Quem gosta de Velvet Underground, Talking Heads, Modern Lovers, Television ou Mazzy Star deveria conhecer o Luna — se ainda não conhece. É uma daquelas bandas que parecem nascer das cinzas de outras: melodias frágeis alternando com ruídos desconcertantes, sempre privilegiando ideias em vez de virtuosismo. O Velvet é a referência mais óbvia, mas cada suspiro de Dean Wareham também carrega a sombra de Tom Verlaine.
O Luna foi uma das vozes mais consistentes da cena nova-iorquina dos anos 90, com suas canções tristes, irônicas, emocionais. Surgiu em 1991, logo após o fim do Galaxie 500, e seguiu o fio subterrâneo do punk sessentista revisitado pelo Velvet nos anos 80. Lunapark (1992) abriu caminho com faixas como Slash Your Tires e I Can’t Wait. Bewitched(1994) trouxe Sean Eden à guitarra e, como bênção, a presença de Sterling Morrison em Great Jones Street e Friendly Advice. Em 1995, Penthouse consolidou a reputação da banda, com Tom Verlaine e Laetitia Sadier entre os convidados.
Vieram depois Pup Tent (1997) e The Days of Our Nights (1999). Este último manteve a verve velveteana em faixas como Dear Diary e Superfreaky Memories, mas também deu espaço a ironias afiadas em covers improváveis: Sweet Child O’ Mine, do Guns N’ Roses, e Neon Lights, do Kraftwerk, ambos em arranjos guitarrísticos. “Não sou fã do Axl Rose. O Guns acho horrível como banda, mas essa música é ótima, não dá para negar. Pra falar a verdade nem íamos colocar a versão no disco, mas acabamos cedendo para agradar a gravadora”, disse Dean, sem rodeios.
Dois anos depois, sua vida seria atravessada pelo horror. Dean morava perto do World Trade Center e assistiu ao 11 de setembro de sua janela. “Eu estava tomando café e olhando pela janela, até perceber um monte de gente em cima de um prédio vizinho olhando para a mesma direção. Comecei a ouvir sirenes, fiquei curioso e desci à rua. Foi quando vi uma das torres pegando fogo. Peguei o metrô e, quando saí, as duas estavam em chamas. Parei e fiquei olhando aquele espetáculo horrível.”
O detalhe mais cruel: em 1º de agosto de 2001, dia de seu aniversário, o Luna havia sido uma das últimas bandas a se apresentar no térreo do WTC. “Eu conheço pessoas que trabalhavam no WTC. Nem dá para acreditar que vi o prédio ruir. É estranho termos feito um dos últimos shows lá, no dia do meu aniversário. O show foi ótimo… não dá nem para acreditar que depois vi o prédio desabar. Foi uma coisa muito bizarra. Não consigo acreditar nisso. Foi uma das coisas mais bizarras que já aconteceu no mundo.”
Poucos dias depois, a tragédia atravessava oceanos. Em 26 de setembro de 2001, o Luna tocou em São Carlos, no interior de São Paulo, com abertura dos cariocas da Pelvs. O baixista Justin Harwood já não fazia parte da banda, substituído por Britta Phillips — atriz e dubladora do desenho Jem and the Holograms. Foi dela que ganhei o recém-lançado Luna Live, em versão brasileira dupla, sua estreia na formação. Naquele momento, porém, eu só conhecia The Days of Our Nights.
E foi justamente por isso que aquele show virou uma espécie de rito de passagem. Cada música que não vinha da minha memória, mas surgia ali pela primeira vez, tinha a força de uma revelação. 4th of July entrou com uma linha de guitarra cintilante, lenta e cortante como uma lâmina enferrujada, e eu senti como se estivesse vendo a cidade se encher de fumaça. Season of the Witch apareceu em clima hipnótico, quase ritual, e foi impossível não sentir o peso daquele título poucos dias depois do 11 de setembro. Chinatown soava como um passeio noturno por ruas úmidas, luzes refletidas no asfalto; Tiger Lily era um sussurro doce que parecia deslizar entre os ombros do público, deixando cada um sozinho dentro de si.
E então Friendly Advice: Dean a apresentou — “Essa música não está lançada em sua versão original no Brasil, mas pode ser encontrada no Luna Live, gravado em Washington e Nova Iorque e lançado por aqui” —, e as guitarras construíram um arco melódico que parecia nunca acabar. O momento mais delicado veio com o cover de Bonnie & Clyde, de Serge Gainsbourg, com Britta assumindo o papel de Jane Birkin. Sua voz soava frágil, quase tímida, mas era justamente essa fragilidade que arrepiava.
No palco, Dean mantinha a postura blasé, como quem mal se importa, mas as melodias cresciam em camadas, erguidas como frágeis catedrais de melancolia. O contraste era inevitável: em um pequeno barzinho na avenida principal de uma cidade universitária do interior paulista, aquelas músicas carregavam ainda o eco do caos recente de Nova Iorque. Desde então, nunca mais ouvi o Luna sem lembrar daquela noite em São Carlos — um instante em que a música deixou de ser apenas som e se transformou em revelação íntima diante do absurdo da História.
“ o mundo é maior do que o interior de sua cabeça” (Jake)
O que fazemos quando não há mais ninguém? Quando precisamos sustentar o próprio peso sem o amparo de outra presença? Como seguir quando o eco é a única resposta? Quando não há ninguém — nunca — o que resta da vida? O que significa um dia, uma semana, um ano? O que é, afinal, uma vida inteira? Tudo parece apontar para algo além de si mesmo, como se o sentido estivesse sempre em outro lugar. Talvez seja preciso tentar de novo, por outro caminho.
Não é que não sejamos capazes de aceitar o amor ou a empatia. É que essas coisas só existem em relação — e, quando não há ninguém, com quem partilhar o gesto? Ações e movimentos, no fundo, são performances: construções que imitam a verdade, mas raramente a tocam. Toda ação é um disfarce, uma tentativa de organizar o caos.
A vida, então, se torna uma alegoria: uma metáfora longa demais, uma narrativa que usamos para suportar o vazio. Não compreendemos o sentido das coisas apenas pela experiência — nós o reconhecemos por meio dos exemplos, das histórias que nos servem de espelho.
Li Estou Pensando em Acabar com Tudo, de Iain Reid, em 2021 — no auge da pandemia. Foi um livro que me marcou profundamente, talvez porque sua solidão dialogasse com a do mundo. Um thriller psicológico, denso e melancólico, que parecia feito sob medida para aquele tempo suspenso, quando o isolamento era literal e simbólico. (Bem, ao menos deveria ter sido literal — se as pessoas fossem de fato empáticas e não apenas hipócritas que se escondem atrás de discursos religiosos e regras morais, mas vivem na contramão daquilo que pregam.)
Eu já havia decidido, há algum tempo, não ver adaptações de livros que tivesse lido — nem continuações, nem transposições de games ou gibis. Então, quando a adaptação cinematográfica do romance foi anunciada naquele mesmo ano, passei batido. O livro, afinal, pedia uma releitura: ele mesmo convida o leitor a recomeçar do fim, a voltar ao início com outro olhar. Mas, entre tantas páginas e tantos outros títulos à espera, acabei adiando esse retorno — por enquanto.
Mas acontece que o filme é dirigido por Charlie Kaufman — um dos roteiristas mais geniais e singulares deste século. Daqueles raros autores cuja assinatura permanece intacta, mesmo quando filtrada por diretores diferentes como Spike Jonze, Michel Gondry ou George Clooney. São poucos os roteiristas que conseguem isso: ser reconhecíveis mesmo quando o enquadramento não lhes pertence.
E, ao contrário de tantos nomes brilhantes que tropeçam quando passam da escrita à direção, Kaufman parece ter encontrado justamente aí o seu terreno natural. Sinédoque, Nova York continua sendo, a meu ver, uma das maiores obras-primas do cinema contemporâneo — um filme absolutamente devastador e luminoso ao mesmo tempo, como só ele saberia fazer.
Kaufman esteve em São Paulo na semana passada, durante a Mostra Internacional de Cinema, para um evento que precedeu a exibição de seu novo curta Como Fotografar um Fantasma e também de Anomalisa. A conversa, mediada pela roteirista Eva H.D. — parceira dele tanto neste curta quanto no anterior Jackals & Fireflies — tinha algo de metalinguístico, quase uma versão da vida real de Adaptação, aquele filme dirigido por Spike Jonze em que Nicolas Cage interpreta o próprio Kaufman, em crise criativa e perseguido pela sombra de um irmão inventado. O próprio Kaufman, com seu humor meio seco, fez questão de lembrar: “Não posso fazer Adaptação de novo.”
Foi então que Estou Pensando em Acabar com Tudo voltou à minha vida. Lembrei que, anos antes, havia decidido deliberadamente não assistir ao filme. Mas, afinal, era um Kaufman dirigindo — e não fazia sentido manter essa lacuna. Resolvi encarar.
Como disse antes, eu tinha gostado muito do livro. E qual não foi minha surpresa ao descobrir que o filme é, de fato, ainda melhor. Não são muitos os casos em que o cinema supera a literatura — e, quando isso acontece, costuma ser porque o texto original era medíocre. Raramente um grande livro dá origem a um filme tão ou mais potente. Mas não vou me perder nesse debate: já aprendi que textos longos cansam os leitores de internet e esse ja esta longo demais. Aliás, tenho a impressão de que nem os amigos leem mais, mesmo quando a gente envia o link com carinho. Pelo menos é o que percebo quando converso sobre algo que acabei de escrever, um disco que gosto e a pessoa age como se isso fosse novo. Enfim...
O que importa é que Kaufman acrescenta ao filme uma camada que o livro apenas insinuava: a arte como tema central. E ele o faz de um modo que é, ao mesmo tempo, poético e crítico, equilibrando-se entre o ensaio e a confissão — uma reflexão sobre o que significa criar em um mundo que parece já não ter espaço para o mistério.
O filme, à primeira vista, parece simples: uma jovem viaja com o namorado para conhecer os pais dele, em uma fazenda isolada. O relacionamento é recente, e a estrada coberta de neve sugere tanto uma travessia física quanto um percurso emocional. Mas logo percebemos que Estou Pensando em Acabar com Tudo não é sobre isso — a viagem não é real, e o encontro familiar é apenas um artifício narrativo, um teatro íntimo encenado dentro da mente de um homem no fim da vida.
O que vemos é, na verdade, o processo de um homem relembrando — ou talvez reinventando — tudo o que não viveu: as oportunidades desperdiçadas, os amores que não prosperaram, os sonhos que se desintegraram ao longo dos anos. A jovem, interpretada por Jessie Buckley, não existe como pessoa, mas como síntese mental, uma amálgama de lembranças, desejos e arrependimentos. Ela é o espelho das mulheres que passaram por sua vida — ou que ele apenas imaginou ter amado.
Kaufman não tem qualquer interesse em construir suspense ou em entregar reviravoltas. O que o fascina é o jogo de identidades e memórias, a forma como o pensamento se dobra sobre si mesmo até se tornar ininteligível. Ele quer que o espectador perceba, desde o início, que está preso a esse labirinto mental. Não há um mistério a ser resolvido — há apenas a lenta constatação de que tudo o que vemos é reflexão, não revelação.
Ao contrário de tantos filmes que se apoiam no “twist” final, Kaufman não trata a natureza das lembranças como um truque. Se fizesse isso, a dimensão filosófica da obra se perderia: só entenderíamos o filme quando ele terminasse, e o que importa aqui é a percepção gradual, o modo como o espectador é convidado a viver o pensamento, não apenas a descobri-lo.
Essas são reflexões sinceras, não performances de tristeza. Logo no início, ouvimos uma frase que resume toda a ética do filme: “Você pode fingir uma ação, uma fala — mas não um pensamento.” E é nisso que reside a força de Kaufman: ele acredita que os pensamentos, por mais contraditórios ou dolorosos, são as últimas verdades autênticas que nos restam. Mesmo quando mentimos para nós mesmos, sabemos — lá no fundo — que estamos mentindo.
A estética do filme reforça essa clausura mental. O formato 4:3, quase quadrado, estreita o espaço visual e cria uma sensação constante de claustrofobia. Não há respiro. É como se o enquadramento nos empurrasse para dentro da cabeça do protagonista. O resultado é um visual nostálgico, reminiscente das fotografias antigas, que traduz o aprisionamento do tempo e da memória. Esse enquadramento reduzido também intensifica os estranhamentos sutis — especialmente nas transições entre o Jake jovem e o Jake velho, nos closes em que as eras parecem se sobrepor sem que percebamos exatamente quando.
A jovem é, em essência, uma projeção do inconsciente de Jake — a personificação daquilo que ele tentou esconder de si mesmo. É nesse ponto que surge o porão, um dos elementos mais simbólicos e inquietantes do filme. Em quase toda narrativa, o porão é o espaço do que foi reprimido; aqui, ele cumpre a mesma função: representa o id, o território subterrâneo da mente, onde se acumulam as memórias recalcadas, os desejos não ditos e as verdades que ele se recusa a encarar.
Não é por acaso que, em certo momento, a jovem diz à mãe dele: “O Jake não quer que eu vá ao porão.” É claro que não quer. Ele teme que essa mulher — perfeita em sua imaginação, moldada como projeção idealizada — desça ao subsolo simbólico de sua psique e descubra aquilo que ele mais tenta esconder: suas fragilidades, seus fracassos, sua solidão essencial. A resposta da mãe é reveladora: “Ele se isola. Tem poucas pessoas na vida.” O porão, portanto, é mais do que um espaço físico — é o coração trancado do personagem, o lugar onde o amor não entrou e de onde ele nunca saiu.
Tratar essa narrativa não como mistério, mas como estrutura de memória, é uma escolha brilhante de Kaufman. Se o filme guardasse a revelação para o final, reduzindo tudo a um truque de roteiro, perderia o que há de mais potente em sua proposta: a reflexão sobre a natureza das lembranças, da identidade e do arrependimento. O que interessa não é descobrir que tudo se passa na mente de alguém — é perceber isso aos poucos, sentir a oscilação entre lembrança e invenção, e reconhecer-se nesse fluxo.
O personagem de Jake não é movido por uma patologia grave, tampouco por delírio. Kaufman não o trata como doente, mas como um homem paralisado pela falta de escolha. Ele vive à margem da própria vida, observando-a acontecer. Permite que as coisas sigam seu curso, como quem espera que o sentido venha de fora. Sua tragédia não é a loucura — é a passividade, o hábito de deixar o tempo decidir por ele.
Somos sempre, em alguma medida, fruto da criação que nos formou. No caso de Jake, o isolamento na fazenda e a ausência de amigos moldaram uma personalidade retraída, incapaz de lidar com o mundo. Em um dos flashbacks, vemos os pais discutindo ao fundo — uma lembrança breve, mas suficiente para sugerir que a solidão do personagem não é escolha, e sim consequência. O ambiente em que cresceu explica a dificuldade de se conectar, o medo da exposição, a vida que levou.
Cresci também em uma fazenda. Tinha asma e passava mais tempo dentro do quarto lendo do que correndo lá fora. Sempre fui tímido, embora tivesse muitos amigos na escola; nunca me tranquei completamente dentro de mim, mas o simples fato de morar longe já impunha uma solidão silenciosa, de longos fins de tarde em que o tempo parecia se arrastar. Por isso, me identifiquei tanto com Jake. Seu isolamento, seu olhar voltado para dentro, me pareceram familiares. compreendemos que a solidão do personagem não é uma escolha, mas uma herança. O ambiente em que cresceu explica o medo da exposição, a dificuldade de se conectar, a vida que acabou levando — uma vida que, de certo modo, também poderia ter sido a minha.
O terror do filme nasce dessa angústia silenciosa. Kaufman brinca com elementos típicos do gênero — o porão escuro, a estrada coberta de neve, a sorveteria no meio do nada —, mas subverte tudo isso. O medo, aqui, não vem de monstros, e sim da consciência de não ter vivido plenamente, de perceber que o tempo passou e nada aconteceu. O verdadeiro horror é o de olhar para trás e ver que a própria existência se tornou um borrão.
O filme lamenta essa falta de realização, a dor de quem teve sonhos, mas nunca o impulso de persegui-los. Jake, formado em física, é agora zelador em uma escola. Há algo profundamente comovente nessa queda silenciosa: o homem que um dia estudou o universo termina limpando as sobras dele. Não que esse trabalho seja indigno — Kaufman não julga isso —, mas é impossível não sentir o peso simbólico dessa trajetória. Em certo momento, o personagem observa antigos alunos que agora trabalham em supermercados e reflete sobre como todos, ele inclusive, cederam à mediocridade do possível. A vida se tornou uma sucessão de dias aceitáveis, quando poderia ter sido algo mais.
E talvez seja por isso que o filme comove tanto. Porque, no fundo, fala de todos nós, dos caminhos que deixamos de seguir, das conversas que não tivemos, das pessoas que deixamos passar. O que Kaufman constrói é menos um drama psicológico e mais um espelho existencial — um lembrete de que o tempo é implacável, e de que a vida, se não for vivida agora, será lembrada apenas como hipótese.
Quando o filme termina, voltamos às mesmas perguntas que o abriram — aquelas que ecoam dentro da cabeça, quando o silêncio é total: o que fazemos quando não há mais ninguém? o que significa um dia, uma vida inteira? Kaufman não oferece respostas. Talvez porque, no fundo, não existam respostas — apenas o pensamento, esse último território onde ainda somos reais.
Com o sucesso das “Extraordinárias Viagens” de Júlio Verne — entre elas Vinte Mil Léguas Submarinas, A Volta ao Mundo em 80 Dias e Viagem ao Centro da Terra —, publicadas na França na segunda metade do século XIX, o mercado editorial europeu descobriu uma nova febre literária. Escritores e editoras passaram a lançar coleções inspiradas em Verne, explorando aventuras ambientadas em terras distantes, repletas de invenções improváveis e personagens excêntricos, movendo-se na tênue fronteira entre a ciência e o sonho.
Entre os nomes que seguiram essa trilha estava Paul Deleutre (1856–1915), que assinava suas obras com o pseudônimo Paul D’Ivoi. Um dos autores mais prolíficos de seu tempo, D’Ivoi escreveu dezenas de romances populares, incluindo cerca de uma dúzia de histórias de aventura no estilo “científico-fantástico”. O mais conhecido deles, Les Cinq Sous de Lavarède (Os Cinco Centavos de Lavarede), ganhou grande notoriedade e chegou até mesmo ao cinema, em uma adaptação dirigida por Maurice Cammage em 1939.
Apesar de sua popularidade na época, os personagens de D’Ivoi não resistiram ao tempo — ao contrário dos de Verne, que continuaram a inspirar novas gerações. Entre esses nomes esquecidos está o enigmático Docteur Mystère, protagonista de um romance publicado em 1899 na coleção Les Voyages Excentriques, da editora Boivin et C.ie.
O personagem é descrito como “um homem magro e elegante, de dedos longos e finos, rosto expressivo e bronzeado, e olhos penetrantes”. A princípio, pouco se sabia sobre ele — apenas o apelido Docteur Mystère, dado por seu inseparável companheiro de aventuras, o jovem Cigale.
O Docteur Mystère chega à Europa vindo da Índia, por volta de 1898, em uma missão secreta. Traz consigo uma formação enciclopédica, vasto conhecimento de medicina e uma coleção de invenções ousadas, ilustradas por D’Ivoi em desenhos técnicos que soam tão imaginativos quanto improváveis.
Usando turbante e barba longa, Mystère viaja a bordo do “Hotel Elétrico”, uma espécie de casa móvel movida a energia — não muito diferente da “casa motorizada a vapor” criada por Júlio Verne. As paredes desse engenho são feitas de um alumínio semelhante ao das garrafas térmicas, o que mantém o interior agradavelmente refrigerado. Entre suas invenções, há até um “tableau téléphotique”, uma espécie de televisão primitiva, ajustada para receber imagens à distância sem o uso de câmeras.
Mystère parece antecipar seus contemporâneos Röntgen e Marconi no uso de raios X e ondas eletromagnéticas. Ele carrega uma arma capaz de disparar um devastador raio elétrico e veste uma armadura especial feita com bobinas Ruhmkorff, que geram ao seu redor um campo protetor — um verdadeiro escudo científico.
Ao longo de quase quatrocentas páginas, D’Ivoi conduz o leitor por uma Índia ricamente descrita, cheia de costumes, rituais e crenças locais. Nessa paisagem de exotismo e intriga, Mystère enfrenta a poderosa casta brâmane e a temida seita dos thugs, que exploram a superstição popular. Seu grande adversário é Arkabad, um aliado de russos e afegãos que planeja uma ofensiva contra o território indiano.
Anos antes dos acontecimentos principais, o cruel Arkabad havia dizimado a nobre linhagem hindustani dos Rundjee, condenando o único sobrevivente — o jovem príncipe Rama Rundjee — a um destino pavoroso: ser enterrado vivo em um estado de semicatalepsia, induzido por poções de origem misteriosa.
Mas, como logo se revela, Rama Rundjee e o Docteur Mystère são a mesma pessoa. Após dois anos nesse estado entre a vida e a morte, o príncipe consegue escapar, levando consigo uma pequena bolsa repleta de diamantes. Exilado na Europa, dedica-se ao estudo das mais diversas disciplinas, lado a lado com os maiores especialistas de seu tempo, aperfeiçoando-se em ciências, medicina e tecnologias emergentes.
Ao retornar à ação, acompanhado de seu fiel companheiro Cigale e da amada Na-Indra, Mystère enfrenta os inimigos da cidade afegã de Herat, usando suas armas elétricas e engenhos científicos para derrotar Arkabad e seus aliados corruptos. O vilão encontra a morte nesse confronto, e o herói, finalmente liberto de seu passado, se retira com Na-Indra — desaparecendo do mundo sem deixar rastros.
Além da onda dos romances de aventura inspirados em Júlio Verne, outra febre literária tomou conta do público nas viradas do século XIX para o XX: as histórias protagonizadas por jovens heróis, figuras audaciosas que enfrentavam o mundo movidos por coragem e idealismo. Esse tipo de narrativa alcançava enorme sucesso tanto na França quanto em outras partes do mundo.
Nos Estados Unidos, os romances de Horatio Alger Jr. (1832–1899) eram sucesso absoluto. Suas histórias seguiam um padrão inspirador: garotos pobres, guiados pela coragem e pela moral de trabalho, que ascendem socialmente graças ao esforço individual — uma tradução literária perfeita do chamado “modo de vida americano”.
Na França, o espírito juvenil também encontrava seus heróis. Gavroche, o destemido menino de Os Miseráveis, de Victor Hugo, havia se tornado símbolo da bravura popular nas barricadas de Paris. E embora sua morte fosse inevitável no romance, sua figura inspirou toda uma geração de personagens semelhantes.
Em 1880, um novo “garoto de Paris” surgiu: Friquet, protagonista de Le Tour du Monde d’un Garnement de Paris, de Louis Boussenard. A obra unia o espírito aventureiro das jornadas de Verne — especialmente A Volta ao Mundo em 80 Dias (1873) — ao entusiasmo pelos jovens protagonistas que desafiam o mundo. Boussenard escreveria diversos outros livros com o mesmo personagem, tornando-se um autor amplamente imitado (e, segundo muitos críticos, copiado sem piedade) por seus contemporâneos.Paul D'Ivoi escreveu por sua vez o ja citado Os Cinco Centavos de Lavarede (Les cinq sous de Lavarède) que tem como personagem principal o jovem Armand Lavarède, que resolve andar pelo mundo com apenas cinco centavos no bolso. Este foi o livro mais famoso e reimpresso do autor, mas o que nos importa aqui é que quando Docteur Mystere foi publicado, o autor percebeu que o coadjuvante Cigale tinha mais potencial que o personagem principal. Assim como Lavarède, ele era jovem e poderia viver algumas extraordinárias aventuras pelo Mundo.
Percebendo o potencial de seu jovem coadjuvante, Paul D’Ivoi decidiu dar a Cigale o protagonismo que antes pertencia ao próprio Docteur Mystère. Assim nasceu uma nova série de aventuras com o garoto no centro da ação.
O primeiro desses livros foi "Cigale na China" (1901), no qual o herói participa do célebre cerco às missões diplomáticas durante a Rebelião dos Boxers. No ano seguinte, D’Ivoi lançou "Massilague de Marseille", onde o rapaz se envolve em uma intriga internacional para evitar uma guerra entre as Américas do Norte e do Sul. Já em "Le Semeurs de Grâce" (1903), o cenário se desloca para a Amazônia, mostrando que o autor não poupava fôlego nem fronteiras ao levar seu personagem a novas jornadas.
Esses romances tiveram boa recepção em sua época, sendo reeditados várias vezes, ainda que o tempo tenha relegado Cigale e seu criador a um certo esquecimento — ao contrário da perenidade conquistada por Júlio Verne.
Na mitologia criada por D’Ivoi, Cigale — cujo nome significa “Cigarra” — era originalmente um menino de rua, acolhido ainda criança por Rama Rundjee, o futuro Docteur Mystère. Foi o garoto quem lhe deu o apelido pelo qual ficaria conhecido, invertendo a hierarquia tradicional entre mestre e aprendiz. Sem conhecer o próprio nome, Cigale carregava o apelido como uma marca de identidade.
Mais tarde, ao se mudarem para a Inglaterra, Mystère o adota legalmente, registrando-o como Jacques Mystère, uma homenagem a São Giacomo, o apóstolo viajante — símbolo perfeito para um jovem destinado a cruzar o mundo em busca de aventuras.te.
É aqui que entra Alfredo Castelli, criador do célebre Martin Mystère, o “detetive do impossível”. O personagem surgiu em 1982, publicado pela Sergio Bonelli Editore, e rapidamente se consolidou como um dos grandes ícones da linha italiana de quadrinhos de mistério e ficção científica.
Alguns anos depois, durante uma visita a Paris, Castelli se deparou com um livro curioso exposto nas tradicionais bancas dos bouquinistes — os sebos à beira do Sena. Na capa, lia-se um nome que o deixou intrigado: Docteur Mystère. Até então, o autor italiano desconhecia completamente o escritor francês Paul D’Ivoi, muito menos sua obra. Movido pela coincidência, comprou o volume e o leu em uma única noite.
Embora tenha considerado o texto original lento e excessivamente descritivo, Castelli percebeu naquele antigo romance um elo temático e simbólico com seu próprio universo ficcional. Viu ali uma oportunidade de reconstruir as origens do sobrenome Mystère, integrando o personagem de D’Ivoi à genealogia literária de Martin — um gesto que, além de prestar homenagem, também ajudou a resgatar o esquecido autor francês para uma nova geração de leitores. Ouso dizer que se não fosse Castelli nunca saberia da existencia do Docteur, pelo menos até o momento.
Essa releitura foi publicada na Itália em 1996, nas edições 174 e 175 de Martin Mystère, e chegou ao Brasil pela Mythos Editora, dentro da segunda série do personagem, nos volumes 22 e 23. Se quiser saber um pouco mais do bom e velho Martin no Brasil siga esse link.
Nessa história, Martin Mystère recebe uma carta enigmática de um parente até então desconhecido: um tio distante que vive isolado em uma região remota da Escócia. Movido pela curiosidade, Martin parte em direção ao castelo ancestral dos Mystère e lá conhece Paul Mystère, irmão mais novo de seu bisavô — um homem de aparência vigorosa e espírito inquieto, embora já tivesse mais de noventa anos.
Durante essa visita, o “detetive do impossível” mergulha em uma jornada familiar inesperada. Aos poucos, descobre não apenas as origens do sobrenome Mystère, mas também a saga de seu antepassado Jacques Mystère, o antigo Cigale, pupilo e herdeiro de Docteur Mystère.
Essa conexão entre o passado literário e o presente dos quadrinhos cria uma ponte curiosa entre dois séculos de aventura — de Paul D’Ivoi a Alfredo Castelli — mostrando como a imaginação científica e o espírito explorador podem atravessar gerações e formatos sem jamais perder o fascínio.
Depois dessa redescoberta, Alfredo Castelli decidiu expandir o universo de Docteur Mystère em uma série de álbunsproduzidos em parceria com o desenhista Lucio Filippucci. O resultado foi uma trilogia que dialoga com o espírito dos velhos romances científicos do século XIX, mas com um toque contemporâneo de humor e metalinguagem.
A estética e o clima das histórias lembram inevitavelmente “A Liga Extraordinária”, de Alan Moore, que surgia na mesma época explorando os mesmos arquétipos de aventura vitoriana. Assim como Moore, Castelli enche suas narrativas de referências culturais e literárias — desfilam pelas páginas personagens e alusões que vão de Moriarty a Popeye, passando até por Peter Pan. São citações que funcionam como piscadelas cúmplices ao leitor, embora sem o mesmo refinamento narrativo do escritor britânico.
O Docteur Mystère de Castelli, contudo, difere bastante do herói original de Paul D’Ivoi. O tom é menos dramático e mais lúdico, ainda que preserve traços fundamentais do personagem: o fiel assistente Cigale, o engenhoso Hotel Elétricoe o inseparável espírito enciclopédico que o define — misto de cientista, aventureiro e homem de honra.
A Mythos tambem chegou a publicar dois álbuns no formato europeu aqui no Brasil em 2007. "Os Misterios de Milão" (originalmente de 2004) e "A Guerra dos Mundos" (2005). Há ainda um terceiro, inédito por aqui, produzido em 2010, "Gli orrori della giungla nera" (Os Horrores da Selva Negra)
Nesse terceiro episódio, Castelli e Filippucci mergulham no espírito das aventuras coloniais do século XIX — mas com o humor irônico e a sofisticação narrativa típicos do autor. A trama se passa na Índia britânica, onde o Docteur Mystère e seus companheiros, Cigale e Ch’ing Kwai, investigam uma série de acontecimentos bizarros em meio à selva tropical: tribos em transe, tambores que ecoam noite adentro e rumores sobre uma entidade sem corpo que teria caído do céu.
A história mistura misticismo oriental, cientificismo vitoriano e terror pulp — com direito a experiências de transplante de cabeça e um vilão que tenta renascer como uma espécie de “Frankenstein mecânico” (e que quem leu os 2 anteriores sabe do que estou falando). O tom é de paródia elegante: Castelli brinca com os clichês dos romances de exploração e das narrativas coloniais, mas infunde nelas uma crítica à arrogância da ciência e à obsessão ocidental por “civilizar” o desconhecido.
Visualmente, os álbuns de Docteur Mystère são um espetáculo à parte. Lucio Filippucci transforma cada página em uma viagem sensorial: selvas densas e sufocantes, templos em ruínas e laboratórios improvisados surgem com riqueza de detalhes, criando uma atmosfera que oscila entre Jules Verne e Joseph Conrad, com ecos inconfundíveis de Indiana Jones e Lovecraft. O resultado é uma mistura precisa de aventura, exotismo e estranhamento.
É pouco provável que esse terceiro volume, Gli orrori della giungla nera, seja publicado isoladamente no Brasil. O mais plausível seria que alguma editora se arriscasse a lançar os três álbuns reunidos em um único volume, o que daria à obra a dimensão que ela merece.
Fica a esperança de que isso aconteça — e talvez a Editora 85, que atualmente publica Martin Mystère em edições que compilam cinco números italianos por volume, possa considerar incluir o personagem em seu catálogo. Afinal, trazer Docteur Mystère de volta às prateleiras seria também resgatar uma das pontes mais curiosas entre a literatura de aventuras do século XIX e os quadrinhos modernos.
Esse ano chegue a informação que uma editora independente chamado Leitura Mania tambem chegou a publicar o Livro do D'Ivoi. Tentei contato mas não obtive resposta, então não sei se esta realmente disponível para aquisição, uma vez que foi via Catarse e nem tudo que foi financiado la respeita os prazos
No fundo, tudo parece voltar ao ponto de partida. Quando Júlio Verne inaugurou suas viagens extraordinárias, talvez não imaginasse que, mais de um século depois, ainda haveria quem continuasse explorando os mesmos territórios de mistério, ciência e imaginação.
De Paul D’Ivoi, com seu excêntrico Docteur Mystère e o pequeno Cigale, a Alfredo Castelli, com seu olhar meticuloso de arqueólogo das narrativas, há uma linha invisível que atravessa o tempo — a mesma que une as páginas amareladas dos romances do século XIX aos álbuns de quadrinhos de hoje.
E é justamente essa continuidade — entre o passado fabulista e o presente nostálgico — que mantém viva a promessa das aventuras exóticas. Porque, no fim das contas, todo leitor que abre um desses livros está sempre embarcando na mesma jornada: a eterna viagem extraordinária em busca do desconhecido.
Já me cansei de festivais. Não tenho mais corpo, nem idade para isso. Hoje em dia, a sensação é que você vai muito mais pela “experiência” coletiva do que pelo show em si. Talvez por isso nunca tenha me seduzido o João Rock, em Ribeirão Preto. O line-up até tinha bons nomes, mas eram bandas que eu já tinha visto em dias melhores, misturadas com outras que pouco me interessavam. E quando interessavam, eu preferia ver em show fechado, menor, com menos suor de desconhecido encostando no ombro.
Mas aí veio o Somos Rock de 2015. Um festival em comemoração aos 40 anos da 89 FM, autointitulado "A Radio do Rock" e que prometia nove grandes nomes do rock nacional dos anos 80 e 90, praticamente a trilha sonora da minha infância e adolescência. Na verdade eram onze atrações, mas estou ignorando duas exceções no cartaz que não me fariam nunca sair de casa..
O problema foi a logística. Eu não estava disposto a encarar São Paulo e depois voltar dirigindo de madrugada. Resolvi então comprar uma excursão. Ingenuidade minha achar que seria “tranquilo”. Faltando dois dias para o embarque veio a confirmação do horário: saída às 2h30 da manhã em Jaú, cidade vizinha, o que já me obrigava a sair de casa de carro em plena madrugada. Mas vá lá: era cedo, mas fazia sentido, já que o ônibus ainda passaria por mais três cidades recolhendo gente.
Naturalmente, dormi mal. Fui para a cama cedo, pouco depois das 21h, mas o sono não veio fácil. Acordei às 23h para ir ao banheiro, depois voltei a dormir até quase 1h. Às 2h já estava em Jaú, meia hora antes da partida. O horário era impreterível: 2h30. Ou melhor, quase. Porque às 2h40 ainda faltavam duas passageiras. O ônibus partiu mesmo sem elas. Até que, no meio da estrada, o motorista parou e — adivinhe — lá vieram as duas correndo, jurando que no site constava saída às 3h. Pode até ser, mas havia um e-mail com anexos detalhados sobre os horários. Só que, no Brasil, manual de instruções é ficção científica. Resultado: saímos de Jaú com meia hora de atraso.
Chegamos a Bauru por volta das 4h. O cronograma já previa atrasos e percalços, então, em tese, ainda estávamos dentro do tempo. A volta, combinada para um posto de gasolina a poucos quarteirões do local do show, seria o teste final de convivência. E falhamos de novo. Duas mulheres se perderam — mesmo sendo em linha reta. O guia havia repetido mil vezes: “marquem referências, olhem bem o trajeto”. De nada adiantou. No ônibus, a instrução era esperar do lado de fora do posto para tirar uma foto antes de entrar. Três ou quatro ignoraram solenemente e entraram direto. Mais atraso. Perdemos quase uma hora parados em São Paulo por pura falta de atenção. O ser humano em excursão é sempre um estudo de caso.
Por sorte, o show acabou quase uma hora antes do previsto e o prejuízo não foi catastrófico — apenas aquele stress básico de quem tenta viver em comunidade.
E então, finalmente, vamos aos shows.
O FESTIVAL
Chegamos ao local dos shows às 10h. Os portões só abririam às 11h, então ficamos ali, feito gado no curral, esperando a boa vontade da produção. Quando enfim entramos, o espaço ainda estava praticamente vazio. Era possível andar sem esbarrar em ninguém, chegar tranquilo nas barracas e até comprar alguma coisa sem fila. Um luxo temporário.
Como já tínhamos parado às 7h30 num posto da estrada e feito um café da manhã que custou o equivalente a um mês de pó em casa (sem exagero), dispensei comida. Fui direto ao banheiro — ainda limpo, um milagre digno de registro — e depois garanti um chope e uma cerveja. E foi aí que fiz a pior escolha: deixei os salgadinhos e bolachas na mochila, dentro do ônibus. Não por falta de experiência — já fui a inúmeros shows — mas por um delírio temporário de achar que não faria falta.
O espaço tinha dois palcos, um do lado do outro, esquema pensado para que, quando um show acabasse, o próximo já começasse sem demora. Ótimo para quem foi pela música — e, no meu caso, significava que dificilmente sairia do lugar. Se eu me afastasse, não teria como voltar para o ponto estratégico que achei: bem no meio dos dois palcos, um pouco distante da grade, mas perfeito para acompanhar tudo sem precisar virar atleta de maratona. O terreno era uma desgraça, cheio de areia e irregular. No centro havia uma comprida base de plástico que separava os dois palcos, e foi em cima dela que fiquei, como quem encontra um oásis em meio ao deserto, protegendo a coluna de uma futura hérnia.
Para bebidas, até que funcionava: ambulantes circulando, acesso fácil. Mas comida era outra história. Havia umas três barracas mal distribuídas pelo evento, concentrando espetinhos, lanches e pastéis. E só. Nada daquela pompa de “experiência gastronômica” que festival moderno adora inventar. O cardápio era direto: coma ou passe fome. Eu escolhi a segunda opção. Às 11h30, quatro horas depois do café, ainda estava abastecido. Podia ter comprado alguma coisa para garantir, mas sinceramente não me animei. O objetivo era ver shows, não disputar fila de pastel. Mesmo assim tinha a experança de sair no meio de um show menor.
1- RAIMUNDOS
O Raimundos foi escalado para a ingrata função de abrir o festival ao meio-dia, com o sol martelando a cabeça e ainda assim arrastando um público considerável. No palco, a formação atual que se consolidou ao longo das provações: Marquim, que assumiu a guitarra após a saída de Rodolfo; Jean Moura, ex-roadie convertido a baixista oficial depois da morte de Canisso; e Caio Cunha, dono das baquetas há quase duas décadas. À frente, Digão — o último elo da formação original e guardião do nome Raimundos, sustentando a marca mesmo depois da troca traumática de vocalista. Se a longevidade do grupo pode ser questionada, o repertório não: eles têm hits suficientes para segurar qualquer plateia por uma hora sem baixar a energia.
O show foi pesado — até mesmo as baladas que um dia renderam sucesso radiofônico soaram com vigor, distantes das concessões comerciais do passado. Não por acaso, Rodolfo justificou sua saída, anos atrás, alegando que já não se via interpretando letras adolescentes, que soariam incompatíveis com sua nova vida espiritual. É curioso notar que essas mesmas letras, que hoje poderiam ser alvos de críticas, seguem entoadas com devoção pelos fãs, indiferentes ao sol a pino e à passagem do tempo.
De onde eu estava, não se ouviram provocações à postura política da banda. Longe da grande mídia, o Raimundos deixou para trás as imposições de gravadoras — como a obrigatória versão de 20 e Poucos Anos, de Fábio Jr. — que, embora desdenhadas por puristas, foram decisivas para colocar o grupo, ainda que brevemente, no mainstream, coisa que outras bandas pesadas da época, como o Dead Fish, jamais conseguiram.
Se o peso das guitarras foi inegável, a regulagem de som não colaborou: vocais mal equilibrados e instrumentos por vezes embolados. Nada, porém, que atrapalhasse o entusiasmo de quem já estava ali cedo — público que não veio por acaso, mas para ver os caras. O Raimundos pode até não ser mais a banda incômoda e disruptiva dos anos 90, mas sobreviveu ao que parecia impossível: a troca de vocalista, a morte de um integrante fundamental, a desconfiança da crítica. E se há uma certeza que permanece, é que no palco eles ainda sabem honrar o peso do próprio nome.
2- NANDO REIS
Mal o Raimundos encerrou no palco 1 e, pontualmente às 13h, Nando Reis já surgia no palco 2 — sem atrasos, sem enrolação. A seu lado, uma banda afiada: Eduardo Schuler na bateria e o filho Sebastião Reis nos violões (ambos do Colomy), além do sempre fiel Walter Villaça nas guitarras. Ou seja, Nando já entrava em campo com o jogo ganho: dono de um repertório que sustentaria horas de apresentação, em apenas uma hora não precisou de muito esforço para conquistar a plateia.
O problema, porém, foi o som. E aqui não dá para culpar a correria de festival, já que tanto Raimundos quanto Nando tiveram tempo de sobra para passagem. Aliás, quando cheguei por volta das 10h, o próprio Nando estava testando voz e violão. Ainda assim, o vocal soava fanho, estridente, como se alguém tivesse decidido equalizar a poesia em AM. Talvez não tenha sido a percepção de todos, mas eu estava justamente na frente de um conjunto de caixas que me atirava aquilo direto nos ouvidos — azar da geografia.
Felizmente, o repertório segurou a festa. O show abriu com Marvin, clássico dos Titãs, e seguiu por uma seleção de sucessos solo. Teve também a sempre obrigatória homenagem a Cássia Eller, que além de amiga foi intérprete de alguns dos maiores hits de Nando — e, convenhamos, também ajudou a impulsionar a carreira solo dele. Isso sem esquecer que Marisa Monte e Cidade Negra já haviam colocado seu nome no mapa das rádios antes mesmo dele assumir o protagonismo.
3- SUHAI
Talvez o nome mais estranho da escalação: quase ninguém sabia quem diabos era Suhai. Um cara? Uma banda? Um codinome secreto? Dias antes do festival, movido pela curiosidade, fui ao Deezer, ouvi duas músicas e desisti ,
Em meio a uma lista de medalhões do rock nacional, como surgiu esse nome desconhecido? Não faço ideia. Uma coisa é certa, tem um produtor influente e forte, mas a explicação provavelmente passa por favores de bastidores ou algum investimento generoso. Rock, afinal, também se move a acertos de contas.
Foi nesse momento que decidi sair para comer. Doce ilusão: o festival inteiro teve a mesma ideia. A fila era quilométrica, e se eu entrasse nela perderia o próximo show praticamente inteiro. Resultado: voltei para meu posto estratégico, sentei e deixei o som do Suhai vir até mim. Até agora não sei se era uma banda ou um cantor solo.
O que ouvi não ajudou a esclarecer. As músicas autorais lembravam um sertanejo universitário travestido de rock. Entre um acorde e outro, coube até uma cover de Cazuza para tentar animar o público. Mas o que vi foram conversas paralelas, celulares levantados e uma plateia mais interessada em matar o tempo do que prestar atenção.
A boa notícia é que a apresentação durou apenas meia hora. Suhai se despediu cedo e, involuntariamente, prestou um serviço: adiantou o cronograma do festival.
4 - IRA !
Mais um bom — e esperado — show. Desta vez, celebrando os 25 anos do Acústico MTV. Já perdi a conta de quantos shows do IRA! assisti ao longo da vida, mas lembro perfeitamente do primeiro: Lençóis Paulista, por volta de 1997. A banda vivia então um ostracismo pesado, depois do brilho dos anos 80 e de uma sequência de álbuns injustamente ignorados (Meninos da Rua Paulo, Música Calma para Pessoas Nervosas, Sete). Ignorados pelo público, diga-se — porque eu, na época, ouvi todos até gastar o encarte.
A verdade é que, até o Acústico MTV, o IRA! sobrevivia de pequenos shows pelo interior. Foi o projeto da MTV que os catapultou de volta à primeira divisão do rock nacional. E ironia das ironias: músicas que haviam sido enormes fracassos, como Eu Quero Sempre Mais e Girassol, viraram hits radiofônicos. Não porque o público tivesse mudado de gosto da noite para o dia, mas porque, até então, faltara o empurrão das gravadoras e das rádios — e convenhamos, o público em geral não sai à caça de novidades; prefere consumir o que lhe é servido. Com o Acústico, veio a engrenagem de marketing e, de repente, aquelas canções ganharam a vitrine que sempre mereceram.
O fim viria em 2007, com Invisível DJ — um disco interessante, sim, mas que nunca encontrou seu brilho. (escrevi uma crítica na época, aqui). Depois, vieram brigas, processos e acusações dignas da Contigo. O retorno só aconteceu anos depois, com um longo e penoso mea culpa entre Nasi e Edgard Scandurra. Voltaram, mas sem Gaspa e André Jung— metade da formação original perdida pelo caminho. Em uma entrevista que fiz com Jung (link aqui),, ficou claro que mágoas e ressentimentos ainda pairam no ar, como uma nuvem que não se dissipa.
Mas voltemos ao presente. O show foi, sim, excelente — ainda mais com um repertório à prova de falhas. Em apresentações curtas, o IRA! é imbatível. Consegui ver ao vivo músicas que nunca tinha testemunhado, entre elas Vida Passageira. Uma bela canção, sem dúvida, mas que abriga uma das piores frases já escritas no rock nacional — “onde a lua se parece com a bandeira da Turquia” — e obriga Nasi a se contorcer no microfone, como se fizesse aeróbica para caber no compasso. Ainda assim, bela canção.
E falando em Nasi, a voz já não é mais a mesma, mas neste show estava em forma bem melhor do que no desastre dos acústicos do ano passado. O ponto alto veio com Núcleo Base, que em 2025 ganhou contornos ainda mais políticos: Nasi passou o show inteiro fazendo sinais de “Anistia Não” em direção à plateia. Não sei se houve provocações diretas, mas seus sorrisos irônicos deixavam claro que havia ali um diálogo silencioso — e tenso.
De qualquer forma, foi um ótimo show. O IRA! pode ter atravessado crises, separações e reconciliações, mas segue com a mesma capacidade de traduzir, em música, as contradições do país — com raiva, lirismo e guitarras. E pensar que tudo começou, pra mim, lá em 1997, em Lençóis Paulista, no velho Marimbondo, quando a banda parecia um fantasma do passado. Quase trinta anos depois, ainda estou aqui — e eles também. E isso, num país que trata memória como coisa descartável, já é quase um milagre.
5 - BIQUINI CAVADÃO
Durante os anos de ouro do rock nacional, nos 80, o Biquini Cavadão jamais foi escalado para a “primeira divisão”. Tinha seus momentos radiofônicos com Tédio e Timidez, mas nunca chegou ao patamar de Paralamas, Titãs ou Legião Urbana. E, ironicamente, foi na ressaca do gênero, já nos 90, que vieram os maiores hits da carreira: Zé Ninguém, Vento Ventania e uma cover esperta de Chove Chuva, de Jorge Ben. Depois vieram Janaína e, em menor escala, Dani — e, sem perceber, o Biquini se tornou uma daquelas bandas que o público talvez não idolatre, mas sempre reconhece quando começa a tocar.
Na virada dos 2000, repetiram a cartilha do Capital Inicial e do IRA! — o auge tardio. Só que, se para os outros a salvação veio via o marketing dos acústicos MTV, o Biquini seguiu por outro caminho: virou uma espécie de banda de baile de luxo, abastecendo rádios com versões dançantes de clássicos dos anos 80, embaladas no projeto 80.
A crítica, claro, torceu o nariz. Mas a crítica especializada brasileira, convenhamos, há muito se especializou em falar mal do rock nacional — reverencia o virtuosismo de um Scandurra, mas faz cara feia diante do fã dos Engenheiros do Hawaii. Com o Biquini foi igual: diziam que faziam “pop vazio”, como se cantar sobre adolescência e tédio fosse um crime de lesa-pátria cultural.
Só que sejamos justos: o Biquini nunca quis ser filósofo da juventude. Queria divertir — e nisso, foi imbatível. A discografia guarda pérolas pop com melodias afiadas, arranjos limpos e produção eficiente. Mesmo os discos mais recentes escondem faixas inéditas que poderiam muito bem tocar em rádio, se ainda houvesse espaço para algo além da mesmice algorítmica. Os covers, regravados até o limite, garantiram sobrevida e uma fidelidade de público rara: shows lotados, estrada firme e até feitos improváveis — como lotar a praça central de Bariri na década passada. Poucos nomes do rock nacional podem se gabar de algo assim.
No centro de tudo está Bruno Gouveia, um dos grandes frontmen do país — carismático, preciso e dono de um controle absoluto da plateia. Seus shows são pura catarse: o público canta junto, pula, ri e esquece o resto da vida por uma hora. Foi exatamente assim no Parque Villa-Lobos: sob o sol impiedoso da tarde e o cansaço já rondando, Bruno e seu Biquini (perdão, não resisti) conseguiram levantar a multidão.
Não é filosofia. Mas quem precisa de filosofia quando se tem um refrão gritado a plenos pulmões, falando de tédio?
6 - PATO FU
Soube tarde demais que o Pato Fu tinha passado por Bauru. Uma pena. É uma daquelas bandas que, ao vivo, mostram camadas que o rádio nunca revelou — e que lembram o quanto a meiguice, quando levada a sério, pode ser uma forma de subversão. Quem reduz o grupo às baladinhas de fim de tarde dos anos 90 ignora o tanto de peso, ironia e invenção que eles carregam por trás das melodias doces.
O começo foi meio desastroso, e nem isso tirou o encanto. Fernanda Takai, visivelmente desconfortável, acenava para os técnicos como quem pede ajuda de um bote salva-vidas em alto-mar. Logo depois da primeira música, explicou: o retorno de palco tinha falhado. Engraçado — da plateia, o som parecia perfeito. Aos poucos, a sintonia foi voltando, como se a banda respirasse junto novamente, e o show tomou corpo. Quando tudo se encaixou, veio o prêmio: o carisma calmo de Fernanda, o humor de John Ulhoa, a elegância magnética de Ricardo Koctus no baixo, e, claro, o prazer quase doméstico de ver Xande Tamietti de volta à bateria — uma presença que, mesmo anunciada há tempos, ainda desperta aquele sorriso de quem reencontra um amigo antigo.
No setlist, os grandes clássicos estavam todos lá: “Canção pra Você Viver Mais”, “Depois”, “Sobre o Tempo” e o cover sempre irresistível de “Ando Meio Desligado”, dos Mutantes — que continua soando como uma ponte entre gerações de malucos criativos. Entre os hits, surgiam pérolas menos conhecidas, mas igualmente encantadoras, como “Gol de Quem?” (video aqui) e “O Filho Predileto do Rajneesh”, lembrando ao público que a banda nunca foi apenas sobre ternura — mas também sobre estranheza, ironia e experimentação.
O ponto alto, pra mim, veio com “Capetão 666 FM”. Uma pequena epopéia rock-pop-fu — caótica, divertida e absolutamente única. Pena que tocaram só a primeira parte, cortando o clímax antes do fim, e emendando direto em “Uh Uh Uh Lá Lá Lá Ié Ié”, encerrando o show num clima de festa leve e redentora.
Foi, de longe, o show mais inventivo e sincero do festival — aquele que faz a gente lembrar que nem toda doçura é inocente, e que o Pato Fu sempre foi isso: gentil na forma, provocador no conteúdo, e deliciosamente fora da casinha.
7- ULTRAJE A RIGOR
Alguém da plateia arriscou a provocação, mas mal conseguiu terminar a palavra “anistia” — o “não” foi instantaneamente soterrado pelo riff inicial de “Ciúme”. Roger olhou para os companheiros com aquele sorriso nervoso de quem já esperava o golpe. Um gesto cúmplice e automático, típico de quem aprendeu há décadas que provocação faz parte do ofício.
O Ultraje a Rigor tem em “Nós Vamos Invadir Sua Praia” um dos discos mais sólidos — e paradoxais — do rock nacional. Onze faixas, dez hits. “Se Você Sabia” e “Zoraide” ficaram no banco de reservas, mas o resto é um desfile de clássicos. Um daqueles raros álbuns que se ouve do começo ao fim sem vontade de pular nada. O sucessor, “Sexo”, repetiu a façanha em menor escala: menos hinos, mas ainda quatro grandes canções que sobrevivem no imaginário coletivo, tocadas à exaustão em rádios, bares e ressacas.
O brilho, claro, foi se apagando com o tempo. Os anos 90 fecharam as portas do mainstream para quase todo o rock brasileiro — mas não para o público do interior, que continuou recebendo o Ultraje como se ainda estivéssemos em 1987. Mesmo quando o som já não estava nas paradas, os palcos seguiam lotados. E na virada dos 2000, Roger ainda cravou mais um hit, “Nada a Declarar”, com seu refrão inflamado que reciclava a velha verve debochada de “Filho da Puta” e “Chiclete”. Em meio ao marasmo sonolento da música brasileira da época, era quase um ato de resistência — ainda que disfarçado de piada.
No festival em questão, o clima era de pólvora contida. No mesmo lineup, Raimundos e Ultraje a Rigor — duas bandas cujos líderes, Digão e Roger, colecionam desavenças com meio mundo do rock nacional, agora turbinadas por suas posições políticas nada discretas. Some-se a isso o IRA!, que ocupa o extremo oposto do espectro ideológico, mas com a mesma agressividade verborrágica, e o backstage parecia mais um campo minado do que um camarim.
No fim do show, Roger tentou posar de diplomata. Anunciou ao microfone que ele e Edgard Scandurra haviam feito as pazes — “ele veio me pedir desculpas”, disse, com aquele ar de satisfação passivo-agressiva que já virou marca registrada. E completou, com a ironia que só ele acredita ser elegância: “Preferia que tivesse sido em público, mas tá valendo.”
O típico Roger: corrosivo, autoconfiante, incapaz de deixar a provocação morrer. O mesmo garoto de 1985 — só que agora tocando para um país que parece ter esquecido que o deboche também era uma forma de lucidez.
8- TITÃS
Confesso: esse era o show que eu planejava usar como desculpa para finalmente comer alguma coisa. Achei que, por ser lotado, não faria tanta diferença sair por uns minutos. Mas minha esposa me desestimulou: se saíssemos dali, onde tínhamos conquistado um ponto perfeito, jamais conseguiríamos voltar para ver os últimos shows. E como não sou desses caras de pau que chegam atrasados e empurram todo mundo para se meter na frente, acabei concordando.
A expectativa para os Titãs não era das maiores. Os últimos álbuns foram um desfile de canções fracas, e a banda hoje é só uma fração do que já foi — sobraram apenas três. Branco Mello, infelizmente, perdeu a voz para problemas sérios de saúde, e eu já havia assistido recentemente à turnê de reunião, aquela sim memorável.
Mas a sorte esteve do nosso lado: o formato de uma hora fez com que o repertório fosse certeiro. Só tropeçaram em Apocalypse Só, com aquele coro de crianças que já nasce irritante, mas o resto foi pancada atrás de pancada, clássicos tocados com peso e vigor. Até Marvin apareceu de novo, a segunda versão do dia, depois de Nando Reis mais cedo. E claro, no final não podia faltar Epitáfio, o maior hit dos Titãs neste século. Eu, particularmente, não suporto a canção, mas era inevitável — se até na turnê de reunião, centrada na fase em que todos estavam no grupo, ela entrou, aqui não seria diferente.
No fim, o show se mostrou muito melhor do que minhas expectativas deixavam supor. Tocaram com garra, o público cantou como se fosse a última vez, e até eu me vi contagiado. Para quem pretendia sair para comer, acabei engolindo tudo ali mesmo: riffs, letras e a sensação de que, quando os Titãs querem, ainda são gigantes.
9- NENHUM DE NÓS
A “cota sulista” do dia ficou a cargo do Nenhum de Nós, outra banda com carreira sólida e um punhado de hits que resistem ao tempo. É verdade que depois dos anos 2000 não emplacaram nada de hits nacionais (apesar de ótimos discos que valem a pena), mas continuam entregando um show cheio de grandes canções.
Thedy Corrêa, com sua presença habitual, talvez não estivesse nos melhores dias de voz — acontece até nos pampas. Ainda assim, faixas como Eu Caminhava, Camila, Camila e a sempre festejada versão de Starman, do David Bowie (que muita gente ainda jura ser uma música original da banda), garantiram momentos de coro coletivo.
Aliás, foi justamente durante Astronauta de Mármore que Thedy resolveu exercer seu lado justiceiro: parou o show no meio para dar um belo esporro nos roadies do Paulo Ricardo, que estavam testando a bateria bem na introdução. Para quem estava na plateia já era incômodo; para quem estava no palco, com retorno direto no ouvido, devia ser de enlouquecer. Foi quase uma performance paralela: Bowie no céu, roadies no chão e Teddy no meio, segurando a bronca.
10 - PAULO RICARDO
Não sabia exatamente o que esperar desse show. Não do que eu queria — isso estava claro —, mas do que poderia acontecer. Meu receio era encarar um Paulo Ricardo da fase solo “brega romântica”, quando tentou ser um Roberto Carlos. Aliás, foi a última coisa que soube dele, mesmo sem nunca ter acompanhado aquele período.
O RPM foi minha primeira paixão no rock nacional. Eu tinha uns 9 ou 10 anos quando o primeiro disco invadiu as rádios sem dó. No meu aniversário de 11, tinha certeza absoluta de que ganharia do meu tio Ari o recém-lançado Rádio Pirata ao Vivo. Que decepção quando, no dia, ele apareceu com um single do Roupa Nova com a música Dona. Um banho de água fria. Claro, depois ouvi aquele compacto tantas vezes que arranhei o vinil, mas na hora foi frustrante.
Ainda assim, foi esse mesmo tio que me levou ao show do RPM em Bauru. Não lembro o local — devia ser pequeno para aquele evento. Pode ter sido a Luso ou algum clube parecido. Mas sei que foi o mesmo espaço onde, algum tempo antes, vi o Barão Vermelho ainda com Cazuza. Esse último não me empolgou tanto quanto o RPM naquela época.
Mais tarde, outra tia me levou às Lojas Americanas em Bauru — naqueles tempos, o paraíso para quem gostava de música — e me deu o recém-lançado Quatro Coiotes. O disco não teve nem sombra do sucesso dos anteriores, mas eu ouvi demais, mesmo sem o apelo pop que a idade pedia. Partness virou uma das canções mais tocadas da minha vida naquela fase de descoberta.
Também lembro de um domingo em que acompanhei o mesmo tio até Jacuba, distrito de Arealva, onde ele ia jogar futebol. Fiquei no carro ouvindo a fita do Rádio Pirata ao Vivo. Isso já em 89/90 — foi uma redescoberta daquele álbum que nunca ganhei. Nessa época eu ainda não corria atrás de discos: ouvia o que tinha em casa e, na TV, nunca fui muito de programas musicais. Isso só mudou depois dos 15 anos, quando o interesse se firmou.
Tudo isso para chegar até o show do Paulo Ricardo. Qualquer receio desapareceu nos primeiros acordes de Rádio Pirata. O golpe da nostalgia veio forte. Louras Geladas logo em seguida, com a mesma potência. O clima deu uma caída com o cover chocho de Vida Real, e emendou com a atual Herói Made in Brazil — que tem toda a cara do velho RPM e deixa claro para quem é endereçada.
A grande surpresa da noite foi Juvenília. Não esperava por essa. E ainda teve a participação especial de Thedy Corrêa em A Cruz e a Espada — sem dúvida, um dos pontos altos do festival. Paulo Ricardo emendou depois um medley de cores: a chatinha Imagine fundida com One, do U2, e ainda uma citação de Strawberry Fields Forever. Pensei que puxaria London, London, do Caetano, aquela que o RPM fez virar deles, mas não veio. Uma pena. Pelo menos veio Flores Astrais, outra que o RPM apropriou com categoria. Mais um grande momento.
Já o cover em clima disco fora de epoca e sem inspiração de Pro Dia Nascer Feliz . Poderia ter escolhido qualquer outra, mas enfim. A compensação veio na reta final: Revoluções por Minuto, Alvorada Voraz e Olhar 43 em sequência matadora, levando o show a um final catártico e energético.
Não havia como terminar melhor a noite. Mas ainda tinha mais um show.
11 TIJUANA
Nos primeiros anos da década de noventa, ainda na adolescência, o rock nacional era a minha grande paixão. De fora eu ouvia o que estava estourado: Guns N’ Roses, Faith No More, Nirvana, Red Hot Chili Peppers, Pink Floyd. Mas a coisa virou a partir de 95, já nos anos de faculdade. O nacional foi ficando em segundo plano e quem entrou com tudo foram Radiohead, Smashing Pumpkins, The Cure, The Smiths, Pixies, Luna, Velvet Underground, Belle and Sebastian, Bowie, Travis, Blur, Oasis, James, Meat Puppets, Dylan, Teenage Fanclub, Wilco e tantos outros que se acumulavam nas descobertas.
Do lado de cá, Skank, Raimundos e Pato Fu foram as últimas bandas brasileiras que realmente me interessaram. Depois disso, só os recifenses — Chico Science & Nação Zumbi, Mundo Livre, Eddie, Mula Manca — me chamaram a atenção em momentos diferentes. Já Jota Quest, Charlie Brown Jr., CPM 22, Pitty, Detonautas… nunca me deram vontade de ouvir um disco inteiro. O que conheço é o que tocava por aí, sem escapatória. Tirando Charlie Brown e Pitty, não sei distinguir uma música do CPM 22 ou dos Detonautas. Até conheço, mas não sei de quem é o quê.
E aí veio o Tijuana. Era a banda que eu já tinha decidido abandonar sem dó para finalmente comer e ir ao banheiro. Mas resolvi ficar, pelo menos umas duas músicas, só para ver qual era.
Começaram bem: peso, fusão de rap com rock e ritmos brasileiros, uma energia que lembrava Planet Hemp. Mas já na segunda música achei que tinha visto o suficiente e fui comer, ouvindo de longe. Enquanto isso, o público que estava no Palco 2 se aglomerou em frente ao Palco 1, mas nem assim encheu: dava para andar tranquilo e até chegar perto do palco sem esforço.
Depois de quase 14 horas de jejum, almocei e voltei para a apresentação. Mas a vibe inicial já tinha evaporado. Atrás de mim, uma garota cantava algumas músicas com algo que talvez fosse emoção — ou só hábito — mas enfim, estava se divertindo.
No fim, reconheci uma: aquela do Tropa de Elite que todo mundo conhece. Para ser honesto, eu só sabia o refrão, então nem percebi de imediato. Foi a deixa perfeita. Antes que a multidão resolvesse sair junto, aproveitei e fui embora. O festival acabou, e eu ja estava acabado fazia tempo.