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terça-feira, 26 de agosto de 2025

O Neorealismo tardio de "A Arvore dos Tamancos"

Há uma cena em A Árvore dos Tamancos que nunca me saiu da memória. O pai pergunta ao pequeno Minec o que ele aprendeu na escola. “Animais que vivem na água”, responde o menino. “Peixes?”, insiste o pai. “Não, animais muito pequenos, que não dá pra ver.” O homem estranha: “Mas se não dá pra ver, como sabe que eles existem?” E Peperino conclui com a simplicidade devastadora das crianças: “Os doutores têm máquinas que enxergam.” O pai, depois de um instante, sentencia: “Existem tantas coisas que ainda precisamos aprender.”

Filmado sem grandes ênfases, o diálogo condensa a essência do conhecimento: admitir a própria ignorância. Houve uma época em que isso era motivo de vergonha; hoje virou troféu. Pais que antes se orgulhariam de ouvir o filho repetir algo aprendido na escola agora respondem com sarcasmo: “esses professores só querem doutrinar”. A tecnologia, que já simbolizou progresso, passou a ser acusada de ameaça.

Esse descompasso é também a falência da empatia. A arte, afinal, serve justamente para nos deslocar, para obrigar-nos a ver o mundo através dos olhos de outro. Roger Ebert dizia que o cinema era “uma máquina de gerar empatia”, e Olmi prova isso em cada detalhe: ao acompanhar a rotina simples de camponeses lombardos, percebemos ali não apenas a precariedade da vida rural, mas o espelho de nossas próprias contradições sobre fé, tradição e ignorância.

O mesmo vale para a palavra escrita. Antes, um livro era visto como desafio — demandava tempo, paciência, entrega. Hoje, basta um punhado de linhas mal ajambradas no Facebook ou no WhatsApp para que alguém se sinta erudito. Sofismas embalados como máximas se espalham com ares de verdade revelada. O texto, que deveria ampliar horizontes, se converte em trincheira.

Nesse sentido, a religiosidade em A Árvore dos Tamancos é reveladora. Olmi nunca foi um cineasta devoto no sentido tradicional — sua obra respira política, olhar de esquerda, crítica ao poder. Mas sua formação católica transparece, impregnando o filme de uma espiritualidade que não é dogmática, mas simbólica. A procissão, a reza, o silêncio diante da morte: há mais de transcendência do que de catecismo.

E aqui me permito um parêntese pessoal, quase como um flashback. Nunca fui uma pessoa religiosa, apesar de crescer numa família católica e ter feito parte de um grupo de jovens. As procissões na Semana Santa em Bauru eram, para mim, mais uma desculpa para estar com os primos; o grupo de jovens, mais uma necessidade de convívio na adolescência do que uma busca espiritual. Mas havia algo que sempre me incomodava: aquele fim de noite nos retiros, na capela, quando as pessoas começavam a “falar em línguas”. Para muitos, uma epifania; para mim, constrangimento. Hoje, olhando com mais distância, aquilo me soa muito mais próximo de um mantra de meditação transcendental do que de uma revelação divina. 

Em um desses retiros, recebíamos cartas escritas pelos pais. Guardo até hoje a lembrança da que minha mãe me mandou. Era orgulhosa pelo simples fato de eu estar ali, mas também me questionava sobre algo que, segundo ela, eu teria dito antes — provavelmente uma dúvida sobre a existência de Deus. Não lembro de ter feito essa observação e jamais voltei a perguntar a ela sobre isso. Mas não duvido que fiz esse questionamento na infância. Para mim foi natural e esquecido; para ela, significativo o bastante para deixar registrado.

Esse contraste entre fé e dúvida, vivido tanto no filme quanto em minha própria experiência, ajuda a entender como a religião pode funcionar em duas chaves distintas: como consolo íntimo ou como arma de opressão. O problema é quando o segundo sentido prevalece. Quando religiosos se postam à porta de um hospital para constranger uma menina estuprada em busca de um aborto legal, já não falamos de crença, mas de crueldade. Quando uma pessoa leva a sério alguém como Damares Alves, percebemos que nem vale a pena discutir: é a fé cega em estágio terminal, incapaz de enxergar qualquer horizonte que não seja o da própria ilusão. E a mesma lógica vale para os que elegem políticos cuja religiosidade é apenas discurso, enquanto seus atos beiram a psicopatia — e que, ainda assim, são abraçados por religiosos incapazes de enxergar a contradição.

“Um novo mandamento dou a vocês: Amem-se uns aos outros. Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros. Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros.” João 13:34-35

Se olharmos para os Evangelhos, o que mais salta aos olhos é a constância de gestos de compaixão. Jesus não apenas pregava o amor como princípio, mas o praticava em atos concretos. Chorou diante da dor de Maria pela morte de Lázaro (João 11:33-38). Permitiu que uma mulher, temendo confessar-se, tocasse em sua roupa em busca de cura — e, em vez de repreendê-la, acolheu sua fé e a tranquilizou (Marcos 5:25-34; Lucas 8:43-48). Ressuscitou o filho da viúva de Naim (Lucas 7:11-17). Tocou o leproso quando ninguém ousava se aproximar. Salvou uma mulher prestes a ser apedrejada por adultério. E até na cruz, em meio ao próprio suplício, voltou-se para os dois homens que sofriam ao seu lado.

Como imaginar, então, que um cristão pudesse negar a empatia como virtude?

Mas é exatamente isso o que se observa em setores da extrema-direita, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Há quem sustente, sem corar, que a empatia seria um “pecado”, apropriada pela esquerda como arma política. A Associated Press relatou como dois autores — influentes o bastante para frequentar o alto escalão do governo Trump — defendem essa tese em livros que falam em “empatia tóxica”, acusando progressistas de manipular a compaixão cristã. A lógica é perversa: negar direitos e, ao mesmo tempo, preservar a imagem de homens piedosos.

Nesse cenário, não surpreende que Elon Musk — talvez o maior símbolo vivo da sociopatia necessária para acumular fortunas obscenas — tenha declarado que “a fraqueza fundamental da civilização ocidental é a empatia”. Para quem vive da naturalização da desigualdade, sentir com o outro é inconveniente. É uma ameaça.

E chegamos ao impasse: como podem pessoas que se dizem cristãs sustentar tamanha dissonância cognitiva? Como conciliar o evangelho do cuidado com a legitimação de massacres — do genocídio de palestinos ao extermínio de crianças —, passando pelo uso deliberado da fome como arma de guerra? Como repousar em paz depois de testemunhar e justificar isso?

Árvore dos Tamancos nos lembra que a ignorância, quando reconhecida, é ponto de partida para o aprendizado. Mas, quando erguida como bandeira, torna-se apenas um muro. Talvez o verdadeiro pecado esteja menos em duvidar da fé e mais em acreditar que já não há nada a aprender. Olmi, com sua câmera paciente, mostra que ainda existe — e que só através da empatia é possível enxergar.

O homem é um animal racional que busca, na natureza, uma explicação para a sua existência e, por não encontrá-la em sua origem, recorre a símbolos para dar sentido à vida. O modo como opiniões, costumes e tradições distintas moldam nossa visão de mundo revela uma verdade simples: não importa o que vemos, mas como vemos. E é exatamente aí que a empatia — esse “pecado” tão combatido — se revela não apenas virtude, mas talvez a única saída.


 

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