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quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Mistérios, Mitos e Pseudoarqueologia: bem-vindo ao mundo de Martin Mystère


Martin Mystère é um personagem da editora italiana Bonelli, criado em 1982 por Alfredo Castelli, depois de anos de tentativas frustradas de lançar um herói sob outros nomes e formatos — inclusive como Allan Quatermain em 197. Paralelo a isso a versão em quadrinhos dos livros do Docteur Mystere pelo próprio Castelli na mesma época serviram de base para o personagem (a Mythos chegou a lançar 2 álbuns sobre a personagem, numa versão moderna mas não temos mais nada em Portugues), Docteur tambem foi incorporado na mítica do Personagem como um antepassado numa historia homônima lançada pela mesma Mythos na quase recente edição 23  da segunda serie.

Nesse intervalo, Hollywood já havia consagrado o arquétipo do arqueólogo aventureiro com Os Caçadores da Arca Perdida (1981), mas a “vibe” do quadrinho foi para outro caminho: pouca ação, muitas investigações e páginas repletas de diálogos — o que afastou parte do grande público. Não à toa, mesmo na Itália a revista nunca foi campeã de vendas, ficando atrás de vários outros personagens Bonelli, especialmente Dylan Dog, criado alguns anos depois e que, durante muito tempo, foi o verdadeiro best-seller da casa, chegando até a inspirar um festival próprio, o Dylan Dog Horror Fest

A comparação entre Mystère e Dylan Dog não é mero capricho: além das afinidades de tom e temática, os dois personagens já dividiram três crossovers e aparecem frequentemente citados nas aventuras um do outro.No Brasil, Mystère estreou em 1986 pela Editora Globo (que no primeiro número ainda se chamava RGE), em uma coleção de 13 edições que, na prática, publicou apenas as 12 primeiras aventuras italianas, já que algumas histórias começavam numa revista e terminavam em outra — exatamente como acontecia também na Itália mas com algumas mudanças que criaram essa edição "extra". 


Em 1990, o personagem ressurgiu pela Editora Record, que no primeiro volume republicou justamente as duas primeiras histórias de Mystère. Vale a curiosidade: a versão da primeira aventura lançada pela Record era ligeiramente diferente daquela publicada pela Globo, já que na Itália a história havia recebido alterações nas republicações. Assim, as duas edições brasileiras acabaram trazendo pequenas diferenças entre si, detalhe saboroso para quem gosta de comparar versões.

 A partir do segundo número, a Record seguiu a cronologia onde a Globo havia parado, publicando a edição 13 da série italiana. Só que a fidelidade durou pouco: a partir da quinta edição, a Record começou a pular números, republicar material da fase Globo e até inserir três volumes da série especial italiana. No total, foram 17 edições, e foi justamente através delas que conheci o personagem.

Formado em Antropologia e Arqueologia, Martin Mystère é descrito como um sujeito peculiar, dono de uma curiosidade insaciável e de um apartamento abarrotado de livros e bugigangas — algumas das quais bastante úteis, como sua arma de raios paralisantes. Seus parceiros de aventuras são tão singulares quanto ele: Java, um homem de Neandertal sobrevivente à extinção da própria espécie, e Diana Lombard, a companheira que, após muitos anos, conseguiu levar o “detetive do impossível” ao altar.


Em 2002, Martin Mystère voltou às bancas brasileiras, desta vez pela Mythos. A ordem de publicação não seguia grande lógica, mas ao menos permitiu resgatar várias histórias que a Record havia deixado de lado. Essa fase se estendeu até 2006 e somou 42 edições. Infelizmente não tenho essa série. É de uma epoca onde parei de ler quadrinhos, que durou algo entre 1997-2012, embora tenha esporadicamente comprado alguma coisa.

O personagem só retornaria em 2018, novamente pela Mythos. A série foi reiniciada do número 1 e, nas três primeiras edições, seguiu fielmente a cronologia italiana de onde havia parado na fase anterior. Mas a disciplina durou pouco: logo a editora voltou ao velho hábito de publicar histórias fora de ordem, incluindo números muito adiantados em relação ao que estava em aberto. 

Ainda assim, essa segunda fase chegou a 36 edições e avançou bastante a cronologia, trazendo aventuras já na altura do número 300 da série original italiana. No fim, parecia até um retrato em quadrinhos do próprio Brasil: quando tudo começa a seguir uma ordem, alguém resolve embaralhar as páginas. Ao menos aos poucos ha progresso, mesmo que infelizmente só nos quadrinhos.

A adaptação animada de Martin Mystère, lançada em 2003, é um daqueles casos curiosos em que uma boa ideia se perde na ânsia de ser “moderna”. Produzida pela Marathon Animation em parceria com a RAI e a Canal J, a série transformou o erudito e irônico “detetive do impossível” de Alfredo Castelli em um adolescente genérico de cabelo espetado, pronto para enfrentar monstros e enigmas semanais com a irmã Diana e o inseparável Java — agora um homem das cavernas domesticado que mais parece alívio cômico de sitcom. O resultado é uma versão que mantém o verniz do mistério, mas esvazia seu conteúdo.

Enquanto o Martin das HQs investigava o elo entre ciência e mito com o olhar de um cético fascinado, o da animação parece um caça-fantasmas teen moldado à estética pós-Scooby-Doo e Ben 10. A trama é episódica, previsível, e reduz o tom filosófico e histórico do original a um desfile de monstros, portais e relíquias mágicas. O que era reflexão vira fórmula: cada mistério é resolvido com uma explosão ou uma piada.

Ainda assim, há mérito em como a série preserva — ainda que diluída — a noção de que o mundo é um grande arquivo de segredos esperando ser decifrado. O problema é que o Martin Mystère animado parece ter medo de sua própria complexidade. É um produto da época: ágil, colorido, hiperativo e permanentemente em busca da próxima “missão”. Um desenho divertido, sem dúvida, mas que trocou a curiosidade adulta e iconoclasta de Castelli por uma aventura ligeira demais — onde o mistério virou entretenimento, e o impossível, apenas mais um episódio da semana.


Para os fãs mais fiéis — e, sobretudo, para aqueles que nunca se aventuraram em Mystère justamente por gostar de ordem cronológica — surgiu uma nova esperança: a Editora 85. O projeto, lançado em formato de encadernados, vem trazendo 5 edições italianas por volume, agora em ordem linear. A proposta é clara: publicar as histórias completas dentro de cada encadernado, sem aquela fragmentação que na Itália, durante muito tempo, fazia uma aventura começar numa edição e terminar na seguinte.

 Para efeito de comparação, o primeiro volume da 85 reune as edições italianas 1 a 5, totalizando cinco histórias. Já o segundo volume, apesar de ter número de páginas parecido e cobrir as edições 6 a 10, trouxe apenas três aventuras — maiores, densas, e ainda mais representativas da fase inicial de Mystère. Você pode comprar essa 2 edições nesse link , lembrando que durante a pre venda quem comprar as 2 edições ganha frete grátis.



LADO B DA VIDA - Sister Hazel & Blind Melon

Na seção Entre Fones e Destinos, onde costumo escrever sobre álbuns que me marcaram profundamente, às vezes tropeço em discos menores — aqueles que não mudaram minha vida, mas de alguma forma ficaram comigo por um tempo. São trabalhos que giraram no CD player, tocaram em repetições distraídas, me acompanharam em algum verão esquecido… e depois ficaram por ali, sem que eu corresse atrás de mais nada da banda na maioria dos casos (nem tudo é verdade absoluta).

A ideia aqui não é resgatar clássicos óbvios nem subestimar gigantes: é falar desses pequenos grandes discos, obras que vivem numa zona intermediária entre o apego e o acaso.

 SISTER HAZEL - ".... Somewhere more Familiar" (1997)

O Sister Hazel é uma banda de rock alternativo da Flórida, formada em 1993, que nunca quis reinventar a roda — e nem precisava. Seu som é uma mistura bem acabada de folk, southern rock e pop melódico, herdeiro direto de nomes como Crosby, Stills & NashCreedence Clearwater Revival e de tantas bandas americanas dos anos 90 que ainda acreditavam em refrões de estrada e harmonia vocal.

…Somewhere More Familiar, o segundo álbum do grupo, é o tipo de disco que não surpreende, mas acolhe. Um trabalho redondo, de melodias honestas e guitarras limpas, feito pra quem gosta de canções que soam familiares na primeira audição. O grande hit, “All for You”, colocou a banda no mapa e garantiu o disco de platina — mérito de um refrão simples e irresistível, daqueles que grudam sem pedir licença.

A origem do nome também tem algo de simbólico: Sister Hazel Williams era uma freira de Gainesville que administrava um abrigo para pessoas em situação de rua. O gesto de homenagem diz muito sobre o espírito da banda — generoso, comunitário e fiel ao público. Ao longo dos anos, o grupo manteve projetos beneficentes e um contato quase direto com os fãs, cultivando um público pequeno, mas leal.

No Brasil, o Sister Hazel não chegou a ter o mesmo alcance de um Kings of Leon (ou de seus vizinhos do Matchbox Twenty), mas ocupa um espaço curioso: fazem parte daquela linhagem de bandas que talvez nunca mudem o rumo da música, mas sempre tocam em alguma memória afetiva.

Somewhere More Familiar é um disco solar, de bons arranjos e nenhuma pretensão. O tipo de álbum que não promete revelações — apenas o conforto de um som bem tocado, bem cantado e com cheiro de final de tarde.

Não é um álbum que mudou minha vida.
Mas volta e meia, quando toca “All for You”, muda o meu humor — e talvez seja por isso que, tantos anos depois, ainda me pego cantarolando o refrão como se fosse 1997 outra vez.

BLIND MELON - 1992

Quem não conhece “No Rain”? O clipe da “abelhinha” atravessou gerações e virou ícone dos anos 90 — tanto que ganhou até paródia do Weird Al Yankovic na ótima “Bedrock Anthem”. Mas o disco de estreia do Blind Melon vai muito além desse sucesso solar e melancólico.

Lançado em 1992, o álbum chamou atenção primeiro por um detalhe curioso: o vocalista Shannon Hoon era amigo de Axl Rose e participou de Use Your Illusion em faixas como “Don’t Cry” e “November Rain” (inclusive no clipe). Essa ponte com o Guns N’ Roses deu à banda uma vitrine - mas o que sustentou o interesse foi o som em si.

No ano seguinte, veio o estouro: “No Rain” virou hino de uma geração que ainda equilibrava otimismo e apatia, luz e ressaca. A música catapultou o Blind Melon ao estrelato e, inevitavelmente, acabou engolindo o resto do repertório — o que é uma pena, porque esse primeiro disco é repleto de boas canções que respiram o mesmo ar psicodélico e folk do southern rock setentista.

Faixas como “Change”, com sua letra de autoaceitação e beleza despretensiosa, são pequenas pepitas perdidas em meio ao brilho de “No Rain”. E há outras que mereciam mais luz: “Sleepyhouse”, com sua vibração hippie noventista; “Tones of Home”, que abre o disco com groove e energia; Fugindo um pouco do album Procure tambem por “Soul One”“Toes Across the Floor”“Walk”“St. Andrew’s Fall” e “Mouthful of Cavities” e o belo cover de "Candy Says"  — onde todas revelam uma banda inspirada, mas tragicamente breve.

E, no meio disso tudo, eu caí — só para dar uma emoção.

Sim, o destino, aliás, foi cruel. Logo após o lançamento do segundo álbum, Soup (1995), Shannon Hoon foi encontrado morto no ônibus da turnê, vítima de overdose de cocaína. O Blind Melon lançou ainda o póstumo Nico (batizado com o nome da filha de Shannon) e, anos depois, tentou uma volta em 2008. Mas a magia daquele primeiro disco nunca se repetiu.

Na época, só esse álbum chegou à minha cidade — e talvez por isso tenha ficado mais forte na lembrança. Eu o ouvi muito, repetidas vezes, sem saber que estava testemunhando uma dessas obras únicas que condensam uma era.

Blind Melon de 1992 é exatamente isso: um disco que nasceu sem pressa, com alma de hippie tardio e melodia de estrada poeirenta.
Um disco que lembra que o rock dos anos 90 ainda podia soar esperançoso — antes que tudo virasse ironia, grunge e silêncio.

(Em tempo: esta matéria foi escrita ao som de “Version 2.0”, do Garbage, como você espertamente deve ter percebido — que não entra aqui, mas fica a dica.)


quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Entre Fones e Destino - Parte 4 - THE VELVET UNDERGROUND

Entre Fones e Destino é uma coluna onde analiso alguns discos que mudaram minha vida e fizeram parte dela. Às vezes o texto acaba levando para outros caminhos, mas o foco principal será sempre este álbum. Frank Jorge já dizia: “Fui lhe mostrar um disco de um cantor que sempre gostei, mas você não me deu atenção.” Essa frase me pega. Quantas vezes, cheio de empolgação, você tenta mostrar algo para alguém, e a pessoa simplesmente não presta atenção? Você começa a tocar a música, e antes mesmo do vocal entrar, ela já está conversando sobre outra coisa. É a vida.

Parte 1(Grandaddy) pode ser acessado aqui.

Parte 2 (David Bowie) pode ser acessado aqui

Parte 3 (Legião Urbana) pode ser acessado aqui



Sabe quando você é super fã de uma banda que nunca ouviu? Pois é.

Morar numa cidadezinha do interior nos anos 90 era aventura para quem gostava de música. Às vezes a gente lia numa revista ou jornal sobre um disco, mas não tocava nas rádios locais e tampouco chegava às lojas. Ao lado de Bariri tem Jaú e Bauru, onde aparecia mais coisa — mas nunca tudo. Em uma dessas idas, entre 1990 e 1991, meu amigo Duzão (descanse em paz) me pediu um disco do Lou Reed. Ele nunca tinha ouvido. Eu, menos ainda.

Depois de rodar várias lojas em Jaú, achei Songs for Drella em uma próximo a praça da matriz. Não fazia ideia de que era o lançamento da época. Foi o único que encontrei e, portanto, o escolhido. Cheguei em casa, coloquei no toca-discos… e não gostei. Acho que o Duzão também não, mas aí já não lembro. Não sabia quem era Lou Reed, muito menos que tinha feito parte de uma tal banda chamada The Velvet Underground. Descobri isso só depois, folheando uma edição da revista Bizz, na sessão “Discoteca Básica”. O subtítulo da seção era impagável: “Compre, empreste, roube. O importante é ter esse disco.” Numa daquelas edições, lá estava ele: o seminal The Velvet Underground & Nico, ou melhor, o “disco da banana”.

Mas uma coisa é ler, outra é ouvir. Entre a revista e a audição real, passaram-se alguns anos. Em 1995 ou 1996, já na faculdade, lembro de um sábado de manhã em que fui com meu amigo Bié a uma loja de discos na Avenida São Carlos. Tinha gasto quase todo o dinheiro na noite anterior (estudante, né). Na prateleira, um box branco com a indefectível banana de Warhol estampada. Trazia toda a discografia da banda. Custava o preço de um rim. Saí da loja sem ele, levei a coletânea Songs in the Key of X: Music from and Inspired by the X-Files bem, muito mais em conta

Mas, nos anos seguintes, já bem mais interessado na banda, me arrependi amargamente de não ter levado aquele box. Não naquele dia, claro — estudante sem dinheiro não tinha como (a não ser que eu levasse ao pé da letra a recomendação da Bizz). Mas eu poderia ao menos ter feito um esforço nos meses seguintes, apertar o bolso, abrir mão de uns gibis… qualquer coisa que me garantisse aquela caixa branca com a banana na capa. Mas, na época, nunca dei muita bola pro veganismo (se bem que muito menos hoje). Hoje talvez tivesse levado o box só para postar no Instagram com a hashtag #BananaOrgânica — e ainda posar de pioneiro.

Em 1998, gravei da MTV o clipe de “Sweet Jane”, registro da reunião de 1994. Foi a primeira vez que tenho consciência de ouvi o Velvet. Vai que ja tivesse ouvido em um filme, afinal “Perfect Day”, do Lou Reed, via Trainspotting, já fazia parte da minha vida. Mas confesso: Sweet Jane não me bateu à época. Ficou perdida entre os VHS gravados

Durante toda a década de 90, o Velvet era um fantasma pairando sobre a minha cabeça: todo mundo falava, mas eu mesmo não ouvia nada. Bandas como Luna, Belle & Sebastian, R.E.M. — que chegou a gravar covers de “There She Goes Again”“Femme Fatale” e “Pale Blue Eyes” (essa última também revisitada pela Marisa Monte, provando que até a MPB já tinha passado pelo labirinto do Velvet) — todos apontavam para eles como referência.

Curioso, porque nas críticas que lia, o Velvet aparecia como sujo, pesado, mergulhado em drogas e sadomasoquismo. Difícil conciliar isso com os escoceses fofinhos do Belle & Sebastian.Na virada para os 2000, a internet já fervia. O Napster tinha caído, mas Emule e Limewire davam conta do recado. Mesmo assim, nunca baixei o Velvet. Foi em Bauru, na mesma loja onde me apresentaram o Luna, que perguntei pelo disco. O vendedor não tinha para vender, mas ofereceu gravar da própria coleção. Depois de uma semana um primo meu me trouxe de Bauru essa gravação, junto com outra icônica, o Primeiro disco do Jupiter Maça e o  "Peloton" do The Delgados, que consegui com o mesmo cara.

Eis que cheguei em casa com um CD-R, capa e encarte em xerox colorido. Coloquei no player e, nos primeiros acordes de “Sunday Morning”, entendi a comparação com Belle & Sebastian. Nada da barulheira que imaginava: havia algo etéreo, delicado, que me pegou de surpresa. Claro, o barulho estava lá em outras faixas, mas não era só isso. Era muito mais.

Poucos discos soam tão inaugurais quanto The Velvet Underground & Nico. Não apenas abriram portas: eles pareciam nascer fora do tempo, como se o futuro tivesse sido prensado em vinil. A banana de Warhol é perfeita: doce por fora, rosa e venenosa por dentro. O choque está tanto nas letras — heroína, prostituição, alienação — quanto na forma: Lou Reed sussurra como quem pede café; Nico canta como uma sacerdotisa gélida perdida em Nova Iorque. Morrison e Cale estilhaçam as canções, Maureen Tucker marca a procissão sombria, e o ouvinte vai sendo puxado para dentro desse mundo sem dó nem piedade.

“Sunday Morning” é falsa inocência. “Heroin”, até hoje, continua uma das canções mais perturbadoras já gravadas. “I’ll Be Your Mirror” é um lampejo de ternura em meio ao caos. Não é um disco perfeito — e aí está sua perfeição. Dissonante, desigual, tosco até. Mas, por isso mesmo, seminal. Como disse Brian Eno: “Pouquíssimas pessoas compraram esse disco, mas todas que compraram formaram uma banda.”

No meu caso, não formei uma banda. Mas virei fã. Fã à distância durante uns dez anos, sem nunca ter ouvido uma nota. Quando finalmente ouvi, foi paixão imediata. E, para fechar o círculo, anos depois comprei o tal box do Velvet Underground — aquele mesmo que me escapou em São Carlos nos anos 90. Hoje tenho dois: um aberto e outro lacrado. Afinal, quem é fã de verdade sabe que nada mais coerente do que ser, ao mesmo tempo, o sujeito que ouve compulsivamente… e o que guarda o objeto intacto, como se ainda fosse aquele fã de uma banda que nunca tinha ouvido.

Anos depois, no Sesc Pinheiros, Lou Reed subiu ao palco para apresentar uma nova versão do lendário Metal Machine Music.O teatro, com sua acústica precisa, logo se transformou num campo de batalha sonora. Antes mesmo de ele aparecer, os ruídos já tomavam o ar — e quando se instalou, de guitarra em punho, a experiência virou algo entre o transe e o caos. Ao seu lado, Ulrich Krieger e Sarth Calhoun disparavam saxofones distorcidos, eletrônicas, drones, zumbidos. Nada lembrava o Lou Reed que os fãs esperavam. Nenhuma melodia, nenhum refrão. Só ruído, puro e denso, como um teste de resistência.

Metade da plateia foi embora. A outra metade, atônia foi diminuindo aos poucos.
Eu fiquei.

E lá estava eu, décadas depois do garoto que comprou Songs for Drella sem saber quem era Lou Reed, ouvindo-o esculpir o silêncio com barulho.
Era o mesmo homem — e, de certo modo, o mesmo menino.

Quando, já perto do fim, ele voltou sozinho e tocou “I’ll Be Your Mirror”, tudo se encaixou.
A canção que nasceu doce e melancólica soava agora como um eco distante, quase metálico.
Mas era um espelho perfeito: distorcido, sim — mas ainda um espelho que brindou os heróis que ficaram naquela noite barulhenta. Não era o Velvet que eu queria mas o que tinha.

E foi ali, naquele momento em que Lou Reed e o ruído se tornaram uma coisa só, que percebi: ser fã de uma banda que nunca ouvi é continuar tentando ouvir o que a gente nunca entende por completo — e é justamente isso que faz a música durar.



Discos que esquecemos


Ontem, num sebo, me vi de novo fazendo o que mais gosto: fuçando prateleiras, caçando CDs de bandas de rock que eu não conhecia — ou achava que não conhecia. Ia pelo instinto, pela capa, como se a estéticaainda dissesse mais que o algoritmo.

Já estava no fim da garimpagem. A pilha de achados crescia, e eu começava a deixar alguns de lado quando um nome simples me fisgou: Girls. O título era ainda mais despretensioso — Album.

Dei de ombros, mas senti aquele breve arrepio que precede uma lembrança. Um déjà vu musical. À primeira vista, o nome me levou à série Girls, mas algo ali soava mais antigo. Como se a banda já tivesse passado pela minha vida sem deixar bilhete.

O encarte não ajudava: só fotos de garotas, cada uma representando uma faixa. Nada de letras, nada de contexto. Na última imagem, dois rapazes — provavelmente a banda. Ou o duo. Fiquei indeciso se levava. O nome, confesso, não me seduzia, mas a capa tinha algo: um ar cool, minimalista, que me lembrou Behaviour, dos Pet Shop Boys — e não por acaso também um duo.

Levei.

E, por curiosidade ou destino, foi o primeiro que botei pra tocar assim que entrei no carro (sim, ainda tenho toca-CDs no carro). Bastaram os primeiros acordes de “Lust for Life” pra memória voltar como uma onda: eu não apenas já tinha ouvido falar do duo — eu já tinha ouvido o disco. E muito. Conseguia até cantarolar os versos, meio surpreso com a própria voz. A faixa seguinte, “Laura”, também me soava familiar. Foi quando percebi: eu não estava conhecendo uma banda nova — estava reencontrando uma antiga conhecida que minha memória tinha arquivado num canto esquecido.

O problema é que não lembro de onde. Talvez fosse um disco que baixei na época em que se baixava tudo — e que se perdia tudo também. Talvez tenha ouvido num filme, lido sobre em algum jornal, numa crítica de rodapé. Procurei no IMDb e não encontrei nada. Nenhuma trilha sonora que explicasse aquela familiaridade absurda. Falando em cinema, me veio à cabeça (500) Dias com Ela), de 2009 — curiosamente o mesmo ano do álbum. Antes de pesquisar, eu jurava que fosse de uns anos antes, coisa do início dos 2000. Mas não: é até mais recente do que eu pensava. O curioso é que 2009 ainda parece ontem — embora já tenha 16 anos.

O que começou como uma simples sensação virou uma redescoberta. Eu não só conhecia o disco, como o tinha ouvido bastante, mesmo que por um curto período — e o havia esquecido completamente. Desde então, tento entender de onde veio.

Pesquisei um pouco: o Girls era uma banda de indie rock de São Francisco, formada em 2007, com dois membros — Christopher Owens e JR White. Lançaram só dois discos — esse e Father, Son, Holy Ghost (2011), que, claro, já encomendei. Em 2012, Owens anunciou sua saída pra seguir carreira solo, encerrando o grupo. Encontrei também um LP solo dele num preço ótimo — e arrisquei.

Lendo sobre o compositor, descobri uma história que parece ficção: Owens cresceu na seita itinerante Children of God. O irmão mais novo morreu de pneumonia porque os fiéis recusavam atendimento médico. Não gosto de comparar religiões, mas há seitas que fazem as outras parecerem perfeitamente razoáveis.

Recentemente, um amigo me pediu desculpas por não ir à minha festa de 50 anos: disse que “não comemora aniversários”. Quase respondi que não precisava explicar — eu sabia o motivo, e qualquer explicação soaria ainda mais absurda. Nunca vou entender o que leva as pessoas a isso, embora elas creiam fielmente que sabem.

A família de Owens deixou os Estados Unidos pra seguir com o grupo, vivendo “por toda a Ásia” até ele completar dez anos. Depois, pela Europa. Aos 16, na Eslovênia, ele deixou a seita, voltou pros EUA, trabalhou em tudo quanto é canto — inclusive repondo CDs em supermercado — e, anos depois, formou o duo que eu reencontraria, sem querer, no fundo de uma prateleira empoeirada.

Ainda estou ouvindo o disco. Parei na segunda faixa, revivendo lembranças que eu nem sabia que existiam. Talvez, com sorte, outra música me devolva o resto do que perdi.

Por coincidência, agora em outubro a banda Oktober Beaver vai abrir o show do Weezer, em São Paulo. Outra que também vive num desses cantos apagados da memória. Lembro que, anos atrás, quando discos importados levavam meses pra chegar, recebi um LP japonês da banda — e não fazia ideia de por que o tinha comprado. Devia ter visto num filme, gostado, esquecido, e o disco ficou.

Até hoje não lembro o motivo do primeiro impulso. Comprei outros depois, mas sempre me intriga não lembrar como cheguei ao primeiro — mesmo há tão pouco tempo.

Mas a verdade é que a memória também se desgasta. A gente vive, ouve, lê, baixa, apaga. E um dia reencontra tudo isso — num sebo, numa música, num refrão esquecido — e percebe que o passado tem trilha sonora. Só que ela toca baixinho, como um vinil gasto, mas com chiado demais pra ser esquecida de vez.