Páginas

PESQUISE NESTE BLOG

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

SAUDADES DA MINHA LEMBRANÇA - O ILUMINADO

Saudades da minha lembrança foi o titulo de um livro que reune, no começo do século algumas crônicas que escrevia para jornais. Adoro esse titulo que algum tempo depois o cantor Nervoso deu por um zeigeist absurdo para o seu primeiro disco solo (Alias tem uma entrevista que fiz com o cantor nesse link)

Hoje não usaria mais como titulo do livro para nao parecer que roubei o titulo,  mas sem pudor de usar aqui no blog nessa serie de artigos onde pretendo rever alguns  textos que hoje acho bem amadores mas de alguma forma as ideias permanecem. Pretendo reescreve-los, tentando deixar mais contemporâneo e ao mesmo tempo que mudo o ponto de vista sobre algumas coisas. No final acrescento o texto original

Indice

Saudades - uma introdução  

Saudades 1 - Homem Aranha

Stephen King odeia O Iluminado. Mas convenhamos: o sujeito que teve a pachorra de dirigir Comboio do Terror não tem exatamente o passe vitalício para sair distribuindo juízos estéticos. O que ele sente, no fundo, é ciúme. Ciúme daquele tipo rancoroso, que nasce quando alguém pega sua ideia, passa um verniz de gênio em cima, e de repente o mundo inteiro esquece que você foi o pai da criança. Kubrick não apenas assinou uma das melhores adaptação de um livro de King: ele fez algo ainda mais cruel — transformou um material apenas razoável em uma obra-prima. E isso não era novidade para ele: já tinha feito com Laranja Mecânica e 2001. (Tá, em Lolita escorregou, mas até Beethoven deve ter errado alguma nota).

Pior para King: O Iluminado não é um filme de Stephen King. É um filme de Stanley Kubrick. E King, que adora ver seu nome grudadinho em cada cartaz, deve ter se sentido como penetra em baile de gala — a festa era dele, mas a orquestra tocava outra música. (Aliás, se até O Passageiro do Futuro, que tinha mais a ver com um videogame ruim do que com King, estampava seu nome, imagina a bronca quando percebeu que Kubrick tinha sequestrado sua obra e não ia devolvê-la).

Kubrick ainda fez um favor imenso: deu dignidade literária a um livro de Stephen King. Antes disso, só De Palma tinha conseguido, com Carrie. Até prefiro o De Palma na comparação, embora seja vitória por pontos, não por nocaute.

Minha primeira experiência com O Iluminado foi aos 14 anos, na casa do Camilo. E aí, Camilo, lembra? Não passamos nem da subida da montanha — a fita parou por ali mesmo, como se o Overlook tivesse mandado um aviso. Uns dois anos depois, enfim, encarei o filme inteiro. Foi de madrugada, na casa de outro amigo, o Daniel (sem você Camilo, perdeu a chance). Estávamos em turma, e o medo foi coletivo. A imagem do pequeno Danny (o do filme, não o dono da casa) deslizando de triciclo pelos corredores ficou martelando na cabeça. E ainda tinha a mulher da banheira, uma Shelley Duvall em frangalhos e um Jack Nicholson em estado de graça — ou de loucura, vai saber.

Nessa época, o Edson, colega de colégio, tinha o livro. Peguei emprestado. Gostei até: tinha aqueles detalhes de passado amaldiçoado do Hotel que o filme ignora. Para um adolescente, não era dos piores. Até hoje, aliás, considero O Iluminado um dos melhores de King. Logo depois comprei Jogo Perigoso — e desisti nas primeiras páginas. Chato demais. King, para nós, era uma obsessão adolescente mais pelo cinema do que pelos livros. Só que os filmes, na maioria, eram ruins. Quando um grande diretor assumia o volante, aí sim: o material medíocre virava clássico.

Tenho para mim que grandes romances quase sempre rendem filmes medianos. Já livros medianos podem render grandes filmes. É o caso de Tubarão, que Spielberg transformou em um épico de suspense aquático, ou dos muitos de Hitchcock que saíram de fontes duvidosas. Até 2001, que nem era livro direito, virou monumento. Mas dificilmente veremos um filme que supere Guerra e Paz, Anna Karenina ou Dom Quixote. Já Stephen King, em geral, tem livros melhores do que os filmes. Mas nesse caso pela incompetência dos Diretores.

Fui conhecer melhor o King escritor mais tarde, na faculdade. Morava numa república com um boliviano, o Gelafito Gutierrez, fissurado em King — comprava tudo. Foi ali que li CarrieAs Quatro EstaçõesCujo… Bons livros mas fui me cansando. King escreve bem, mas nunca sabe parar: é prolixo até dizer chega. Prefiro hoje um filme ruim baseado nele a gastar tempo em um calhamaço. Tentei ler Mr. Mercedes: larguei no primeiro da trilogia. Muito ruim. Aqui acompanhamos o sociopata de frente, o que dá a impressão de um grande vilão, mas é mais um da galeria de King . Acho engraçado como em todos os seus livros que li sempre existe um psicopata. Mesmo um simples estudante do Maine num filme como Conta Comigo tem sua psicopatia elevada a níveis alarmantes. Novembro de 63 é mais palatável, mas tambem abandonei na metade. O homem não tem dó do leitor. Muitos personagens clichês e a ja citada prolixidade de sempre. 

Voltamos para o Iluminado. Em 1997, King resolveu se vingar. Produziu uma refilmagem para a TV onde assumiu o roteiro. O resultado? Uma catástrofe. Não daquela categoria divertida, que envelhece bem e ganha charme trash. Não. Foi ruim no pior sentido possível: burocrático, insosso, sem alma. Se provou alguma coisa, foi apenas que Kubrick era imbatível — e que certas histórias, depois de erguidas ao patamar de obra-prima, não toleram ser rebaixadas sem cobrar um preço constrangedor.

Dizem que há um livro e até uma continuação para o cinema. Mas, honestamente, é melhor deixar os mortos descansarem em paz no Overlook. Até porque, se levantarem de novo, corremos o risco de descobrir que Comboio do Terror foi só um aquecimento.

 



______________________________________________________________________________________________________

A seguir o texto original, publicado na época em jornais locais 

______________________________________________________________________________________________________

 





S

tephen King odeia, mas o sujeito que ousou dirigir “Comboio do Terror” não tem moral para falar desta que é sem dúvida nenhuma a melhor adaptação de um livro seu. Na verdade deve ser ciúmes porque ficou muito, mas muito melhor que o livro em que foi baseado, algo não raro na obra de Kubrick que já havia feito o mesmo com “Laranja Mecânica” e “2001” (“Lolita” infelizmente fica fora dessa). Também pesa o fato do filme ser mais relacionado com o Kubrick do que com ele que sempre leva seu nome ao título, até mesmo aqueles que pouco tem a ver com sua obra (Vide o “Passageiro do Futuro”).

 

Kubrick conseguiu ainda uma proeza. Deu dignidade a um livro de Stephen King. Claro que já existia outra boa adaptação, Carrie, e até hoje considero duas das maiores adaptações de King, com uma pequena vantagem de Carrie (De Palma já diz tudo)

 

A primeira vez que tive contato com o  filme eu tinha uns 14 anos, na casa de um amigo meu (e aí , Camilo ?). Não passamos da subida na montanha. Uns dois anos depois finalmente consegui assistir. Estávamos em uma boa turma , de madrugada na casa de outro amigo, o Daniel (O Camilo não estava). E o filme meteu medo, mesmo em grupo. Aquelas imagens do Danny (o do filme, não o dono da casa) andando de triciclo pelos corredores do Overlock não me saia da cabeça. E ainda por cima tinha a cena da banheira, uma Shelley Duvall desesperada e um Jack Nicholson irrepreensível. 

 

Em 1997 Stephen King concebeu o roteiro para um refilmagem televisiva. Não é das piores mas pelo menos ele provou algo que todos já sabiam. O de Stanley Kubrick é imbatível.

 

 

MONSTROS


O “cancelador” é a versão progressista do “cidadão de bem”. Ambos acreditam na sua própria régua moral e não hesitam em usá-la para medir o mundo.

Uns anos atrás, por exemplo, fui convidado pelo jornal O Globo para uma entrevista sobre cancelamentos. O tema: a banda Apanhador Só. Até então eu nem sabia que a banda tinha sido “cancelada”. Chegaram até mim porque eu havia escrito algumas coisas sobre eles. Falei, claro, contra os cancelamentos — e também contra o linchamento constante de Woody Allen. Quando a matéria saiu, nada do que eu disse apareceu. Pior: o texto era tendencioso e só acusava a banda e outros artistas. Guardadas as devidas proporções, ficou um sentimento de cancelamento aqui.

Em outra ocasião, participei de uma entrevista para um trabalho acadêmico sobre cinema nacional. Defendi os tempos da Embrafilme, quando o cinema brasileiro ainda conversava com seu público, mesmo entre tropeços. Hoje, a falta de pressão por público transformou parte da produção em filmes voltados apenas para a própria bolha, sem nenhum esforço em falar com quem está de fora. Não sei se minhas falas entraram no trabalho, até porque nunca teve um retorno — e, sinceramente, não me surpreenderia se tivessem sido cortadas.

Charlie Gordon, personagem de Flores para Algernon, dizia que “as pessoas se ressentem quando alguém lhes mostra que conhecem apenas a superfície de problemas complexos”. Não vou me comparar a Gordon, não chego a tanto, mas há algo nessa frase que explica muito do jogo de versões em que me vi.

A formação de um cinéfilo

Meu mergulho no cinema começou ainda no cursinho, antes da faculdade. Não havia internet — era preciso garimpar VHS em locadoras da cidade. O acervo era limitado, mas o que havia já bastava para descobertas. Nas viagens a Bauru, onde moravam tios e avós, aproveitava para vasculhar locadoras maiores. Foi lá, por exemplo, que encontrei Serpico, que minha cidade não tinha, mas que já estava no meu radar.

O lado ruim de conhecer tantos clássicos aos 20 anos era o contraste: quase tudo o que estava sendo lançado parecia menor. Pulp Fiction, quando estreou, me empolgou. Mas em retrospecto percebo que subestimei muito do cinema comercial daquela época, sem entender que um filme não precisa ser perfeito para ter valor. A maturidade, afinal, ensina a gostar das imperfeições.

Boa parte da sanha “canceladora” vem das novas gerações — gente inteligente, geralmente em idade escolar ou universitária, mas ainda sem bagagem cultural mais ampla. Isso faz diferença: sem repertório, a análise se resume a julgamentos apressados. É natural ver jovens cinéfilos fascinados por Christopher Nolan. E faz sentido: Nolan é competente, técnico, atento a detalhes no blockbuster americano. Complica um pouco as coisas, o que dá um certo ar de mistério — perfeito para essa idade. Mesmo que, às vezes, essa complexidade seja mais perfume que essência.

Quando criança e adolescente, diretores não eram a minha preocupação. O interesse era pelo filme em si, sobretudo os blockbusters. Diretores eram Spielberg e, vá lá, Hitchcock. Eu gostava dos thrillers de Brian De Palma, mas nem sabia que Vestida para MatarDublê de Corpo e Os Intocáveis eram do mesmo diretor. Só fui ligar os pontos já perto da faculdade.

Woody Allen, Polanski e a régua moral

Entre os primeiros diretores que me marcaram estavam Scorsese, Coppola, Kubrick e, claro, Woody Allen. Minha primeira lembrança dele vem da infância: nas chamadas de fim de ano da Globo, aparecia Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo. Aos 12 ou 13 anos, o título bastava para chamar a atenção. Vi no sábado em que passou, sem saber ainda quem era o diretor. Outras chamadas chamavam atenção pelo nome: Noivo Neurótico, Noiva Nervosa ou Taxi Driver – Motorista de Táxi. Alguns eu só fui assistir depois.

Na adolescência e depois na faculdade, mergulhei em Allen: A Rosa Púrpura do CairoA Era do RádioTiros na BroadwayPoderosa AfroditeTodos Dizem Eu Te Amo, estes três últimos eram os que estavam em evidencia no momento. Lembro de conversas no ônibus para São Carlos, onde um colega criticava moralisticamente Allen por namorar a enteada. Curiosamente, esse mesmo colega hoje é casado com uma mulher trinta anos mais jovem que ele. São ironias que só a vida escreve.

Sobre Allen, minha posição é clara: acho falsas as acusações contra ele no caso da filha adotiva. Não que seja santo — traiu a esposa com Soon-Yi, que na época era menor de idade segundo a lei, mas não uma criança. Desde então estão juntos. Quanto à filha do casal, as acusações sempre me pareceram forçadas, fruto de uma disputa marcada pelo descontrole de Mia Farrow. Não esqueçamos: dois filhos dela se suicidaram.

De qualquer forma, a carreira de Allen seguiu forte durante décadas. Atores e atrizes disputavam papéis em seus filmes. Mia Farrow, vale dizer, não era coadjuvante nessa disputa: tinha prestígio e carreira própria. Até 2016, Allen manteve a média de um filme por ano. Só com o movimento #MeToo os ataques ficaram mais sistemáticos, a ponto de comprometer sua produção. Mesmo assim, sua filmografia já estava recheada de títulos icônicos.

Roman Polanski é outro caso. Ao contrário de Allen, aqui não há nebulosa: há crime. Condenado por estupro de menor, vive foragido dos Estados Unidos desde os anos 1970. Ainda assim, seguiu carreira consagrada, com direito à Palma de Ouro em Cannes e Oscar de melhor diretor. Vale a leitura do livro da vítima, Samantha Geimer: A Menina – Uma Vida à Sombra de Roman Polanski. É impactante e nada panfletário.

O dilema do fã

Como cancelar diretores com obras desse porte? ManhattanNoivo Neurótico, Noiva NervosaA Era do RádioCrimes e PecadosMatch Point — todos de Allen. Faca na ÁguaChinatownO Bebê de RosemaryRepulsa ao SexoO Pianista— de Polanski. Não se trata de dizer que filmes ou livros são “obrigatórios”, mas de reconhecer que quem se interessa de verdade por cinema não pode simplesmente ignorar essas obras.

Esse dilema é justamente o tema de Monstros – O Dilema do Fã, da jornalista Claire Dederer. O livro é delicioso: levanta perguntas difíceis, joga com a ironia, leva o leitor a uma conclusão para depois puxar o tapete. É leitura recomendada sobretudo para quem acha que já tem opinião formada — seja por excesso de certezas, seja por pura falta de repertório.

No fim, tudo volta ao começo: o “cidadão de bem” e o “cancelador” são faces opostas do mesmo impulso — a certeza de que sua régua moral deve ser aplicada ao mundo. Um, com a Bíblia debaixo do braço; outro, com hashtags na ponta dos dedos. Ambos se arrogam o direito de decidir quem merece existir em praça pública e quem deve ser jogado ao ostracismo. Mas a arte, por sorte, insiste em sobreviver a esses tribunais improvisados. Filmes, livros e músicas continuam ali, esperando quem queira se arriscar a encarar suas ambiguidades. O resto é barulho de época — tão passageiro quanto qualquer moda moral.

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

O Iluminado: as duas versões de um mesmo labirinto


Este artigo é uma versão reformulada de um texto publicado alguns anos atrás. O original, mais fragmentado e acompanhado de fotos quadro a quadro, comentava cena por cena as diferenças entre as duas versões de O Iluminado. Para quem quiser mergulhar nessa leitura mais visual — com imagens que ajudam a comparar cada acréscimo e supressão —, ele continua disponível neste [link].


 Poucos sabem que O Iluminado tem diferenças substanciais entre a versão lançada nos Estados Unidos e a exibida no resto do mundo. A cópia internacional — aquela a que estamos acostumados — dura 119 minutos. Já a americana, aprovada por Stanley Kubrick, estende-se por cerca de 144 minutos, com acréscimo de aproximadamente 25 minutos de material. Não se trata de uma “versão do diretor” — ambas receberam seu aval —, mas de duas estratégias distintas para calibrar o olhar do público: a americana, mais longa e explicativa; a internacional, mais seca e enigmática.

Os acréscimos

Logo no início, após a apresentação de Wendy e Danny, a mãe conforta o filho dizendo que a temporada no Hotel Overlook será divertida e que ele não deve ter medo. Paralelamente, vemos Jack sendo apresentado a Bill Watson pelo gerente Ullman. Em seguida, numa conversa estendida, Jack menciona que foi professor, que agora escreve um livro e que a temporada isolada seria propícia ao trabalho. Ullman também explica o fechamento do hotel no inverno — informação que, na versão curta, o espectador só descobre depois.

Após a primeira visão de Danny no banheiro, surge uma cena inédita: uma médica examina o garoto, pergunta sobre o desmaio e ouve dele a primeira menção ao amigo imaginário Tony, ainda envolta em silêncio. Na sequência, a médica conforta Wendy e extrai a confissão de que Jack, bêbado, já deslocara o braço de Danny. A revelação sela o trauma familiar e introduz o alcoolismo de Jack muito antes do que conhecemos.

Outros momentos se alongam: Ullman mostra o salão Colorado e Wendy comenta os desenhos indígenas, lembrando o passado glorioso do hotel que já recebeu presidentes e estrelas de cinema. Ao apresentar o quarto, Jack apalpa a cama e inspeciona o banheiro. Do lado de fora, Ullman alerta que o labirinto exige cautela. Mais adiante, ao mostrar o salão de festas, explica que cabem 300 pessoas e que o estoque de bebidas fora retirado no inverno. Jack, em resposta, diz que não há problema, afinal “eles não bebem”. É também nesse ponto que conhecemos Suzie trazendo Danny da sala de jogos — enquanto na versão curta, Hallorann simplesmente aparece direto na cozinha.

A relação entre Hallorann e a família também ganha mais detalhes. Ele faz um comentário curioso sobre o nome Winnifred, apelido de Wendy. E, durante a conversa com Danny, acrescenta: assim como pessoas, lugares também podem ser iluminados — referência direta ao próprio hotel.

A partir daí, pequenas inserções dão outra cadência: Wendy empurrando um carrinho de café (cena de 20 segundos intercalada com Danny no triciclo), uma conversa no café da manhã em que Jack confessa sentir que já esteve no Overlook, quase um déjà-vu. É um raro instante de intimidade conjugal, pontuado pelo deboche de Wendy, que imita sons fantasmagóricos. Mais adiante, quando Jack joga a bolinha contra a parede, a versão longa inclui apenas um novo plano de costas — detalhe de oito segundos.

Outros acréscimos surgem em momentos cruciais: Wendy assiste à TV na cozinha enquanto o noticiário fala do desaparecimento de Susan Roberts e da tempestade que se aproxima. Uma cena mostra Hallorann dentro do avião conversando com uma aeromoça, depois o pouso, a garagem Durkin e a ligação para o amigo Larry pedindo o carro de neve — todo um bloco de mais de dois minutos eliminado da versão curta, que resume tudo em dois cortes.

O arco de Danny/Tony também ganha sublinhados: antes de entrar no quarto onde encontra Jack, ele pede à mãe para buscar seu carro de bombeiros; Wendy o alerta para não incomodar o pai. Quando Wendy assiste Papa-Léguas com Danny já tomado por Tony, pega um taco de beisebol antes de sair — detalhe que prepara a sequência seguinte. Há também a cena em que Wendy caminha aflita pelo quarto, falando sozinha sobre fugir com o carro de neve, até ser interrompida por Danny/“Tony” repetindo o “Redrum”. Na continuação, Danny aparece catatônico, afirmando que “Danny não está mais ali”.

Pequenas alterações prosseguem: Jack retira mais peças do rádio, vemos uma cartela de horário “8am”, e Hallorann tentando contato novamente. E, antes do clímax, uma sequência de Wendy perambulando pelo hotel, onde encontra o salão coberto de teias de aranha e cheio de esqueletos — uma visão fantasmagórica e literal, jamais presente na versão internacional.

O epílogo perdido

Um dado curioso: após as exibições-teste, Kubrick ainda removeu uma cena de cerca de dois minutos que aparecia logo após a imagem de Jack congelado na neve. Nela, Wendy e Danny eram mostrados em segurança, num epílogo quase conciliador. Essa cena foi definitivamente suprimida e permanece perdida — talvez um fantasma condenado a nunca mais assombrar a película.

O paradoxo das duas versões

Essas diferenças não são mero detalhe de colecionador: elas escancaram uma contradição. Como conciliar o rigor minimalista de Kubrick, que perseguia cada corte com a obsessão de um cirurgião, com a existência de uma versão mais redundante, quase didática? A resposta talvez esteja no choque entre arte e mercado, entre o gesto autoral e a necessidade de dialogar com públicos diferentes.

Outros diretores também revisitaram suas próprias obras, às vezes por ego, outras para buscar novos caminhos. Sergio Leone sofreu com Era uma Vez na América: nos Estados Unidos, o filme foi lançado em uma versão de 139 minutos, mutilada e remontada em ordem cronológica, que arruinou sua recepção. Só anos depois os americanos puderam ver a montagem original de 229 minutos, já cultuada na Europa, e reconhecer o épico de Leone em sua forma concebida. Coppola encurtou Apocalypse Now sob pressão e, décadas depois, devolveu-lhe a exuberância com o Redux. Ridley Scott, com Blade Runner, já cultuado, reafirmou seu status quando lançou a versão sem narração, mais ambígua e próxima do que imaginava. Kubrick, em O Iluminado, foi além: já na época da estreia permitiu duas versões distintas, ajustando o filme conforme o público a que se destinava. Richard Donner só viu seu Superman IIganhar forma real em 2006, quando o chamado Donner Cut veio à tona. E David Fincher, em contraste, recusou-se a endossar a versão estendida de Alien 3, preferindo manter distância de um projeto que considerava irremediavelmente comprometido.

Mas Kubrick é um caso singular. Ele não foi vítima de estúdio, como Leone ou Scott: aprovou pessoalmente ambas as versões. O que se revela é sua ambiguidade estratégica. Para o público internacional, ofereceu a concisão e o mistério. Para o público americano, a narrativa “mastigada”, com explicações adicionais e diálogos redundantes. Uma concessão calculada, talvez.

No fundo, O Iluminado confirma que mesmo Kubrick, arauto da perfeição formal, sabia jogar o jogo da indústria. Seu cinema continua sendo um labirinto — não apenas no espaço, mas também no tempo. Um filme que existe em duas durações, dois ritmos, dois modos de encarar o espectador. E é justamente aí que reside sua força: O Iluminado não é apenas sobre um hotel assombrado, mas sobre o próprio cinema como construção instável, sempre à beira de se perder em corredores demais.

Kubrick, ao contrário de tantos, nos deixa um paradoxo: o mesmo diretor que acreditava que o excesso de explicação matava a atmosfera, também legou uma versão que insiste em explicar. Talvez a lição seja essa: nenhum corte, por mais rigoroso, consegue domesticar o enigma. O Overlook continuará nos encarando, ambíguo e inacabado, como se fosse a própria metáfora do cinema moderno — uma arte que, entre silêncio e redundância, nunca para de assombrar.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

ENGLISH TEACHER


Vinda de Leeds, cidade com uma tradição musical robusta que vai do pós-punk político do Gang of Four ao gótico teatral do The Sisters of Mercy, passando pelo synthpop ousado do Soft Cell, o pop de estádio dos Kaiser Chiefs e a anarquia folk do The Mekons, a banda English Teacher chega com um cartão de visita mais complexo do que o habitual no circuito indie britânico.

Formada por Lily Fontaine (vocais e guitarra), Douglas Frost (bateria), Nicholas Eden (baixo) e Lewis Whiting(guitarra), o grupo tem chamado atenção não só pelo som, mas pelo conteúdo — e pelo cuidado em não parecer mais um clone do pós-punk 2.0.

O diferencial é claro: letras afiadas, literárias e politizadas. Fontaine escreve com precisão e intenção. Os temas vão de classe e raça a autoimagem, e sempre com uma ironia que funciona — diferente de certas bandas que confundem cinismo com profundidade. Em músicas como “Polyawkward” e “Song About Love”, ela transforma constrangimentos cotidianos em comentários sociais sutis (ou nem tanto), sem perder o tom emocional.

O álbum de estreia, This Could Be Texas (2024), marca esse olhar deslocado: geograficamente, simbolicamente, sonoramente. Não há pressa em agradar, tampouco reverência excessiva aos heróis do passado. Quando soa mais melódico, lembra Radiohead da fase The Bends. Quando endurece, evoca o Sonic Youth mais acessível. Tudo isso sem se perder na fórmula “baixo + fala arrastada + pose”, repetida ad nauseam por colegas de cena como Dry Cleaning e Squid.

O vocal de Fontaine é outro ponto forte: expressivo, instável no melhor sentido. Ela alterna falas secas e canto melódico sem soar forçada, algo que muitas bandas "faladas" ainda não aprenderam.

No palco, essa identidade se confirmou no show da banda no C6 Fest, em São Paulo, no dia 25 de maio de 2025. Em meio a uma tarde abafada e a um público dividido entre fãs de Wilco e adolescentes de cabelos coloridos deslumbradas pelo glamour do Last Dinner Party, o English Teacher entrou em cena com o que parecia uma missão ingrata: convencer os desavisados. E convenceu. Sem figurinos, sem coreografia, sem grandes discursos. Apenas música, presença de palco e uma química evidente entre os integrantes.

Fontaine  entrega carisma e intensidade. Uma postura meiga, mas firme, que não apagava o magnetismo. No show do C6 Fest, Lily Fontaine entrou no palco vestindo um conjunto de moletom com a blusa aberta que deixava à mostra um top. Apesar da peça ser bastante ajustada, ela transmitia uma aura meiga, longe de parecer agressivamente vulgar. Conforme o show avançava, Fontaine tirou a blusa, um gesto que acrescentou presença e intensidade à performance. Essa mistura de delicadeza e confiança revelou uma artista que domina tanto a música quanto a construção do próprio visual no palco.

Ao meu lado, um cara  — claramente sem intenção machista, ao contrario até — comentou, meio envergonhado, como pode ser complicado para ele como Homem não se perder em pensamentos. Achei engraçado a própria negação. O que o Mundo está fazendo às pessoas !

A banda como um todo foi precisa: Whiting criou camadas sutis com sua guitarra, Eden segurou a base com segurança, Frost deu peso e variação à bateria, e a presença da violoncelista Blossom Caldarone trouxe um refinamento às músicas mais suaves.

A performance foi direta, bem executada e — talvez o mais importante — sem afetação. Um show que soou maior do que parecia, e mais íntimo do que se esperava.

Entre os destaques, a faixa “You Blister My Paint” (video acima) impressionou por fugir do padrão sonoro do álbum. Em vez das guitarras angulosas e andamentos quebrados, a música adota uma abordagem mais etérea, quase dream pop. A voz de Fontaine aparece com leve autotune, flutuando sobre um instrumental contido e emotivo. É um momento de vulnerabilidade que mostra uma faceta mais introspectiva da banda — e que funciona sem esforço.

Ainda há o que evoluir: algumas faixas do disco parecem mais rascunho do que obra acabada. Mas ao contrário de tantas bandas que entregam tudo no primeiro álbum e somem, o English Teacher parece ter fôlego — e ideias — para continuar relevante. E se o nome da banda sugere uma certa seriedade, o que se vê é justamente o oposto do didatismo: há curiosidade, arestas e uma recusa saudável em ser óbvio.

Nem sempre a crítica britânica acerta quando elege sua nova aposta. Mas desta vez, vale prestar atenção.

Os Naufragos no Wager

 


Em 1738, o capitão mercante britânico Robert Jenkins apresentou-se ao Parlamento com um espetáculo mórbido: dentro de um frasco, exibia a própria orelha esquerda, decepada, segundo ele, por um oficial espanhol que o acusara de contrabandear açúcar das colônias. O gesto inflamou a opinião pública e forneceu munição política para um novo conflito entre Inglaterra e Espanha, que ficaria conhecido como a Guerra da Orelha de Jenkins.

As autoridades britânicas logo elaboraram um plano grandioso. O alvo era Cartagena, centro vital do império espanhol no Caribe, de onde partiam navios carregados de prata peruana rumo à Europa. Reuniram uma frota de 196 embarcações, o maior ataque anfíbio da história até então. Mas, paralelamente, uma missão menor e mais secreta foi traçada: cinco navios de guerra, com cerca de dois mil homens, cruzariam o Atlântico, contornariam o Cabo Horn e atacariam as possessões espanholas no Pacífico, da América do Sul às Filipinas.

A operação tinha uma fachada patriótica, mas no fundo escondia um propósito quase pirata: capturar o galeão da prata, que duas vezes por ano partia do México para as Filipinas carregado de metais preciosos, trocados por seda e especiarias asiáticas revendidas depois na Europa. Oficialmente, Londres negava patrocinar saques; na prática, tratava-se de um ato de pura ladroagem sob a bandeira da Coroa.

O desafio, porém, não era apenas a marinha inimiga. Os maiores obstáculos estavam nos mares selvagens do Cabo Horn, território de ventos cortantes, ondas de até trinta metros e icebergs traiçoeiros. Poucos marinheiros britânicos tinham conseguido cruzá-lo. A esperança recaía sobre o verão austral, entre dezembro e fevereiro, quando o mar prometia ser menos hostil — promessa que logo se revelou ilusória, pois foi justamente o contrário que se mostrou.

Mesmo os navios de guerra mais sofisticados eram frágeis diante do oceano. Construídos em carvalho e cânhamo, com mastros e conveses vulneráveis a cupins, fungos e ao famigerado Teredo navalis — molusco capaz de devorar cascos inteiros —, já partiam em desvantagem. Colombo, em sua quarta viagem às Índias Ocidentais, perdera duas embarcações para esses inimigos invisíveis. Muitas vezes, um navio estava condenado antes mesmo de deixar o estaleiro.

Foi nesse contexto que surgiu o Wager. Originalmente mercante, desajeitado e atarracado, fora comprado pela Marinha para reforçar a frota. Conhecido como “excêntrico”, adernava de maneira perigosa. Para corrigir o defeito, o porão foi entulhado com mais de quatrocentas toneladas de ferro-gusa e pedras, numa tentativa desesperada de dar lastro. Em vez dos habituais 120 homens, levou cerca de 250, praticamente o dobro da tripulação para a qual fora projetado.

O excesso de gente, somado às más condições de higiene, favoreceu a explosão da “febre do navio”, hoje identificada como tifo. A bordo do Centurion, embarcação da mesma frota, contavam-se mais de 200 enfermos e pelo menos 25 mortos. Febres altíssimas, delírios e hemorragias ceifavam vidas diariamente. Sem saber que piolhos transmitiam a bactéria, os médicos relatavam homens tentando “pegar objetos no ar” em pleno delírio.

A Marinha ainda enfrentava outra crise: a escassez de marinheiros. As tentativas de recrutamento pacífico falharam, e as autoridades passaram a recorrer a métodos violentos. Gangues armadas percorriam cidades e vilas sequestrando qualquer um que tivesse aparência de marinheiro: camisas xadrez, chapéus redondos, calças largas, dedos manchados de alcatrão. Até mercadores recém-chegados, ansiosos por rever a família, eram arrastados para a frota.

O resultado era uma tripulação caótica. Voluntários traziam consigo varíola e outras doenças; muitos eram ladrões e criminosos recém-saídos da prisão de Newgate. Para completar, o governo enviou recrutas inexperientes e até veteranos inválidos do Royal Hospital de Chelsea — homens velhos, coxos, surdos, cegos, alguns com pernas de pau, levados em macas ao embarque. Seus rostos apavorados revelavam o que todos sabiam: estavam sendo enviados para morrer.

Esse caldo humano, misto de forçados, doentes e desesperados, formou a tripulação do Wager. Quando o naufrágio aconteceu, no século XVIII, a tragédia já estava anunciada. O desastre não apenas os confrontou com a fúria da natureza, mas desencadeou uma luta brutal entre os próprios sobreviventes, culminando em um tribunal militar que buscou separar heróis de traidores, disciplina de motim.

É essa odisseia brutal que David Grann recompõe em Os Náufragos do Wager – Uma História de Motim e Assassinato. A partir de diários de bordo, cartas desesperadas, registros de corte marcial e papéis esquecidos no Almirantado, ele constrói uma narrativa que pulsa como romance e fere como testemunho histórico. É mais do que uma crônica de naufrágio: é um estudo sobre até onde a sobrevivência pode corroer valores, sobre como a verdade se fragmenta quando cada voz tenta impor sua versão. Autor de Z – A Cidade Perdida e Assassinos da Lua das Flores, Grann prova novamente ser um mestre em transformar pesquisa meticulosa em literatura irresistível.

Entre os sobreviventes estava o jovem John Byron, aspirante que escapou do motim apenas para, décadas depois, entrar para a história como avô do poeta Lord Byron. Um detalhe biográfico tão improvável que parece invenção — e no entanto é realidade.

A leitura de Os Náufragos do Wager inevitavelmente evoca O Senhor das Moscas, de William Golding: homens isolados, confrontados pela escassez e pelo medo, que abandonam qualquer verniz de civilização e se entregam ao instinto mais brutal. No caso do Wager, não eram crianças em uma ilha, mas marinheiros endurecidos que, ainda assim, sucumbiram à mesma lógica de facções, intrigas e traições. A diferença é que aqui a disputa não se limitava à sobrevivência física, mas também à narrativa: cada sobrevivente inventava sua versão, espalhava boatos, distorcia fatos para salvar a própria pele. Um espelho desconfortável do nosso presente, em que a desinformação viaja mais rápido que qualquer navio, e a verdade, fragmentada, torna-se apenas mais uma arma na luta pelo poder

“Um motim completo era diferente de outras revoltas; ele ocorria dentro das próprias forças estabelecidas pelo Estado para impor a ordem — as forças armadas — e por isso representava uma ameaça tão grande às autoridades governantes, sendo frequentemente reprimido de maneira brutal. Era também por isso que os motins ocupavam a imaginação do público. O que levava os executores da ordem a cair na desordem? Seriam eles grandes bandidos? Ou havia algo de podre no cerne do próprio sistema, algo que impregnava a rebelião de uma causa nobre?”

Essa reflexão acerca de uma situação ocorrida do século XVIII, não soa distante de nós. Ainda hoje, quando instituições criadas para preservar a estabilidade se voltam contra ela, a sociedade se vê diante da mesma perplexidade: quem deveria conter o caos acaba encarnando-o. Nesses momentos, as linhas entre disciplina e rebelião se borram, boatos ganham força de fato e versões conflitantes disputam espaço com a própria realidade. E o que poderia ser apenas desordem revela-se como sintoma de algo mais profundo — rachaduras no sistema que, em vez de sustentar a ordem, acabam por alimentar a dúvida coletiva.

No fim, é sempre o mesmo mecanismo: o medo como instrumento de controle, a paranoia como combustível para as massas. Faz-se acreditar em forças invisíveis, ainda que improváveis, porque nada subjuga mais do que a sensação de um inimigo sempre à espreita — mesmo que ele exista apenas na imaginação.

Não surpreende que Hollywood tenha farejado o potencial dessa história. Martin Scorsese, nome constantemente associado a inúmeros projetos — muitos deles que jamais sairão do papel —, adquiriu os direitos do livro logo após concluir Assassinos da Lua das Flores. Mas este caso parece diferente: a adaptação de Os Náufragos do Wager já tem Leonardo DiCaprio confirmado no elenco, em papel ainda não revelado, e tudo indica que será um dos projetos que de fato ganharão o mar aberto das telas.

Um épico marítimo, uma meditação sobre poder e fraqueza, uma narrativa de aventura histórica que agora cruza o Atlântico rumo ao cinema. Os Náufragos do Wager não é apenas leitura: é experiência. E quem se deixar levar por essa viagem descobrirá que o maior perigo não se escondia nas ondas gigantes ou nos ventos do Cabo Horn — mas no íntimo de cada homem que sobreviveu para contar a própria versão.

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

A HORA DO MAL (Critica)

 

Outro Texto, agora uma critica reduzida ao filme A Hora do Mal, que já teve uma analise anterior sem falar muito sobre a trama (para aqueles que não assistiram ao filme) e que pode ser acessada nesse link.

___________________________



Todo filme escorrega para além das intenções do diretor. Mesmo a comédia mais banal pode, sem querer, se tornar documento de uma época, revelando contradições que ninguém planejou filmar. A Hora do Mal parece saber disso e abraçar o risco. Assisti a ele com a sensação incômoda de que a qualquer momento a tela se inclinaria para me sussurrar uma verdade já conhecida, mas sempre empurrada para debaixo do tapete — como em Beware of Darkness, de George Harrison, onde a suavidade melódica encobre versos sobre falsidade e manipulação. Aqui, a máscara é o terror: uma fábula de ilusões coletivas, de medos que crescem quando ninguém ousa nomeá-los.

Tudo começa às 2h17 da madrugada, quando 17 crianças desaparecem sem deixar vestígio. Nem um vidro quebrado, nem um ruído — apenas o vazio, como a “escuridão” de que fala Harrison, aquela que se instala justamente quando tudo parece em ordem. A cidade de Maybrook, com seus gramados impecáveis e sua fachada de normalidade, começa a rachar. O mal não se anuncia com clarins nem com chifres; infiltra-se pelos gestos, pelas insinuações, pelos olhares que preferem acusar a compreender. O verso de Harrison ecoa: beware of greedy leaders, they take you where you should not go. E Maybrook vai exatamente para lá — guiada não por líderes carismáticos, mas pela própria fome de certezas fáceis.

O filme é construído como um mosaico quebrado: pais à beira do colapso, professores acuados, autoridades agarradas à liturgia do controle como quem segura fumaça. Cada pedaço da narrativa funciona como uma estrofe sombria, revelando que o medo, uma vez instalado, exige culpados. A professora Justine — vivida com frágil dignidade por Julia Garner — é transformada no alvo ideal. Não há provas, apenas conveniência. Mais fácil acusá-la do que encarar a possibilidade insuportável de que o perigo é difuso, talvez onipresente, talvez dentro de cada um.  E é curioso como, fora da tela, a lógica se inverte: às vezes é o excesso de provas — empilhadas, distorcidas, manipuladas — que serve para cegar, seja pela ignorância de uns ou pela má fé calculada de outros.


Há, porém, um requinte de ironia na forma como o filme orquestra o terror. Ele não se satisfaz com choques visuais ou brutalidade explícita. Prefere sussurrar, como a canção de Harrison, que desliza suave até que o ouvinte perceba estar sendo advertido. O clímax mistura grotesco e riso nervoso: as crianças, dominadas por uma maldição absurda, rompem o feitiço numa explosão que soa tanto libertadora quanto ridícula. É o equivalente cinematográfico de perceber que a melodia doce sempre foi uma máscara para um alerta incômodo.

E é justamente nesse momento de delírio que o filme revela sua força: quando se permite ‘pirar’, abandonar a contenção e abraçar o absurdo. Um gesto cada vez mais raro hoje em dia — sobretudo se comparado ao cinemão americano de gosto médio, que costuma preferir a segurança das fórmulas ao risco da vertigem.”

No fundo, A Hora do Mal não fala apenas de desaparecimentos, mas da tentação de abraçar explicações fáceis, da pressa em escolher inimigos visíveis. É sobre a vulnerabilidade de qualquer comunidade quando se deixa guiar por sombras em vez de encarar a própria escuridão. O aviso de Harrison ressoa: cuidado com o que parece inofensivo, cuidado com as distrações que roubam de você mesmo. Talvez seja esse o ponto mais cruel — e mais próximo de nós. Pois, tal como em Maybrook (que poderia ser também a pequena Bariri e tantas outras cidadezinhas ao redor do mundo), também por aqui muitas vezes preferimos acreditar em culpados inventados a enfrentar o fato de que a noite não está lá fora, mas dentro da sala, dentro da casa, dentro da própria gente.

domingo, 7 de setembro de 2025

Gibi e Infância – lembranças em pequenos quadros sequencias gravados na mente


Eu não me lembro do primeiro gibi que li. Cresci cercado de livros e revistas em quadrinhos, tanto na casa da minha avó — onde as estantes transbordavam — quanto graças a um primo mais velho, dono de pilhas e pilhas de gibis. O primeiro contato se perdeu em algum ponto da infância, apagado pela sobreposição de novas experiências. Mas a memória, traiçoeira, funciona como tatuagem: não guarda a história inteira, mas imprime imagens fixas, estáticas, que permanecem para sempre.

Foi com gibis que aprendi a ler. Eu passava as tardes folheando, acompanhando os desenhos e tentando adivinhar as histórias sem entender direito as palavras. Às vezes conseguia, mas sempre faltava algo. Minhas tias eram professoras, e uma delas, que trabalhava em casa, me ajudou a juntar as primeiras sílabas. Os quadrinhos viraram meu alfabeto paralelo. Quando cheguei ao pré, aos seis anos — bem mais tarde do que hoje —, eu já lia. Por isso, achava maçante ter que ficar repetindo o bê-á-bá.

Uma das imagens que não me abandonam é a de um ônibus de plástico branco. Eu recortava personagens dos gibis e colava nos vidros como se fossem passageiros. Lembro especialmente do Mickey ali dentro. Hoje me incomoda pensar no gibi que destruí — não sei qual era, certamente acabou no lixo em algum ponto entre 1980 e 1981. A data é precisa porque foram os anos em que morei naquela casa.

De 1982 guardo duas memórias vivas. Não foram os primeiros gibis que tive, mas os primeiros que me marcaram, e que ainda conservo. Desde que nasci morei na zona rural, na fazenda do meu avô. Em 1980, mudamos para a cidade, mas Bariri, naquele tempo, abrigava a indústria de óleos Resegue — que poluía bastante. Minha bronquite piorou, e por orientação médica voltamos para o campo, onde o ar era mais limpo. Nesse meio-tempo, um tio recém-casado ocupava a casa onde cresci, e minha família foi parar num rancho à beira do Tietê. Devem ter sido só alguns meses, mas aos sete anos o tempo corre devagar — e parecia uma eternidade.

Foi nesse período que meu pai chegou da cidade trazendo um gibi da Pantera Cor-de-Rosa. Lembro de estar sentado em cima da mesa da cozinha, encostado na parede, e de como aquele gibi foi o início da minha mania de guardar tudo. Ele está até hoje na coleção, já bem surrado. 

Dessa mesma época, lembro de um gibi de tiras em formato horizontal chamado Mônica e sua Turma. No rancho onde morei havia apenas um quarto forrado de laje e cimento; o resto da casa era cru, sem forro. Tenho guardada a imagem estática de estar nesse quarto, ao lado de um beliche, que servia como escada improvisada para alcançar o espaço entre o forro e o telhado. Ali, deitado, eu lia o gibi e o coloria com lápis de cor, já que era em preto e branco.

Na verdade, não tenho certeza se foi exatamente ali que o colori. A lembrança de estar naquele espaço é nítida, mas a parte do colorir pode ser apenas um truque da memória — afinal, as primeiras páginas do gibi estão hoje todas pintadas. E, por honestidade, é preciso dizer: não havia nenhum Michelangelo em mim. Os rabiscos eram grosseiros, sem respeitar margens ou bordas, e com pouquíssima noção de cor.

Outro marco foi Disney Especial – Os Fantasmas. Nele, Donald se hospedava num hotel mal-assombrado e descobria que os “fantasmas” eram, na verdade, pássaros em gaiolas cobertos com lençóis. Descrevendo assim não faz sentido nenhum, mas quando lia, fazia todo. É o poder das narrativas: nos convencer de sua lógica interna. Só mais tarde percebi que havia adultos que não conseguiam se divertir porque gastavam energia sendo “senhores coerência” — gente que empaca nos detalhes irrelevantes.

Minha infância foi feita de Turma da Mônica, gibis Disney, revistas infantis que ainda guardo. Super-heróis, só na TV. Em 1980 e 1981, na cidade, eu via o Batman todas as manhãs, o desenho do Homem-Aranha e seus amigos, produções animadas da Marvel dos anos 60 pela Hanna-Barbera, e até a série do Quarteto Fantástico. Mas os gibis de heróis eu achava difíceis. Mesmo assim, às vezes um ou outro caía nas mãos.

Foi na casa do mesmo primo que li a primeira HQ do Homem-Aranha: a capa trazia vários rostos e a frase “Uma dessas pessoas vai morrer. Qual?”. Sem querer, li a morte de Gwen Stacy. Eu não sabia quem ela era, só conhecia os personagens dos desenhos. O choque veio do simples fato de alguém morrer num gibi. Depois, colecionando A Teia do Aranha, da Abril, descobri quem era Gwen e passei a esperar pela sua morte com uma estranha ansiedade, já sabendo do destino que a aguardava. Hoje acho engraçado ver tanta gente fazendo “piti” por spoiler de filme.

Naquela fase, só uma coleção de heróis me fisgou: Guerras Secretas. A capa da primeira edição, lotada de personagens, me chamou atenção e comprei. O texto era simples e a história envolvente. Comprei todas. Da edição 4 guardo a lembrança exata: minha mãe empurrava o carrinho no Jau Serve enquanto eu lia a cena em que o Hulk sustenta uma montanha inteira para salvar os outros heróis. Mais uma foto mental guardada.

Foi também na banca que comprei a adaptação de Gremlins, muito antes de ver o filme. Gostava desses quadrinhos que traziam o que eu via na TV: ThundercatsHe-ManShe-RaComandos em AçãoFalcon. Mas meu coração estava na Disney, na Turma da Mônica, na Turma do Arrepio, no Gordo de Ely Barbosa (que quase ninguém lembra hoje), no palhaço Sacarrolha, no Gran Circo Kabum. Lia também Diversões Juvenis, que reunia Hanna-Barbera, O Gordo e o Magro, Faísca e Fumaça. Qualquer hora faço crônicas  individuais sobre algumas dessas publicações.

Outra cena que volta é a do Capitão América com um Aranha gigante na capa. Eu estava no Clube Municipal de Bariri, durante a OEBA — Olimpíadas Escolares de Bariri. O jogo em quadra nem sei de qual esporte era; eu só queria ler. Esporte, aliás, não fazia parte da infância. Até futebol eu odiava — gosto que só fui adquirir no colegial, incentivado por um professor que torcia para o mesmo time que eu.

A memória, como disse no início, funciona como um álbum de fotos truncado. Não traz a narrativa inteira, mas flashes. Vejo-me comprando um Almanaque do Professor Pardal e lendo escondido na classe da quarta série do SESI, até que a professora — a mais severa que tive — o tomou de mim. Com dinheiro do lanche, comprei outro igual. No fim do ano, ao esvaziarem os armários da sala, o gibi apareceu. Voltei para casa com ele, como se a memória tivesse dado uma piscadela cúmplice.

São essas imagens estáticas, fragmentadas, que compõem a infância. Não lembranças inteiras, mas recortes — como páginas soltas de um gibi, espalhadas sobre a mesa. A vida não nos devolve a sequência completa, apenas os quadros que ficaram mais fortes: o ônibus de plástico com o Mickey colado na janela, o Hulk segurando a montanha no supermercado, o Donald cercado de fantasmas-pássaros.

Talvez seja assim que a memória trabalha: como um desenhista distraído, que esquece de ligar uma cena à outra, mas capricha em certos quadros. Não precisamos do enredo completo; bastam os painéis que resistem, impressos em nós como vinhetas. E, de algum modo, é esse mosaico imperfeito que forma a história — nossa história.






 

terça-feira, 2 de setembro de 2025

João Fera desde 1986 – Um herói discreto finalmente no centro do palco


Alguns músicos passam a vida inteira no palco sem nunca ouvir seu nome gritado pela plateia. Ainda assim, sem eles, nada acontece. João Fera é um desses casos: tecladista dos Paralamas do Sucesso desde 1986, sempre ali, discreto entre caixas e cabos, enquanto a banda se tornava trilha sonora de gerações. Agora, ele finalmente assume o papel de protagonista em João Fera desde 1986, biografia escrita por seu filho, Raphael Silva Gonçalves.

O livro nasce de forma independente, e como toda biografia escrita por alguém próximo, carrega uma dose de reverência inevitável. Raphael escreve com emoção de filho — o que dá força ao retrato íntimo, mas também suaviza arestas. Falta, às vezes, um olhar mais crítico, aquele desconforto que costuma temperar as grandes histórias de música. Ainda assim, há valor nesse afeto: em vez de erguer um mito, o livro registra um artista de carne e osso, que atravessou bailes, palcos improvisados e turnês intermináveis até encontrar nos Paralamas seu lugar definitivo.

Raphael escreve com emoção de filho — às vezes até demais. A reverência é bonita, mas falta um pouco de fricção, de conflito, aquele ruído que dá ritmo às grandes histórias do rock. Ainda assim, o livro acerta ao resgatar a importância de quem sempre esteve nos bastidores, mas com as mãos nos controles do som.


Pelas páginas, desfilam turnês, bastidores que jamais chegariam ao Fantástico e fotos raras que costuram a trajetória de um músico que nunca buscou holofotes, mas iluminou canções inteiras. Não é um livro para quem procura escândalos — é para quem ama música e entende que ela também se faz no segundo plano, enquanto outros ocupam o microfone.

Porque a presença de João Fera nos Paralamas nunca foi decorativa. Seus teclados são parte do esqueleto melódico que sustentou hits, deu identidade a discos e ajudou a banda a navegar entre reggae, ska, pop e rock sem perder autenticidade. O livro, ainda que modesto em ambição literária, faz algo que a crítica musical muitas vezes negligenciou: dar crédito a quem estava na segunda fileira do palco, mas na primeira linha da criação.

João Fera desde 1986 é uma leitura afetiva, com cheiro de fita demo e textura de vinil gasto — um lado B que não toca no rádio, mas que todo fã reconhece como clássico. Não há revelações bombásticas, mas há a revelação maior: a de um artista que moldou, com discrição e talento, o som de uma geração. E isso, por si só, já faz barulho suficiente..