Páginas

PESQUISE NESTE BLOG

sábado, 31 de maio de 2025

O Neorealismo tardio de "A Arvore dos Tamancos"


Quando Ermanno Olmi lançou A Árvore dos Tamancos em 1978, o neorrealismo já era, para muitos, um capítulo encerrado da história do cinema italiano. Seu auge havia ficado no imediato pós-guerra, entre os anos 40 e 50, nas mãos de Rossellini, De Sica e Visconti, que transformaram a miséria das ruas, a precariedade do povo e a crueza da vida cotidiana em estética e denúncia. No entanto, como toda corrente vital, o neorrealismo não se esgotou na década de sua explosão: permaneceu como uma espécie de latência, ressurgindo em obras posteriores que, embora situadas em outros contextos históricos e políticos, preservavam o mesmo impulso de observar os “invisíveis” e inscrever suas vidas comuns na esfera da grande arte.

É nesse espírito de herança e reinvenção que se inscreve A Árvore dos Tamancos. Olmi, sem o imediatismo da ruína da guerra, volta-se para o fim do século XIX e para a vida dos camponeses lombardos, filmando com uma sobriedade que é ao mesmo tempo narrativa e documental. O filme é, afinal, uma curiosa mistura de gêneros: atores que são, na verdade, camponeses de verdade dos anos 70 interpretam camponeses de quase um século antes. Objetos modernos — um rádio, uma televisão — foram retirados de cena, mas não seria de espantar que aqueles homens e mulheres vivessem, em muitos aspectos, uma realidade ainda parecida com a de seus antepassados retratados.

Essa ambiguidade se revela com clareza numa sequência emblemática: a matança do porco. Primeiro, vemos uma encenação visível — homens atrapalhados tentando retirar o animal do cercado, enquanto uma mulher comenta, em tom quase cômico, que “vocês vão matar ele antes do tempo”. Mas logo depois, a mise-en-scène se dissolve e o que surge é puro registro: a brutalidade nua e crua do abate, filmada sem filtros, com os camponeses agindo como sempre agiriam, sem o verniz da interpretação. É esse trânsito entre o encenado e o espontâneo, entre o artifício da ficção e a crueza documental, que faz de A Árvore dos Tamancos um objeto tão singular: um filme que chega tarde ao neorrealismo, mas que talvez justamente por isso o leve a um grau de pureza que seus predecessores não haviam ousado.

Eu sempre vivi na zona rural. Embora numa posição mais privilegiada, lembro de muitas coisas que ecoam naquelas imagens. As pessoas reunidas enquanto debulhavam o milho, as crianças segurando sacos de estopa enquanto um adulto, com a pá, os enchia de café ou de qualquer outra colheita. Os meeiros, que partiam cedo para a roça e deixavam os filhos encarregados de, de hora em hora, virar o café no terreiro com o rastelo para que secasse por igual. Eu não precisava fazer isso, mas quase sempre me juntava a eles — não por obrigação, mas porque queria brincar. Ajudava a adiantar o trabalho para que o tempo livre viesse mais rápido. Ao rever A Árvore dos Tamancos, percebo que essa rotina simples, que para mim era apenas brincadeira, para eles era já um exercício de sobrevivência.

Há uma cena em A Árvore dos Tamancos que nunca me saiu da memória. O pai pergunta ao pequeno Minec o que ele aprendeu na escola. “Animais que vivem na água”, responde o menino. “Peixes ?”, insiste o pai. “Não, animais muito pequenos, que não dá pra ver.” O homem estranha: “Mas se não dá pra ver, como sabe que eles existem?” E Peperino conclui com a simplicidade devastadora das crianças: “Os doutores têm máquinas que enxergam.” O pai, depois de um instante, sentencia: “Existem tantas coisas que ainda precisamos aprender.”

Filmado sem grandes ênfases, o diálogo condensa a essência do conhecimento: admitir a própria ignorância. Houve uma época em que isso era motivo de vergonha; hoje virou troféu. Pais que antes se orgulhariam de ouvir o filho repetir algo aprendido na escola agora respondem com sarcasmo: “esses professores só querem doutrinar”. A tecnologia, que já simbolizou progresso, passou a ser acusada de ameaça.

Esse descompasso é também a falência da empatia. A arte, afinal, serve justamente para nos deslocar, para obrigar-nos a ver o mundo através dos olhos de outro. Roger Ebert dizia que o cinema era “uma máquina de gerar empatia”, e Olmi prova isso em cada detalhe: ao acompanhar a rotina simples de camponeses lombardos, percebemos ali não apenas a precariedade da vida rural, mas o espelho de nossas próprias contradições sobre fé, tradição e ignorância.

O mesmo vale para a palavra escrita. Antes, um livro era visto como desafio — demandava tempo, paciência, entrega. Hoje, basta um punhado de linhas mal ajambradas no Facebook ou no WhatsApp para que alguém se sinta erudito. Sofismas embalados como máximas se espalham com ares de verdade revelada. O texto, que deveria ampliar horizontes, se converte em trincheira.

Nesse sentido, a religiosidade em A Árvore dos Tamancos é reveladora. Olmi nunca foi um cineasta devoto no sentido tradicional — sua obra respira política, olhar de esquerda, crítica ao poder. Mas sua formação católica transparece, impregnando o filme de uma espiritualidade que não é dogmática, mas simbólica. A procissão, a reza, o silêncio diante da morte: há mais de transcendência do que de catecismo.

E aqui me permito um parêntese pessoal, quase como um flashback. Nunca fui uma pessoa religiosa, apesar de crescer numa família católica e ter feito parte de um grupo de jovens. As procissões na Semana Santa em Bauru eram, para mim, mais uma desculpa para estar com os primos; o grupo de jovens, mais uma necessidade de convívio na adolescência do que uma busca espiritual. Mas havia algo que sempre me incomodava: aquele fim de noite nos retiros, na capela, quando as pessoas começavam a “falar em línguas”. Para muitos, uma epifania; para mim, constrangimento. Hoje, olhando com mais distância, aquilo me soa muito mais próximo de um mantra de meditação transcendental do que de uma revelação divina. 

Sempre me incomodou a escolha da cruz como símbolo central do cristianismo. Desde muito novo, aquela imagem me parecia de um mau gosto atroz: um homem pregado, agonizando, sangrando, transformado em ícone de devoção. Em Dogma, de Kevin Smith — um Diretor muito ruim, ainda que tenha seus momentos em Procura-se Amy e no primeiro Balconista — há um dialogo (nisso ele é bom) que ilustra bem isso . Alguém imagina Jesus voltando à Terra e, ao entrar em uma igreja, depara-se justamente com a representação do seu próprio suplício. Seria, talvez, a última imagem que ele gostaria de ver eternizada. 

É curioso pensar nisso: se hoje uma religião surgisse escolhendo como emblema uma cena explícita de execução ou tortura, seria vista como grotesca, inaceitável. Mas o cristianismo está tão enraizado, tão normalizado, que já não estranhamos ver templos inteiros decorados com figuras de uma morte violenta — e até salas domésticas exibindo, sem pudor, a cena de alguém agonizando em madeira e ferro.

Em um desses retiros religiosos que participei, recebíamos cartas escritas pelos pais. Guardo até hoje a lembrança da que minha mãe me mandou. Estava orgulhosa pelo simples fato de eu estar ali, principalmente depois de algo que, segundo ela, eu teria dito antes — provavelmente uma dúvida sobre a existência de Deus. Não lembro de ter feito essa observação e jamais voltei a perguntar a ela sobre isso. Mas não duvido que fiz esse questionamento na infância. Para mim foi natural e esquecido; para ela, significativo o bastante para deixar registrado.

Esse contraste entre fé e dúvida, vivido tanto no filme quanto em minha própria experiência, ajuda a entender como a religião pode funcionar em duas chaves distintas: como consolo íntimo ou como arma de opressão. O problema é quando o segundo sentido prevalece. Quando religiosos se postam à porta de um hospital para constranger uma menina estuprada em busca de um aborto legal, já não falamos de crença, mas de crueldade. Quando uma pessoa leva a sério alguém como Damares Alves, percebemos que nem vale a pena discutir: é a fé cega em estágio terminal, incapaz de enxergar qualquer horizonte que não seja o da própria ilusão. 

E a mesma lógica vale para os que elegem políticos cuja religiosidade é apenas discurso, enquanto seus atos beiram a psicopatia — e que, ainda assim, são abraçados por religiosos incapazes de enxergar a contradição . Uns, por pura ignorância. Outros, porque, tendo feito faculdade, lido dois ou três clássicos e decorado citações de Dom Quixote, acreditam piamente que já estão acima da manipulação. Como se o diploma fosse uma vacina contra alienação — e a cegueira política, um defeito exclusivo dos pobres e da esquerda. Curiosiosamente parece quw os inteligentes que aabem dos microchips nas vacinas por alguma razão fazem parte do mesmo grupo 99%. Muito curioso mesmo

“Um novo mandamento dou a vocês: Amem-se uns aos outros. Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros. Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros.” João 13:34-35

Se olharmos para os Evangelhos, o que mais salta aos olhos é a constância de gestos de compaixão. Jesus não apenas pregava o amor como princípio, mas o praticava em atos concretos. Chorou diante da dor de Maria pela morte de Lázaro (João 11:33-38). Permitiu que uma mulher, temendo confessar-se, tocasse em sua roupa em busca de cura — e, em vez de repreendê-la, acolheu sua fé e a tranquilizou (Marcos 5:25-34; Lucas 8:43-48). Ressuscitou o filho da viúva de Naim (Lucas 7:11-17). Tocou o leproso quando ninguém ousava se aproximar. Salvou uma mulher prestes a ser apedrejada por adultério. E até na cruz, em meio ao próprio suplício, voltou-se para os dois homens que sofriam ao seu lado.

Como imaginar, então, que um cristão pudesse negar a empatia como virtude?

Mas é exatamente isso o que se observa em setores da extrema-direita, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Há quem sustente, sem corar, que a empatia seria um “pecado”, apropriada pela esquerda como arma política. Dois autores — influentes o bastante para frequentar o alto escalão do governo Trump — defendem essa tese em livros que falam em “empatia tóxica”, acusando progressistas de manipular a compaixão cristã. A lógica é perversa: negar direitos e, ao mesmo tempo, preservar a imagem de homens piedosos.

Nesse cenário, não surpreende que Elon Musk — talvez o maior símbolo vivo da sociopatia necessária para acumular fortunas obscenas — tenha declarado ao podcast The Joe Rogan Experience  que “a fraqueza fundamental da civilização ocidental é a empatia”. Para quem vive da naturalização da desigualdade, sentir com o outro é inconveniente. É uma ameaça.

E chegamos ao impasse: como podem pessoas que se dizem cristãs sustentar tamanha dissonância cognitiva? Como conciliar o evangelho do cuidado com a legitimação de massacres — do genocídio de palestinos ao extermínio de crianças —, passando pelo uso deliberado da fome como arma de guerra? Ainda assim, não faltam fiéis que aplaudem políticos de discurso religioso mas práticas claramente fascistas, como se a Bíblia tivesse abolido o “amai-vos uns aos outros” em favor do “eliminai os diferentes”. E a alienação chega ao cúmulo de gente que, com pose de intelectual, repete que o nazismo foi “de esquerda” — no sentido progressista atual — sem corar diante do disparate. Um exemplo perfeito de como até quem se acha esclarecido pode ser cúmplice da mesma cegueira que atribui aos outros.

O bom religioso odeia a pedofilia — o que não surpreende, já que, para muitos, o sexo em geral já é pecado. Agora, imaginemos uma cena hipotética: um pastor da sua igreja, ou melhor, um político queridinho, diz abertamente que, ao passear com amigos, encontrou algumas meninas de 13 anos bonitas, paradas na rua; entrou na casa delas e “pintou um clima”. O bom religioso, claro, acharia tudo um mal-entendido. Garantiria que ele jamais faria algo assim, que foi tirado de contexto, que era apenas uma “brincadeira”. A fé, nesse caso, funcionaria como filtro automático da consciência.

Ou então, numa hipótese menos escandalosa (ao menos no sentido religioso da coisa), que esse mesmo líder passasse anos atacando instituições, plantando desconfiança com frases de efeito seguidas de um “não sei, apenas ouvi dizer”, até que, ao tentar um golpe de Estado, fosse processado. Bastaria, então, que seus advogados alegassem que o julgamento estava sendo Politico (veja só !)  para que seus seguidores aceitassem como verdade revelada. Essas duas cenas hipotéticas, se é que me entende, servem para ilustrar o nível de carência cognitiva que leva até mesmo os mais “tementes a Deus” a suspender o bom senso em nome da idolatria travestida de fé.


Árvore dos Tamancos
 nos lembra que a ignorância, quando reconhecida, é ponto de partida para o aprendizado. Mas, quando erguida como bandeira, torna-se apenas um muro. Talvez o verdadeiro pecado esteja menos em duvidar da fé e mais em acreditar que já não há nada a aprender. Olmi, com sua câmera paciente, mostra que ainda existe — e que só através da empatia é possível enxergar.

O homem é um animal racional que busca, na natureza, uma explicação para a sua existência e, por não encontrá-la em sua origem, recorre a símbolos para dar sentido à vida. O modo como opiniões, costumes e tradições distintas moldam nossa visão de mundo revela uma verdade simples: não importa o que vemos, mas como vemos. E é exatamente aí que a empatia — esse “pecado” tão combatido — se revela não apenas virtude, mas talvez a única saída.