpados. A professora Justine — vivida com frágil dignidade por Julia Garner — é transformada no alvo ideal. Não há provas, apenas conveniência. Mais fácil acusá-la do que encarar a possibilidade insuportável de que o perigo é difuso, talvez onipresente, talvez dentro de cada um.  E é curioso como, fora da tela, a lógica se inverte: às vezes é o excesso de provas — empilhadas, distorcidas, manipuladas — que serve para cegar, seja pela ignorância de uns ou pela má fé calculada de outros.


Há, porém, um requinte de ironia na forma como o filme orquestra o terror. Ele não se satisfaz com choques visuais ou brutalidade explícita. Prefere sussurrar, como a canção de Harrison, que desliza suave até que o ouvinte perceba estar sendo advertido. O clímax mistura grotesco e riso nervoso: as crianças, dominadas por uma maldição absurda, rompem o feitiço numa explosão que soa tanto libertadora quanto ridícula. É o equivalente cinematográfico de perceber que a melodia doce sempre foi uma máscara para um alerta incômodo.

E é justamente nesse momento de delírio que o filme revela sua força: quando se permite ‘pirar’, abandonar a contenção e abraçar o absurdo. Um gesto cada vez mais raro hoje em dia — sobretudo se comparado ao cinemão americano de gosto médio, que costuma preferir a segurança das fórmulas ao risco da vertigem.”

No fundo, A Hora do Mal não fala apenas de desaparecimentos, mas da tentação de abraçar explicações fáceis, da pressa em escolher inimigos visíveis. É sobre a vulnerabilidade de qualquer comunidade quando se deixa guiar por sombras em vez de encarar a própria escuridão. O aviso de Harrison ressoa: cuidado com o que parece inofensivo, cuidado com as distrações que roubam de você mesmo. Talvez seja esse o ponto mais cruel — e mais próximo de nós. Pois, tal como em Maybrook (que poderia ser também a pequena Bariri e tantas outras cidadezinhas ao redor do mundo), também por aqui muitas vezes preferimos acreditar em culpados inventados a enfrentar o fato de que a noite não está lá fora, mas dentro da sala, dentro da casa, dentro da própria gente.

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