Pecadores é um dos principais candidatos ao Oscar. Ou, ao menos, deveria ser — se o prêmio fosse realmente sério. A princípio, sua estreia não carregava a pretensão de virar “filme de temporada de premiação”. Mas diante do resultado apresentado por Ryan Coogler, não surpreende que o estúdio venha a relançá-lo no fim do ano, aproveitando a nova visibilidade para transformá-lo em concorrente de peso.
Pecadores é, do ponto de vista cultural, político e social, um filme extremamente ambicioso. Ambientado no delta do Mississipi — berço do blues e território impregnado de memórias da escravidão — o longa escolhe 1932 como cenário, ano marcado pela Grande Depressão. Se a crise já havia golpeado duramente a população branca, para os negros seus efeitos eram ainda mais devastadores: eram os primeiros a perder o emprego e os últimos a recuperá-lo. O peso da escravidão formal já havia sido abolido, mas os seus resquícios continuavam impregnados no cotidiano.
Uma das primeiras imagens apresentadas pelo filme é a das chain gangs: prisioneiros negros acorrentados, obrigados a trabalhar em estradas, ferrovias, na drenagem de pântanos ou em plantações. Era a perpetuação de uma lógica escravocrata disfarçada de sistema penal, com homens submetidos a trabalhos forçados sob o comando direto das autoridades locais.
Mesmo fora do cárcere, o mecanismo de exploração se repetia nas plantações de algodão. O trabalho era pago não em dólar, mas em scrip — também chamado de company scrip ou plantation scrip. Eram moedas criadas pelos próprios patrões e que só podiam ser utilizadas em estabelecimentos determinados, quase sempre de propriedade do dono da terra. Um token rudimentar, que aprisionava economicamente o trabalhador ao mesmo tempo em que lhe negava qualquer autonomia real.O Brasil conhece muito bem esse tipo de engrenagem. O episódio recente envolvendo vinícolas do Rio Grande do Sul revelou práticas que ecoam o sistema do antigo barracão: trabalhadores, em grande parte migrantes nordestinos, eram obrigados a adquirir alimentos, produtos de higiene e até ferramentas em armazéns controlados pelos próprios contratadores, quase sempre a preços artificialmente elevados. O resultado era previsível: o salário, já baixo, retornava imediatamente às mãos dos patrões, muitas vezes convertido em dívidas. Trata-se de um mecanismo de sujeição que persiste em pleno século XXI, no interior de uma das regiões mais ricas do país — e com o agravante da contradição: empresas envolvidas exibiam selos corporativos como “Great Place to Work”, mascarando com marketing institucional o que, em essência, não passava de exploração análoga à escravidão.
Isso aparece no filme quando eles criam o clube e começam a cobrar para entrar. Os frequentadores pagam com a moeda recebida na plantação. Um dos irmãos se irrita, dizendo que aquilo não é dinheiro de verdade; o outro retruca que é o que eles têm, e que não há escolha senão aceitar. O diálogo deixa claro: trata-se de uma prisão que persiste mesmo depois do fim oficial da escravidão — correntes invisíveis, mas igualmente eficazes em manter a população negra subjugada.
Era a época das leis de Jim Crow, quando a segregação racial era política oficial: banheiros separados, bebedouros separados, espaços sociais rigidamente divididos. Tudo isso era norma, e nesse contexto o vampirismo em Pecadoresfunciona como metáfora. O vampiro Remmick, interpretado por Jack O’Connell, encarna de forma perturbadora a lógica da dominação sobre a população negra.
E o mais fascinante é que ele próprio é um colonizado. Remmick é um imigrante irlandês, oriundo de um país que sofreu um processo de colonização brutal. Não por acaso, a Irlanda foi uma das primeiras nações a se colocar publicamente ao lado de Gaza e contra Israel: reconheceu imediatamente, na situação palestina, a mesma condição de submissão e violência que experimentou sob o domínio britânico. A memória irlandesa da colonização permanece viva, ao contrário de outros países, em que essa herança foi sendo negada, distorcida ou varrida para debaixo do tapete de formas diversas.O paradoxo é que Remmick, ele mesmo vítima de violência e exclusão, ao migrar para os Estados Unidos se transforma no algoz, perpetuando o ciclo de opressão. É a lógica cínica de quem afirma: “sofri violência, e agora que tenho poder, vou reproduzi-la”. Um espelho direto do que vemos hoje: Israel tratando Gaza com a mesma brutalidade que os próprios judeus sofreram nas mãos dos nazistas.
É uma postura cínica: “vocês não podem achar que estamos fazendo algo errado, afinal, sofremos o mesmo no passado”. Mas é pior. Em escala, o que vemos hoje em Gaza é um imenso campo de concentração, onde crianças passam fome, morrem de fome, em imagens que remetem imediatamente à Etiópia dos anos 80 e 90 — impossíveis de esquecer para quem viveu aquele período.
Agora que essas imagens se espalham pelo mundo, muitos começam a ter coragem de denunciar Israel. Porque quando o que somente tínhamos eram noticias de bombas sobre a população civil, a desculpa era a guerra. Mas que guerra é essa em que de um lado há mísseis e bombas e do outro lado não há nada? Quando só um lado morre, não é guerra: é genocídio. Um genocídio perpetrado por vítimas de violência.
É nesse ponto que Remmick se torna símbolo. Ele é a metáfora do colonizado que, ao ganhar poder, se transforma em colonizador. Sofreu a violência da dominação, mas escolhe reproduzi-la. O que ele busca no filme nada mais é do que uma tentativa de colonização, mascarada de promessa de igualdade.
A complexidade moral do filme se revela justamente aí. Os vampiros são outsiders, mas outsiders que escolhem perpetuar o mesmo ciclo de violência que os oprimiu. Dentro dessa lógica, o clube criado por Smoke e Stack Moore (interpretados por Michael B. Jordan) surge como um raro espaço de autonomia naquela região. Um território de respiro, onde é possível afirmar a identidade, a cultura, a negritude. Mas não apenas isso: o filme vai além do recorte racial ao destacar a diversidade cultural do Delta nos anos 1930. Em um plano-sequência genial, por exemplo, vemos uma família chinesa que mantém duas lojas: uma do lado “destinado aos brancos” e outra do lado “reservado aos negros”. É uma cena que explicita, sem uma palavra sequer, o absurdo da segregação e ao mesmo tempo a astúcia de quem tenta sobreviver em meio a ela. Nesse sentido, o clube não é apenas um espaço para os negros; ele se torna também o lugar em que outras minorias encontram reconhecimento, pertencimento e solidariedade, em contraste direto com as ruas do lado de fora.
O filme também reserva espaço para os povos indígenas, retratados como guardiões de um saber ancestral. São eles os primeiros a identificar o perigo que Remmick representa e a tentar alertar a comunidade. Não é gratuito: em Pecadores, as minorias aparecem invariavelmente como as vozes de lucidez — aquelas que, mesmo marginalizadas, são capazes de perceber com clareza o que os outros preferem ignorar.
Remmick é construído como a imagem perfeita do vampiro colonizador. Ele não exige apenas sangue, mas a rendição total a uma lógica — ou melhor, a uma ideologia. Sua promessa é sedutora: igualdade, respeito, a ideia de que “somos todos um só”. Mas o discurso esconde uma armadilha antiga. O que ele oferece, na prática, é a homogeneização cultural, a diluição de identidades distintas em nome de uma suposta convivência pacífica. “Passe para o nosso lado, somos iguais” significa, na verdade: “abra mão de quem você é, ceda sua memória, sua cultura, sua história, para sobreviver”.
É uma estratégia perversa, conhecida em tantos contextos históricos — a promessa de integração que não passa de assimilação forçada. Coogler transforma isso em metáfora política poderosa: Remmick representa o colonizador que mascara sua violência com a retórica do progresso. Nesse ponto, Pecadores se mostra um filme de impressionante coesão política e histórica, costurando a lógica da dominação ao próprio mito do vampiro.
esse o ponto em que o filme expõe um “liberalismo racial” de hipocrisia evidente. Liberalismo entendido em sua forma mais distorcida: um racismo travestido de progressismo. A lógica é simples — e perversa: “ceda, vamos fazer um acordo; mas, nesse acordo, só você perde e só eu ganho”. O discurso da igualdade serve apenas como fachada para uma proposta colonizadora, ainda mais cruel por vir de alguém que já esteve do outro lado, que já foi vítima.
Um dos principais elementos do filme que representa a identidade cultural e histórica é a música. Ela simboliza a diversidade dessa comunidade, e é justamente isso que os vampiros querem absorver. Remmick, em especial, é atraído pela música de Sammy, que assume a figura ancestral do contador de histórias africano — o griot (também chamado de jeli ou djeli em regiões da África Ocidental) —, guardião das tradições e da memória coletiva.
E é aqui que Ryan Coogler realiza uma inversão instigante de um mito já conhecido: o do músico que vende a alma para conquistar talento ou reconhecimento. Sammy não precisa de pacto algum, porque já é um grande músico, já carrega em si toda a força de sua cultura. A ameaça, então, não está na barganha para “se tornar”, mas no desejo externo de alguém comprar aquilo que ele já é — um gesto que expõe de forma radical a lógica da apropriação cultural.
O clube é mostrado como um raro espaço de liberdade: ali, longe da vigilância branca, a comunidade pode afirmar sua identidade cultural sem máscaras. É nesse ambiente que Sammy assume seu papel de guardião da memória histórica, transmitindo pela música a tradição coletiva de seu povo. O que Remmick deseja, porém, é justamente capturar essa essência — o que hoje chamamos de apropriação cultural. Ele quer levá-la ao extremo: vampirizar não apenas corpos, mas também expressões culturais. A comparação inevitável é com Elvis Presley, que ao menos reconhecia, ainda que superficialmente, a influência dos músicos negros em seu trabalho. Ainda assim, para muitos dentro da própria comunidade negra, Elvis permanece como símbolo de apropriação — um artista branco consagrado às custas de inovações que nasceram da negritude, mas foram embaladas como se fossem suas. Remmick, no entanto, vai além: sua proposta é sugar a cultura até esvaziá-la, reempacotá-la sob sua própria autoridade e eliminar qualquer vestígio da origem.
E então vem a sequência musical — sem dúvida uma das mais belas do filme. É o momento em que Sammy começa a tocar e, de repente, passado, presente e futuro se entrelaçam diante de nós. Filmada em Imax, a cena assume dimensão épica: surge uma figura evocando Jimi Hendrix, trazendo o rock como catarse; ao lado dele, o blues, a raiz musical do delta do Mississipi, ressoa como memória viva; entram também as batidas africanas, que reafirmam a ancestralidade; o gospel, herança religiosa e espiritual de uma comunidade que sobreviveu à base da fé; o rock’n’roll, projetado como futuro; e o hip-hop, que carrega esse futuro ainda mais adiante, consequência direta de toda essa trajetória cultural.
O que torna a cena ainda mais fascinante é a inclusão dos imigrantes chineses, cuja presença já havia sido marcada no clube. Aqui, a música tradicional chinesa encontra espaço ao lado do blues e do gospel, lembrando que a história da região não é apenas negra, mas também atravessada por outras minorias que resistiram. O cinema registra DJs, breakdance, guitarras distorcidas e tambores ancestrais como se tudo coexistisse num mesmo tempo e num mesmo lugar.
É, sem exagero, uma das sequências mais impressionantes que o cinema norte-americano produziu nos últimos anos. Uma narrativa orgânica, que fala diretamente sobre a manutenção das tradições, sobre a necessidade de preservar a memória cultural diante das ameaças de apagamento e apropriação. Ali, música não é só entretenimento: é identidade, resistência e continuidade histórica.
O filme tem ainda muitos elementos que poderiam ser analisados, mas aí a crítica viraria um livro. Annie, representante do vodu, surge como força espiritual legítima: seus amuletos funcionam, sua fé se mostra eficaz contra o vampiro. Já as orações cristãs, quando evocadas, não produzem efeito algum. O mesmo vale para as crenças indígenas e afrodescendentes, que aparecem como práticas vivas, práticas de resistência, contrapondo-se a uma religiosidade imposta de fora — incapaz de proteger, incapaz de oferecer sentido.
Essa diferença não é gratuita: o que está em jogo é a tentativa de assimilação cultural, de apagamento da memória coletiva, de imposição de uma identidade única. O filme mostra como isso falha — não apenas moralmente, mas até no plano da ficção. Contra o vampiro, criatura que simboliza o colonizador, não é a fé institucionalizada que resiste, mas os saberes ancestrais.
E, sem jamais esquecer que é um filme de terror, Pecadores ainda referencia outros clássicos do gênero, como O Iluminado, em um plano holandês idêntico ao de Jack Nicholson preso no frigorífico, ou O Enigma de Outro Mundo, quando a comunidade desconfia que um deles é vampiro e todos precisam provar, com alho, sua natureza — ecoando a célebre cena de Carpenter em que se testam amostras de sangue.É uma construção inteligente de Ryan Coogler, que não abandona o gênero — pelo contrário, o utiliza como veículo para colocar em cena camadas históricas, políticas e espirituais. Pecadores funciona como horror, mas é também ensaio, alegoria e memória. E talvez a sua maior virtude esteja justamente nisso: em não se esgotar, em deixar sempre a sensação de que há mais a ser visto, mais a ser dito, mais a ser pensado.